Depois de mais de seis meses sem que nenhum atleta amador pisasse em quadras esportivas do Estado, nem lotasse as chuteiras de borrachinhas ou chegasse com os joelhos ralados pelo atrito da pele com a grama artificial, natural ou salão, proprietários dos estabelecimentos vivem um momento de expectativa para o retorno das atividades nos locais. Ainda que não exista data certa para a volta na Capital, na última segunda-feira, o governo gaúcho publicou, em edição extra do Diário Oficial do Estado, a autorização da volta das atividades de quadras esportivas para jogos coletivos no RS.
Porém, apesar de superado o cenário dramático, o clima ainda é de incerteza. Isso porque, de acordo com o texto do governo, as quadras só poderão abrir nas cidades que ficarem 14 dias sem bandeira vermelha ou preta no modelo de distanciamento controlado.
Porto Alegre, no momento, está na vermelha. Ou seja, na melhor das hipóteses, os locais ainda ficarão no mínimo mais duas semanas fechados. E, mesmo voltando após isto, em situação de bandeira amarela ou laranja, um agravamento da situação voltaria a cancelar jogos e atividades nas quadras.
Com a pandemia, as partidas não podem ter presença de público, e o intervalo entre elas precisa respeitar uma hora, com o objetivo de evitar aglomeração e permitir higienização. O texto do governo também veda o uso de espaços de entretenimento, como churrasqueiras e praça infantil. O Piratini entende que esse é um primeiro passo para o retorno de forma definitiva logo ali na frente.
— Tudo é um passo a passo, a volta do esporte coletivo é um grande avanço para a retomada das atividades esportivas, sempre respeitando o distanciamento, os protocolos. É tudo um processo. Dali em diante, a retomada tende a ter mais possibilidade. Temos que pensar na vida primeiro, não só no negócio, mas entendemos essa questão de parte deles. Hoje, ainda bem, o comitê de gestão do distanciamento está levando muito em consideração o que a Secretaria (de Esporte e Lazer) tem dito e sugerido — afirma Marcelo Gigoski, coordenador da assessoria técnica da Secretaria de Esporte e Lazer e representante da secretaria no comitê de crise do Estado.
Ainda que um retorno esteja no horizonte, os seis meses sem atividade pareceram mais longos para quem é vive deste negócio. Sem representatividade no setor público, foi criada uma associação para facilitar o diálogo com as autoridades municipais e estaduais.
A Associação Recreativa Cultural Esportiva do Futebol Amador do RS (Arecefa-RS) estima que existam 168 estabelecimentos de quadras, entre futebol 7, futsal e quadras de grama natural, que dependem da abertura para continuarem trabalhando e empregando pessoas.
Conforme a entidade, cerca de 3 mil pessoas são empregadas de forma direta pelo setor e 9 mil de forma indireta. Os proprietários dos estabelecimentos alegam que em meio a abertura de outros setores, como shoppings, restaurantes e até mesmo academias, apenas o deles e o de eventos foram um dos poucos que não tiveram nenhum tipo de flexibilização durante esse período (de março a setembro).
— A situação é bem complicada para o nosso setor. Nós reduzimos o nosso faturamento em 100%. Isso acabou dificultando para mantermos nossos funcionários, manter contas e impostos em dia. Sentimos muito porque, além da nossa estrutura que é essencial e nossa única fonte de renda, ninguém estava preparado para ter tanto tempo de reserva para manter o negócio. Isso complica muito. O nosso setor movimenta muito dinheiro, na minha quadra passava cerca de 10 mil pessoas ao mês, por exemplo — relata Rodrigo Mendes, ex-jogador e proprietário de quadras de futebol 7 na zona norte da Capital.
Mesmo com a sinalização do governo estadual de uma possível flexibilização depois de 14 dias sem bandeira vermelha ou preta, os proprietários entendem que não há justiça em relação ao setor.
— Esse decreto do governo não nos ajuda tanto assim, nos dá uma luz em um primeiro momento, que pelo menos a gente ter sido visto e lembrado, mas fica muito comprometido. A liberação só ocorre mediante a gente ter essa continuidade de bandeira que não seja vermelha ou preta. É um critério adotado só para o nosso setor. Se pegarmos outras atividades, o simples fato de mudar a bandeira já libera as atividades. Agora, nos resta torcer para que os números caiam, se mantenham por duas semanas, para que possamos reabrir. Desde que fechamos, estamos prontos para reabrir — salienta Marcelo Borges, gestor da Planet Ball.
