Um campo, uma bola e duas goleiras. Não é à toa que o futebol é um dos esportes mais populares do mundo. A simplicidade da estrutura é capaz de revelar joias, craques de lances indescritíveis, gênios. O fator social está ligado intimamente à modalidade, que pode ser símbolo de união entre povos, chance de mudança de vida e da quebra de preconceitos.
A reportagem de GZH visitou a Reserva da Guarita para contar histórias do Flamengo de Tenente Portela, que tem 10 jogadoras indígenas e um projeto que envolve paixão pelo esporte. Neste domingo (10), o time recebe o Inter, pela terceira rodada do Gauchão feminino.
Pela primeira vez, as atletas caingangue jogarão com rosto, braços e pernas com pinturas típicas de sua etnia. Será um símbolo de orgulho e que entrará para a história do futebol gaúcho.
Treinar é raridade
Sem estrutura própria de treinos em Tenente Portela, as atividades ocorrem no máximo uma vez por semana no Estádio Municipal de Derrubadas, cedido pela prefeitura e que fica a 18 quilômetros da aldeia. Por isso, o clube apostou na tecnologia para compensar os poucos encontros da equipe. Todas as jogadoras produzem vídeos dos treinos físicos. Eles precisam ser enviados depois para avaliação da comissão técnica.
No caso da equipe sub-16, que aguarda pela realização do estadual da categoria, os treinos ocorrem aos sábados à tarde. Muitas das que almejam se tornarem profissionais devem viajar quase seis horas para chegar às atividades.
Ildo Scapini, o mentor
Ildo Scapini é o responsável pela montagem da iniciativa. A ideia surgiu ainda durante o período em que fez parte do projeto Genoma Colorado, entre os anos de 2007 e 2014. À época, o projeto do Inter tinha como propósito a divulgação da marca do clube e o trabalho de socialização e capacitação de meninos e meninas por meio do esporte.
— A coisa mais linda da vida é você não perder a esperança, sonhar e ir atrás dos seus ideais. Eu tenho certeza de que daqui sairão atletas para a seleção pela garra dessas meninas. Queremos mostrar para a sociedade que o futebol feminino merece um destaque maior. Precisamos derrubar o tabu de que futebol é só para homens. Vale a pena lutar, porque é uma causa nobre para as mulheres — afirma Scapini.
O sonho passou a ser tirado do papel a partir de 2019, mas a pandemia atrapalhou. A partir deste ano, Ildo deu o primeiro passo: a seleção de atletas. O começo foi desanimador:
Ainda existe muito machismo aqui na região, muitas empresas se negam a dar apoio porque se trata de um time feminino
ILDO SCAPINI
Coordenador do Flamengo de Tenente Portela
— No primeiro treino, veio uma atleta. No segundo, vieram três. Em fevereiro, surgiu a ideia de fazer uma peneira na área indígena. Quando chegamos até lá, haviam 65 inscrições para a peneira.
Em meio ao fato histórico que o município de 13.719 habitantes promove na competição, há outras barreiras que as atletas precisam combater.
— Não temos condições de realizar treinos todos os dias pelo trabalho das atletas. Até mesmo para fazer o teste da covid-19 é uma luta. Ainda existe muito machismo aqui na região, muitas empresas se negam a dar apoio porque se trata de um time feminino — revela Ildo Scapini.
Um clube e dezenas de cidades
Fundado em 1962, o Esporte Clube Flamengo busca escrever um novo capítulo com o protagonismo de mulheres a partir do projeto que ganhou vida neste ano. O grupo de 62 atletas, entre categorias adulta e sub-16, reúne jovens e mulheres de 30 municípios gaúchos, além de cidades do oeste de Santa Catarina.
Apesar de ser de Tenente Portela, o time joga em Três Passos e tem patrocínio de Derrubadas, que tem como grande atração turística o Salto do Yucumã, considerado a mais extensa queda longitudinal do mundo, com 1,8 mil metros. Até por isto que as meninas gostam de ser chamadas de Gurias do Yucumã.
Quanto mais incentivarmos o esporte, mais culturas diferentes vamos alcançar. O futebol feminino também é universal
GABRIELA LUIZELLI
Diretora do departamento feminino da FGF
Além de 10 atletas indígenas da etnia caingangue (três na principal e sete no sub-16), a comissão técnica também tem membros do mesmo grupo étnico. Angel Sales é auxiliar da equipe principal e técnico da equipe de base. Guilherme Ferreira é o preparador de goleiros das duas categorias.
Estar entre os oito clubes que disputam o Gauchão feminino, ao lado da dupla Gre-Nal, é sinônimo de luta diária. O projeto enfrenta diversas dificuldades, desde a estrutura até o aporte financeiro. Sem sede própria, os jogos da equipe são no CT Futebol com Vida, em Três Passos, a 31 quilômetros de distância.
Com a inscrição na Federação Gaúcha aprovada, o elenco foi montado aos poucos. No início, das 28 atletas foram relacionadas para o Estadual, cinco eram oriundas da peneira realizada na área indígena — algo considerado inédito na história do Gauchão feminino, já que nos documentos anteriores da competição não há registro sobre a raça/etnia das atletas.
— É importantíssimo. Mostra o quanto a modalidade pode ser abrangente socialmente. Quantas meninas, mulheres que gostam de jogar futebol e agora têm essa oportunidade de disputar um campeonato. Quanto mais incentivarmos o esporte, mais culturas diferentes vamos alcançar. O futebol feminino também é universal — destaca Gabriela Luizelli, diretora do departamento de futebol feminino na FGF.
