A bola voltou a rolar nos estaduais. E a partir do próximo fim de semana recomeça o Brasileirão. O futebol ocupará seu lugar de costume na rotina dos torcedores e nas conversas dos brasileiros. Mas dúvidas permanecem sobre competições em meio à pandemia de coronavírus, que já vitimou mais de 90 mil pessoas no país: qual o impacto do retorno aos jogos neste contexto? É positivo (porque mexe com a paixão de um povo açoitado pela peste) ou é negativo (porque pode sugerir o retorno à vida normal)? Qual o papel que o futebol teve, ao longo da história, em contextos de guerras e pandemias?
Diante destas inquietações, GaúchaZH ouviu três psicanalistas. Como se supõe diante de um tema tão complexo, não há consenso. Como o futuro pós-pandemia, é impossível ter certezas sobre impactos anímicos com a volta do futebol.
Para o psicanalista e escritor Mário Corso, o futebol pode ajudar a "recompor o tecido social":
— Todas as coisas que ajudam na sociabilidade ajudam a recompor o tecido social. O brasileiro gosta de futebol, fala de futebol, faz parte da nossa rotina.
Psicanalista e escritor, Celso Gutfreind, também ouvido por GZH, alerta para o "exemplo ruim" que pode resultar da bola rolando.
— Acho que funciona como um exemplo ruim. Nós funcionamos muito por modelos que a gente internaliza. Esses modelos são as autoridades. A começar pelas autoridades das nossas casas, nos modelos de mãe e pai, mas também nas autoridades governamentais. Então, penso que abrir o futebol neste momento é negativo e acho que o saldo não é bom — pontua.
Médico psiquiatra e psicanalista, Paulo Oscar Teitelbaum interpreta como positivo o retorno do mais popular dos esportes no Brasil porque o futebol "dá vazão a sentimentos de paixão, alegria, inclusive dentro do contexto de distanciamento".
— Temos de lembrar o seguinte: estamos há quase cinco meses dominados por um pano de fundo de angústia, medo e incerteza. Todos estamos vivendo isso. Estamos cansados, adotando as medidas sanitárias, distanciamento, e nesse sentido ter a possibilidade de uma via de entretenimento é muito importante. Isso não exclui que todos os cuidados e campanhas de cuidados devam continuar. Mas por que é importante ter a volta do futebol? Porque ele envolve as pessoas emocionalmente de uma forma tão intensa, que propicia que se tenha uma ocupação emocional positiva — diz Teitelbaum, que integra da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA).
A seguir, Corso, Gutfreind e Teitelbaum respondem a três perguntas:
Mário Corso, psicanalista e escritor
O retorno do futebol contribui sob o ponto de vista psicológico ou atrapalha, dando sensação de normalidade?
A gente pode pensar os dois lados. Está todo mundo sedento, entediado e o futebol é um grande preenchedor do vazio da nossa vida. Nada conversa mais do que o futebol. Ele enche os nossos diálogos, comentários, não só na hora do jogo. Conversei com meus amigos mesmo sobre a patética rodada do Gauchão na quarta-feira. Imagino que desenvolva um pouco do sentido, dessa troca humana.
Enquanto não tiver torcida nos estádios, acho difícil alguém imaginar que há normalidade
MÁRIO CORSO
psicanalista e escritor
O futebol me entedia assistir, mas gosto de falar sobre os jogos, mesmo aqueles que não vi, porque ele torna-se um veículo de sociabilidade. Então, ele preenche de alguma forma o nosso dia a dia. Mas, por outro lado, é a mais importante das desimportâncias. É uma atividade não prioritária do ponto de vista prático. Não teria por que mexer essa engrenagem toda só para que o futebol voltasse.
O senhor é favorável à volta do futebol agora?
Não vejo com maus olhos essa volta do futebol, porque é muito impossível a pessoa achar que está tudo normal e se descuidar só porque os jogos voltaram. Há propaganda de que não há normalidade. Enquanto não tiver torcida nos estádios, acho difícil alguém imaginar que há normalidade.
