A partir do dia 13, um novo torneio continental vai movimentar o Brasil. O temor de especialistas em infectologia e epidemiologia é de que o coronavírus aproveite a circulação de comitivas estrangeiras, pessoal de apoio e, eventualmente, torcedores em meio à Copa América para ampliar ainda mais o placar da pandemia sobre a população — mais de 465 mil mortos e 16 milhões de casos até a tarde desta quarta-feira (2).
Segundo especialistas consultados por GZH, a confirmação do torneio intensifica o risco de o país registrar mais casos e óbitos, além de favorecer a migração internacional de diferentes cepas do coronavírus como a P.1, identificada originalmente no Brasil, e as variantes indiana e sul-africana recentemente observadas na Argentina. Assim, ao retornar a seus países, as delegações poderiam levar na bagagem também mutações do vírus.
Assessor de Medicina e Saúde da Federação Gaúcha de Futebol (FGF), o epidemiologista Paulo Petry avalia que a copa, hoje, mesmo sem a presença de torcida nos estádios representa uma ameaça a mais ao já sobrecarregado sistema de saúde brasileiro.
— Aumenta o perigo da pandemia porque vão circular várias delegações que não se resumem aos atletas, muitas vindas de países com ritmo de vacinação muito lento e sob um momento difícil de contaminações. Há outras competições de futebol ocorrendo, mas um erro não justifica outro — opina Petry.
Medidas já anunciadas para aumentar a segurança, como testagem ou vacinação do pessoal envolvido, não tranquilizam os profissionais de saúde.
— Estratégias adotadas em outras competições não contiveram surtos. Vimos isso ocorrer recentemente na Libertadores com o River Plate (teve 25 casos confirmados no mês passado) — analisa o infectologista e membro do comitê Covid-19 da Sociedade Riograndense de Infectologia, Ronaldo Hallal.
Os profissionais também temem que a competição transmita uma falsa sensação de que o cenário epidemiológico está menos grave atualmente. Veja, a seguir, respostas dos especialistas em saúde a algumas das principais questões sanitárias envolvendo a competição.
Perguntas e respostas sobre o impacto da Copa América
A realização da Copa América em meio à pandemia traz riscos sanitários ao Brasil?
Sim. Na avaliação de infectologistas e epidemiologistas consultados por GZH, todo evento que resulte em aumento da circulação de pessoas ou favoreça a possibilidade de aglomerações aumenta o risco de transmissão do coronavírus e, de surtos e, por consequência, o agravamento da pandemia. Esse risco pode ser aumentado ou diminuído conforme a adoção de medidas preventivas, mas jamais será anulado em razão, por exemplo, de limitações em estratégias de testagem e vacinação (como os prazos mínimos necessários para a imunização ter efeito).
Quais os riscos mais significativos?
Segundo o epidemiologista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paulo Petry, a principal ameaça é o aumento na transmissão do vírus a partir do aumento da circulação de delegações de diferentes países com altos níveis de transmissão e, em sua grande maioria, baixíssima cobertura vacinal (abaixo de 10% da população em sete dos 10 países envolvidos) — além de jornalistas, funcionários de apoio e, eventualmente, torcedores. Há ainda riscos adicionais como a migração de diferentes cepas do coronavírus entre os países envolvidos.
Aumenta a possibilidade de termos novas cepas no Brasil?
Sim. A cepa indiana e a sul-africana, consideradas mais transmissíveis, já foram oficialmente identificadas na Argentina, por exemplo. Em sentido oposto, a variante P.1, identificada pela primeira vez no Brasil, já cruzou fronteiras e contribuiu para agravar a pandemia recentemente em outros países sul-americanos como Peru, Uruguai e Paraguai. Quanto maior a circulação de pessoas entre países, maior o risco de as diferentes cepas encontradas em cada um migrarem também.
— Provavelmente, aumentará a variedade genética do vírus — avalia o infectologista e membro do Comitê Covid-19 da Sociedade Riograndense de Infectologia Ronaldo Hallal.
Por que a Copa América desperta preocupação se há outras competições internacionais de futebol em andamento, como Libertadores e Sul-Americana?