Atletas não ganham salário
Com um quadro social de apenas 20 sócios, o Flamengo vive em busca de auxílio financeiro. Do clube, apenas a comissão técnica é remunerada. O valor, que é dividido entre quatro profissionais, é recebido através de uma lei Municipal do município vizinho de Derrubadas, que garante o repasse mensal de R$ 1,5 mil. Assim, cada membro recebe R$ 375.
— Quando fui procurado pelo professor Ildo Scapini para ajudar no sonho de montar um time e participar do Campeonato Gaúcho, no primeiro momento, eu achei muito difícil. Os municípios pequenos têm dificuldades. Mas, através da Câmara de Vereadores, conseguimos um incentivo. Eu tiro o chapéu para o Ildo, pela coragem, vontade, colocando recurso do próprio bolso para o desenvolvimento do time. Torço muito pelas atletas — comentou Alair Cemin, prefeito de Derrubadas.
Pensando nas dificuldades dos times do Interior, a FGF está disponibilizando, pela primeira vez, um subsídio de cerca de R$ 18 mil para o auxílio dos gastos com alimentação, hospedagem e viagens. Além disso, a arbitragem e os testes de covid-19 também são custeados pela entidade. Esta iniciativa é o que permite, por exemplo, que o Flamengo de São Pedro possa disputar o Gauchão.
Invencibilidade em campo
Em seu primeiro Estadual, as Gurias do Yucumã seguem invictas. Venceram o Elite por 2 a 1 e empataram com o Juventude em 1 a 1. Estão na segunda colocação do Grupo B, com quatro pontos. A chave ainda tem o Inter como líder (seis), Juventude (um) e Elite (zero). As outras quatro equipes estão no Grupo A: Grêmio, líder com seis pontos, Pelotas, em segundo com três, Brasil-Far (três) e Guarany-Ba (zero).
Ao final das seis rodadas na primeira fase, avançam os dois melhores de cada grupo para as semifinais, disputadas em jogos de ida e volta. A final será realizada em partida única. Além do título, o Estadual dará uma vaga no Brasileirão feminino A-3. A equipe campeã terá o direito de participar da competição nacional. Se Inter ou Grêmio conquistarem o título, o time mais bem colocado assegura a participação.
Para incentivar e desenvolver a modalidade, o calendário de competições também foi ampliado. A partir de 2022, o futebol feminino nacional terá a disputa da Supercopa do Brasil de Futebol feminino e o Brasileirão feminino A-3, equivalente à terceira divisão do Campeonato Brasileiro. Com as mudanças anunciadas neste ano, serão sete competições femininas na próxima temporada: quatro de profissionais e três de base.
É possível sonhar?
O ano de 2021 já pode ser considerado um divisor de águas para o futebol feminino. A modalidade, que já chegou a ser proibida no país por 40 anos durante a ditadura militar, comemora índices de engajamento.
Foram mais de 4,1 milhões de espectadores ao longo das transmissões em TV aberta do Brasileirão feminino deste ano, principal competição da modalidade no país. Os dados foram divulgados pela CBF.
Os números das transmissões representam visibilidade e esperança de novos incentivos às atletas — é o seu futebol, sua profissão sendo vista, é a esperança das milhares de meninas de que é possível se tornar uma atleta de elite.
— Meu sonho é ser uma jogadora profissional e jogar no Brasileirão. A gente treina, se esforça para poder evoluir e jogar no país — garante Heulla Sales, de 11 anos e que treina no sub-16 das Gurias do Yucumã.
Sobrinha de Giza, Heulla elogia a tia:
— Me inspiro nela. Quando ela sai para jogar, aprende coisas novas e nos ensina. Nos nossos treinos, eu também procuro ver o que as outras meninas fazem para aprender igual.
Empoderamento feminino
Mesmo que a modalidade seja praticada majoritariamente por homens, a figura das mulheres indígenas ganha mais peso. Angélica Domingos, da etnia Caingangue, mestranda em Política Social e Serviço Social pela UFRGS, explica que o empoderamento da mulher indígena sempre existiu. No entanto, a visibilidade aumenta nos últimos tempos, principalmente com a ocupação em outros espaços da sociedade, como no esporte:
— O futebol adentra e é incorporado nas terras indígenas, justamente pela forma como é, onde reúne a comunidade em torno das competições e do próprio gingado corporal, algo que se assemelha com os jogos tradicionais indígenas. Neste sentido, o futebol ganha força em sua prática, atualizando a existência de mulheres indígenas fortes e empoderadas que são.
Diante da organização social caingangue, Clémentine Maréchal, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS e integrante do Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais, explica que a posição das mulheres foi influenciada pela sociedade capitalista e patriarcal. Isso transformou a dinâmica comunitária tradicional desse povo. O esporte é uma forma das indígenas recuperarem seu protagonismo:
— As mulheres caingangue ocupam funções em várias esferas da sociedade, seja na universidade, no futebol ou mesmo nas suas próprias aldeias. Demonstra a força com a qual souberam e sabem subverter e transformar as intenções por parte do estado brasileiro de dominá-las, em uma recuperação do equilíbrio entre os domínios femininos e masculinos necessários para o fortalecimento do seu tecido social.