SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Às vésperas do maior feito da seleção uruguaia em Copas do Mundo, o técnico da Celeste, Juan López, deu uma declaração com ares premonitórios sobre o que ocorreria no Maracanã, em 16 de julho de 1950, contra a favorita seleção brasileira.
Em entrevista ao treinador gaúcho Otto Bumbel no Diário de Notícias, jornal de Porto Alegre, publicada no dia anterior ao jogo decisivo do Mundial, López antecipou o plano tático que colocaria em campo para tentar vencer o Brasil.
"Marcação cerrada sobre Zizinho e Jair, e o bloqueio de Danilo e Bauer, com contra-ataques rápidos pela direita, procurando decidir o jogo nos últimos minutos", afirmou o técnico.
Exatamente como López previa, a estratégia pôde ser colocada em prática e se mostrou acertada para que os uruguaios deixassem o Maracanã com a vitória e o título de campeões mundiais.
O ponta Alcides Ghiggia encontrou muitos espaços às costas de Bigode, no lado direito do ataque -o esquerdo da defesa brasileira-, para criar a jogada do gol de Schiaffino, antes que ele mesmo marcasse por ali o gol do triunfo que, como diz o jornalista José Maria de Aquino, sentenciou o goleiro Barbosa a um enterro em vida.
A fragilidade no setor marcado por Bigode foi explicada durante muito tempo por um suposto tapa que o capitão uruguaio, Obdulio Varela, teria dado no lateral esquerdo do Brasil, o que teria amedrontado o brasileiro, abrindo caminho para Ghiggia jogar mais à vontade. Bigode, assim como Obdulio, sempre negou que tenha havido qualquer agressão.
Outra teoria é a de que Flávio Costa, técnico brasileiro, teria pedido no vestiário aos seus jogadores que não fossem violentos na marcação aos adversários. Bigode, conhecido pelo jogo físico e viril, teria ficado inibido diante da recomendação. O lateral também negou que tenha diminuído a intensidade de seu jogo.
Para o anedotário do Maracanazo, as palavras de Juan López ao jornal gaúcho e principalmente a história do tapa, contada e repetida como exemplo da fraqueza anímica dos brasileiros diante dos uruguaios, compõem parte do folclore que cerca aquela partida.
Mas a própria campanha do Uruguai no Mundial sinaliza que os gols de Schiaffino e Ghiggia não foram um episódio fortuito, consequência de uma agressão negada tanto pelo agressor como pelo agredido. O Uruguai era forte pela direita, jogava assim, e assim atacaria o Brasil.
Companheiros de equipe no Peñarol, os dois haviam sido campeões uruguaios com o time aurinegro em 1949, que ganhou na época o apelido de "La Máquina". Do ataque da Celeste na Copa do Mundo, 4 dos 5 jogadores eram do Peñarol: Ghiggia, Míguez, Schiaffino e Vidal. Apenas Julio Pérez jogava no Nacional.
Logo na estreia dos uruguaios na Copa do Mundo, contra a Bolívia, Ghiggia arrancou pela direita, invadiu a grande área e rolou para trás. Schiaffino, meia-esquerda, correu em diagonal e, de frente para o gol, desviou o cruzamento de seu companheiro de Peñarol para marcar o terceiro do Uruguai na goleada por 8 a 0, no estádio Independência.
No primeiro jogo da fase final, os uruguaios foram ao Pacaembu enfrentar a Espanha. Ghiggia abriu o placar aos 27 minutos de jogo, recebendo bola em profundidade e invadindo a área pela direita. O camisa 7 chutou rasteiro, entre o goleiro Ramallets e a trave, um prenúncio do que aconteceria com Barbosa.
As raras imagens do empate em 2 a 2 com os espanhóis (Obdulio marcou o outro gol uruguaio) também mostram Ghiggia investindo pelo lado direito em uma arrancada muito semelhante à que faria no segundo gol contra o Brasil. O ponta invade a área e cruza para trás, mas um companheiro seu cabeceia para fora.
Antes do duelo final com os brasileiros, o Uruguai venceu a Suécia por 3 a 2, virando o jogo nos últimos finais, novamente no Pacaembu -Ghiggia marcou um e Míguez fez os gols da vitória no fim da partida. No outro jogo, o Brasil atropelou a Espanha por 6 a 1, e os mais de 150 mil torcedores presentes no Maracanã celebraram a goleada cantando "Touradas em Madri".
Em 16 de julho, uruguaios e brasileiros retornaram ao estádio municipal do Rio de Janeiro para a última partida do Mundial de 1950. O empate servia ao Brasil, que venceu os dois jogos anteriores.