O presidente da Arecefa-RS Nery Müller, que esteve e está à frente da negociação com o governo estadual, afirma que a associação irá redigir um novo protocolo com medidas mais rígidas para que o governo autorize a reabertura dos locais mesmo em cidades com a bandeira vermelha.
— Em uma reunião, chegamos a conclusão que vamos fazer um novo protocolo pra atender a bandeira vermelha, mais rígido e outro pra bandeira amarela e laranja. Vamos encaminhar pra nossos governantes em âmbito Municipal e Estadual um novo protocolo com essas ressalvas, onde todos os associados terão um selo da associação, onde nos comprometemos a cumprir todas as exigências dos governantes e da Secretária de Saúde, sendo assim estaremos preparados com esses protocolos para reabertura imediata — disse.
No período de 180 dias em que não conseguiram reativar seus locais de trabalho, as contas começaram a chegar, salários de funcionários, aluguéis dos terrenos das quadras, cobranças de água, luz, gás, alimentos comprados para preencheram a copa e sem o dinheiro das quadras, as dívidas começaram a se acumular e superaram os R$ 100 mil em alguns estabelecimentos.
— Minha família toda trabalha em função do mercado de quadras de futebol 7 em Porto Alegre, então estamos nos vendo um pouco fragilizados nesse momento em que não conseguimos exercer nosso trabalho. É o nosso ganha-pão. Eu já tenho uma dívida de R$ 120 mil acumulada desde o começo de tudo — argumenta Jorge Soares, que trabalha há 40 anos no mercado gaúcho do esporte e é sócio em quadras em Porto Alegre.
O governo federal até disponibilizou um programa financeiro que contempla os proprietários das quadras. O Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe) oferece uma linha de crédito a microempreendedores individuais (MEIs) e micro e pequenas empresas, com faturamento anual de até R$ 4,8 milhões (em 2019).
A intenção era ajudar negócios de menor porte a superarem a crise do coronavírus e o dinheiro pode ser utilizada para investimentos e capital de giro, que inclui despesas como salários de funcionários, compra de insumos e contas de água e luz, por exemplo. A questão é que quase nenhum deles conseguiu contar com esse apoio do governo, alguns alegam burocracia, outros dizem que seguem buscando o dinheiro e apenas um deles teve acesso a linha de crédito, ainda que não de forma integral.
Como se viram os "atletas"?
Para quem tinha o hábito de se encontrar semanalmente em uma quadra de futebol para desfrutar de cerca de uma hora de jogo (por muitas vezes a única atividade física da semana), quando as quadras foram impossibilitadas de abrirem, milhares de pessoas viram a sagrada confraternização muito longe de acontecer novamente. Nesses seis meses, buscaram também alternativas para manterem a "chama" do futebol acesa entre os participantes da resenha futebolística. O advogado Eduardo Fochesatto, há 12 anos jogando com a mesma turma, diz que o grupo do Whatsapp passou a ter outros assuntos.
— A gente usava para marcar os jogos, definir os times, mas agora tem servido para a gente debater os jogos da rodada, mandar memes ou cornetar os adversários do Cartola FC (fantasy do Brasileirão de 2020). A resenha que rolava antes ou depois dos jogos passou a ser feita no Whatsapp — relata.
Outros atletas encontraram outras formas de engajarem os colegas, além de ajudarem os proprietários das quadras. O jornalista Gustavo Foster e seus parceiros de futebol encararam a parada frustrada para botarem em prática um plano que já vinha sendo pensado antes da pandemia, desenvolveram um uniforme para a equipe, que já atua junta desde 2012.
— Depois de oito anos jogando juntos, decidimos que era a hora de criar ter um uniforme do time. Escolhemos o nome da equipe, Arquibancada F.C., porque é o lugar em que o pessoal se reúne antes e depois das partidas, e mandamos fazer as camisetas. Estão todas em uma caixa lá em casa, esperando para quando voltarmos a nos ver. O legal foi que mobilizou todo mundo, desde a hora de decidir as cores, desenhar o escudo e escolher a numeração de cada um. Enquanto não tem bola rolando, vamos dando nosso jeito de passar o tempo — completa.
Agora, ainda que exista uma luz no final do túnel para que logo voltem aos gramados, Foster diz que eles e seus colegas ainda não pensam em retornar.
— Eu sigo em isolamento, e vejo que o pessoal do grupo também. Porto Alegre ainda não cumpre os requisitos pra liberação, e acho que, mesmo quando cumprir, não vamos nos sentir seguros para voltar. Fico feliz pelo pessoal da quadra, que está sofrendo, mas nós vamos esperar um pouco mais.