Isaquias Queiroz conversou com ZH em junho de 2016 em Lagoa Santa, Minas Gerais. Confira:
Isaquias Queiroz cansou de falar do passado. Quer se preparar no presente para sonhar com o futuro. De preferência, um futuro bem próximo, daqui a dois meses, quando vislumbra a possibilidade real de ser o primeiro brasileiro a conquistar três medalhas em uma edição da Olimpíada.
Ocorre que a infância do canoísta, nascido em Ubaitaba, no interior da Bahia, parece o início de um daqueles filmes em que o herói supera dificuldades e triunfa contra todas as probabilidades. Daí o interesse no passado de agruras, cheio de incidentes que ameaçaram sua saúde e quase interromperam a trajetória que busca final feliz no Rio.
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– A imprensa é importante para mostrar o atleta. Não tem como ganhar apoio se ninguém conhece o cara. Mas, às vezes, a imprensa do Brasil só quer falar de miséria – critica Isaquias ao atender a reportagem de ZH antes de um treino em Lagoa Santa, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte que serve de QG para a equipe brasileira.
Incomodam, especialmente, as perguntas sobre a origem humilde e as dificuldades que enfrentou. A abordagem, segundo o atleta, abre espaço para interpretações preconceituosas:
– O pessoal pensa que eu entrei no esporte para fugir da criminalidade. Pô, eu nunca entrei no crime. Fala que eu comecei na canoagem para não ficar vendendo drogas. Nunca fui traficante. Às vezes, passa uma imagem errada. Eu entrei no esporte porque eu queria praticar alguma coisa. Queria fazer esporte, ficar forte.
Por mais que o prodígio de 22 anos proteste, o assunto persiste. Não é para menos. Isaquias sobreviveu a queimaduras por todo o corpo quando tinha três anos e uma panela com água fervente foi derramada, acidentalmente, sobre ele. Aos 10, caiu de uma árvore e, devido ao impacto da queda, teve hemorragia interna. Os médicos não tiveram opção: retiraram-lhe um rim.
Para entender o episódio das queimaduras, é necessário algum contexto. O pequeno Isaquias e seus irmãos viviam com a mãe, dona Dilma, que era servente na rodoviária de Ubaitaba. Enquanto trabalhava, não lhe restava alternativa se não confiar em cuidadores para tomar conta dos filhos. Uma delas, um pouco mais velha do que o futuro canoísta, colocou uma panela com água no fogo quando o menino reclamou de dor de barriga. Queria fazer um chá, mas atrapalhou-se ao tirar a água do fogão e a derramou na criança.
Isaquias ficou mais de um mês no hospital, com graves queimaduras. A mãe, desesperada, pediu que o filho fosse liberado. Os médicos aconselhavam que ficasse internado por mais tempo, mas dona Dilma bateu pé. Em casa, cumpriu as etapas finais da recuperação.
Sete anos depois, um curioso Isaquias foi avisado de que haviam matado uma cobra na beira do rio em Ubaitaba. O bicho estava pendurado em uma árvore. O menino subiu para vê-lo mais de perto, mas perdeu o equilíbrio e se estatelou no chão. O acidente resultou em um apelido, no mínimo, curioso.
– Fomos participar da primeira etapa do Campeonato Baiano, que era em Itacaré, a uma hora da cidade, e a gente tinha que fazer uma seletiva. Quando foi a hora da prova dele, os meninos começaram a gritar "Sem Rim". Então me contaram – lembra Figueroa Conceição, responsável pelo projeto social que introduziu Isaquias na canoagem.
Os primeiros passos no esporte foram marcados pela falta de estrutura, mas não impediram a aparição dos primeiros sinais do talento extraordinário. O material disponível para o projeto social era ultrapassado. As embarcações datavam dos anos 1980. Para fazer os remos, havia um truque. Uma peça era levada a uma serraria para servir de modelo, e de lá saíam várias para os meninos usarem. Em vez dos cerca de R$ 900 do remo de fibra de carbono, gastava-se em torno de R$ 50.