No livro "Anatomia de uma derrota", publicado em 1986, o jornalista Paulo Perdigão fez a transcrição, na íntegra, da transmissão da Rádio Nacional do Rio naquele dia. Antonio Cordeiro narrava os lances à esquerda das cabines, enquanto Jorge Curi narrava os acontecimentos do outro lado.
Perdigão, de acordo com sua revisão do jogo, diz que Ghiggia e Bigode tiveram seis duelos no primeiro tempo. O suposto tapa de Obdulio no lateral teria acontecido aos 27 minutos de jogo e ocorrido logo após uma investida do ponta direita uruguaio para cima do lateral esquerdo brasileiro.
A partir daí, foram mais quatro confrontos diretos entre eles na etapa inicial. A estratégia de atacar o Brasil por aquele setor seria intensificada na segunda metade da partida, conforme antecipou Juan López ao Diário de Notícias na edição do dia anterior ao jogo.
No segundo tempo, o camisa 7 da Celeste passou a ser o jogador mais acionado no ataque, antes mesmo de o Brasil abrir o placar com Friaça, que aproveitou um dos únicos descuidos de Rodríguez Andrade para invadir a área pela direita e bater cruzado, vencendo o goleiro Máspoli.
Segundo a transcrição de Paulo Perdigão, foram mais 13 duelos entre o ponta e o lateral Bigode. Desses 13, o ponta conseguiu driblar o defensor em cinco oportunidades. A jogada individual e a arrancada em velocidade formavam as principais características do uruguaio.
Aos 20 minutos do segundo tempo, Ghiggia recebeu passe de Obdulio e encarou Bigode. O ponta driblou seu marcador, pisou na grande área e cruzou para trás. Schiaffino saiu da esquerda para o centro e quase da marca do pênalti pegou de primeira para empatar.
"Ao ver Ghiggia indo até a linha de fundo, eu o acompanhei. Fui cortando o campo na diagonal e cheguei até perto da pequena área, na posição de meia direita. Ghiggia me deu o passe preciso e chutei de primeira com o pé direito", descreveu Schiaffino à revista argentina El Gráfico anos depois. Foi a repetição do terceiro gol contra os bolivianos.
O segundo gol uruguaio, aos 33 minutos da etapa final, nasceu de uma recuperação de bola no meio de campo. Ghiggia tocou para Julio Pérez e começou sua corrida às costas de Bigode. Quando o lateral esquerdo saiu para pressionar Pérez, o meia lançou em profundidade para Ghiggia que, livre, iniciou a corrida até a grande área brasileira.
O camisa 7 invadiu a grande área e chutou rasteiro. Como diante da Espanha, a bola entrou no espaço entre Barbosa, que esperava pelo cruzamento, e a trave.
"O gol de Ghiggia nasceu de uma jogada que ele estava fazendo desde o início do jogo: corria para a linha de fundo e cruzava para trás. Vinham dois ou três jogadores pegar o cruzamento. Numa dessas, eu pensei que ele, Ghiggia, fosse fazer a mesma coisa, mas ele não fez. Tentou outra coisa e deu sorte. Azar meu, sorte de Ghiggia", disse Barbosa ao jornalista Geneton Moraes Neto para o documentário "Dossiê 50", que depois virou livro.
"Acho que Barbosa acreditou que eu faria a mesma jogada do primeiro gol, que cruzaria para trás porque Míguez vinha pedindo. Quando Barbosa abre um pouco, me deixa um espaço e, em questão de segundos, optei por chutar e por sorte saiu entre a trave e Barbosa", afirmou Ghiggia a uma biografia sua publicada em 2015, de autoria do jornalista Fernando Soria.
Tanto Barbosa como Ghiggia falam em sorte no lance, mas a jogada pelo lado direito era uma marca daquela seleção uruguaia. Nasceu no Peñarol campeão no ano anterior e, como Juan López anunciou aos jornais, seria a estratégia utilizada para tentar vencer o Brasil.
Na edição do dia 27 de julho da revista O Esporte Ilustrado, o cronista e editor-chefe da publicação, Levy Kleiman, questionou o técnico Flávio Costa sobre todos os sinais que a Celeste deu, ao longo do Mundial, de como enfrentariam sua equipe. "Por que ele não tomou medidas táticas para anular o plano dos uruguaios, publicamente anunciado na véspera do jogo?", indagou Kleiman.
Mas a essa altura, com o fato consumado, já era tarde demais.