Porque, segundo especialistas, o risco em uma pandemia é sempre cumulativo. A cada vez que se acrescenta um fator de perigo, ele se soma aos anteriores para ampliar a ameaça de contágio. No caso da Copa América, fatores como a dimensão do evento, a quantidade de pessoas e de diferentes países envolvidos amplifica o temor. Outra questão apontada por infectologistas e epidemiologistas é a mensagem que a realização de um evento desse porte transmite à população, podendo dar a sensação de que a doença está sob controle.
— É verdade que uma Libertadores não é muito diferente, embora sejam delegações em menor número. A questão é que um erro não justifica outro, e a Copa vai aumentar a circulação de pessoas de diferentes países — avalia o epidemiologista Paulo Petry.
A vacinação das delegações não garantirá proteção?
Não. Até agora, seis seleções tomaram a primeira dose da CoronaVac por meio de uma parceria com o laboratório chinês Sinovac (Chile, Bolívia, Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela). Brasil, Argentina, Peru e Colômbia ainda não receberam qualquer aplicação.
São necessárias duas doses para uma imunização eficiente. Um estudo divulgado em abril, realizado no Chile, apontou eficácia de apenas 16% da CoronaVac com dose única. Para alcançar a proteção adequada, é obrigatório tomar as duas injeções em um intervalo recomendado de 21 a 28 dias e, depois disso, ainda aguardar mais duas semanas para o sistema imunológico produzir os anticorpos — ou seja, no mínimo, 35 dias. Nesta quarta-feira (2), faltavam 11 dias para o início da competição.
— Vacinar hoje as pessoas terá impacto zero. Não dá tempo — resume o mestre em Saúde Pública pela Universidade de Harvard e pesquisador da USP Marcio Sommer Bittencourt.
É possível usar exames PCR para reduzir o risco de contágio?
Sim, mas a experiência recente demonstra que mesmo a testagem frequente não elimina o risco de contaminação e transmissão do vírus. O infectologista Ronaldo Hallal lembra que clubes envolvidos em competições nacionais e continentais como Grêmio e River Plate divulgaram a ocorrência de surtos nas últimas semanas. O argentino River registrou um surto com pelo menos 25 casos no mês passado.
Isso ocorre porque uma pessoa pode se contaminar entre as testagens, e mesmo um exame mais preciso como o PCR pode resultar em um falso negativo (não detecta o vírus, embora ele esteja presente).
— Os surtos (de covid-19 no futebol) não têm sido contidos pelas estratégias de testagem continuada. Acredito que a Libertadores não deveria estar ocorrendo, muito menos um outro torneio organizado às pressas em um país em que as UTIs seguem sob ocupação acima de 85% ou 90% — observa Hallal.
Qual a situação atual da pandemia nos países que estarão representados na Copa América?
Cinco países registraram, na média dos sete dias anteriores a 1º de junho, média de novos casos por milhão de habitantes superior ao do Brasil (Uruguai, Argentina, Colômbia, Paraguai e Chile). Quatro tiveram maior registro proporcional de óbitos por coronavírus no mesmo período — Uruguai, Paraguai, Argentina e Colômbia. A taxa do Uruguai, que lidera esse ranking de mortalidade, ficou em 15 óbitos diários por milhão, contra 8,8 do Brasil.
Como está o andamento da vacinação nos países que terão comitivas na Copa América?
O Chile é o país que mais atendeu a população com esquema vacinal completo (que potencializa a imunidade). Ainda assim, os cerca de 42% de pessoas vacinadas integralmente ainda está longe do patamar de 70% calculado para gerar imunidade coletiva e frear a circulação do vírus. Sete dos 10 países participantes vacinaram menos do que o Brasil. Veja a lista abaixo:
- Chile – 41,9%
- Uruguai – 29,8%
- Brasil – 10,5%
- Colômbia - 6,5%
- Argentina – 6,3%
- Equador – 3,8%
- Peru – 3,6%
- Bolívia - 3%
- Paraguai – 1%
- Venezuela – 0%
Obs.: dados disponíveis até a tarde desta quarta (2) no site Our World In Data, que pode ter algum atraso em relação ao divulgado nas mesmas datas por cada país.