– Com esse molde de madeira, ele ganhou Brasileiro, Sul-Americano, Pan-Americano – lembra Conceição.
A rápida ascensão logo levou Isaquias à equipe brasileira. Em 2011, sete anos após a queda na beira do rio em Ubaitaba, sagrava-se campeão mundial júnior. A evolução ganhou ainda mais força em 2013, após o encontro com um técnico que mudou sua vida: Jesus Morlán. O tarimbado espanhol, que esteve por trás da conquista de uma medalha de ouro e quatro de prata em Jogos Olímpicos, o colocou em outro patamar. Os resultados apareceram já no primeiro ano da parceria.
Em Duisburg, na Alemanha, Isaquias fez história ao conquistar o Campeonato Mundial na modalidade C-1 500m, que não é olímpica. No retorno ao Brasil, deu mostras de sua personalidade forte e contestadora ao protestar contra a falta de apoio da Confederação Brasileira.
"Um amigo do Equador, César De Cesare, ganhou ouro na distância de 200m (em competição na Hungria em 2011) e como prêmio recebeu uma casa. Sem falar nos valores em dinheiro. Equador é um país de 14 milhões de habitantes; em comparação, o gigante Brasil vira um anão na hora de reconhecer seus verdadeiros talentos e pagar para representá-los internacionalmente", escreveu nas redes sociais.
Metódico, quase obsessivo, Jesus estabeleceu uma rotina de treinos direcionados às provas específicas de cada atleta. O talento aliado ao trabalho exaustivo alçou Isaquias à condição de nome de peso da canoagem mundial. Em 2014, foi bicampeão do C-1 500m, mas o título do C-1 1000m, que é distância olímpica, escapou nos metros finais, quando era líder e caiu da canoa. Da decepção, porém, veio a certeza de que a briga por pódio no Rio era uma possibilidade real.
– Não gosto de falar que vou competir. Gosto de falar que vou brigar por medalha. As pessoas me perguntam qual a sensação de participar de uma Olimpíada. Eu falo que não vou participar. Participar vai quem não tem chance de medalha. Eu vou para me matar e brigar por medalha – afirma, confiante.
Em Milão, no Mundial do ano passado, Isaquias e Jesus perceberam que havia a chance de buscar medalhas, no plural. Ao lado de Erlon Souza, veio o título no C-2 1000m, e ainda um bronze no C-1 200m. Foi a coroação de uma temporada especial, pontuada por dois ouros nos Jogos Pan-Americanos e o prêmio de atleta do ano do Comitê Olímpico do Brasil.
Na pequena Lagoa Santa, local escolhido por Jesus como QG por ter uma lagoa de características semelhantes à Rodrigo de Freitas, mas sem as distrações e badalações do Rio de Janeiro, forja-se o campeão capaz de buscar múltiplos pódios na Olimpíada. Lá, Isaquias divide uma casa com Jesus e seus companheiros, onde um cozinheiro prepara as refeições controladas para melhorar seu desempenho. A canoa é companheira de segunda a sábado, e ainda há os trabalhos na academia para complementar os treinamentos.
– O Jesus conseguiu elaborar um jeito muito louco de tentar a possibilidade de três medalhas. A gente sabe que essa chance é grande – diz Isaquias com sua honestidade peculiar, que rejeita qualquer traço de falsa modéstia e não se furta a reclamar, de frente para um repórter, sobre a atuação da imprensa.
Por mais que a postura possa soar arrogante, surge como um sopro de autenticidade em meio às declarações pasteurizadas e excessivamente cautelosas de outros atletas. O maior canoísta da história do Brasil não tem medo de dizer frases como "qualquer prova que me colocar eu remo bem", ou "eu estou fazendo o nome da canoagem". Os resultados estão aí para atestar suas afirmações. Só não pergunte sobre a infância em Ubaitaba.
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