Além do mais, a máquina do futebol faz girar muitas coisas como empregos, dinheiro. Cada negócio está buscando um jeito de não quebrar. O futebol está tentando colocar óleo nas engrenagens. Acho que o intuito é esse. Acho que, com a volta dos jogos, os clubes estão tentando não quebrar, não demitir e minimizar os prejuízos. Alguma coisa eles precisam fazer. A primeira questão é não se expor. Mas jogador de futebol não está nas categorias de risco, todo mundo é testado. Isso é uma postura responsável. Acho que é mais uma mensagem de 'arrumem um jeito de sobreviver' do que de 'está tudo normal'. Até porque não está normal.
Qual o papel do esporte na vida das pessoas nesses períodos de grandes traumas, como guerras e pandemias?
Todas as coisas que ajudam na sociabilidade ajudam a recompor o tecido social. O brasileiro gosta de futebol, fala de futebol, faz parte da nossa rotina. Talvez o próximo Carnaval seja importante para curar essa ferida. Não sei se o esporte teria essa importância, depende do exemplo que vão dar, se não acontecer algo importante.
A festa de São João tem uma importância grande no Norte e Nordeste do Brasil e não pôde ser feita. Muitas cidades vivem dessas festas, seja para o turismo, pela cultura mesmo, pela economia. Sem o futebol, e vale também para essas festas populares, que mobilizam muitas pessoas, parece que o tempo não passa.
O domingo sem futebol parece que não existe, que é outro dia. Os dias mesmo parecem todos janeiro, mas sem praia. Os dias são a impressão de que são todos iguais. Por isso, é tão importante o esporte neste contexto.
Celso Gutfreind, psicanalista e escritor
O retorno do futebol contribui sob o ponto de vista psicológico ou atrapalha, dando sensação de normalidade?
De fato, o futebol ajuda, é um entretenimento, faz bem para a saúde das pessoas, é um momento de relaxamento, de prazer, de distração, um momento lúdico e é muito importante que se tenha isso, essas janelas, essas fontes que promovem a saúde mental. Por outro lado, existe a realidade, e as coisas só podem funcionar dentro do bom senso da realidade.
Sem dúvida, os esportes ocupam e vão ocupar um espaço importante. A questão é quando e como
CELSO GUTFREIND
psicanalista e escritor
Tudo indica, cientificamente, que estamos em um momento em que não chegamos ainda na descida da curva (epidemiológica). Então, vejo, baseado nesses dados, como negativa a volta do futebol, e funcionando, sim, como um exemplo negativo, porque isso é decidido por autoridades, e viemos sofrendo no Brasil uma consequência de autoridades pouco firmes nos programas de saúde e nos planos de combate à pandemia.
O senhor é favorável à volta agora?
Penso que a retomada do futebol neste momento, por mais que se tenha cuidados, ela peca pela falta de firmeza das autoridades. Acho que funciona como um exemplo ruim. Nós funcionamos muito por modelos que a gente internaliza. Esses modelos são as autoridades. A começar pelas autoridades das nossas casas, nos modelos de mãe e pai, mas também nas autoridades governamentais. Então, penso que abrir o futebol neste momento é negativo e acho que o saldo não é bom.
Claro que estou me baseando nos consensos das políticas e nos dados científicos em relação ao atual andamento da pandemia. Acho que, em lugares onde essa curva já desceu, tomando todos os cuidados, seria diferente. Aí poderia se aproveitar essa parte positiva sem ter esse efeito negativo. Por isso, acho que o balanço, para nós, nesse momento, ele é negativo.
Qual o papel do esporte na vida das pessoas nesses períodos de grandes traumas, como guerras e pandemias?
Os esportes são criações humanas civilizatórias. É um recurso coletivo da civilização, onde a gente pode realmente sublimar ou transformar aquilo que é de uma natureza indomável, destrutiva, em algo social, aproveitável, construtivo. Nós sabemos o quanto os esportes promovem espaços de empatia, de solidariedade, que não seriam estimulados na sua ausência. Seríamos muito mais destrutivos se não fosse o esporte. De uma certa maneira, ele simboliza algumas coisas que, fora do símbolo, são muito destrutivas.
Por exemplo, uma violência sem destino nenhum, gratuita, daqui a pouco no esporte se torna uma luta, um esforço. Então, os esportes em geral são um grande recurso da nossa capacidade civilizatória, onde a gente transforma os nossos piores impulsos nos melhores, em coisas muito positivas. Em um momento de pandemia, em um momento traumático, ele é mais importante ainda. A gente sabe a importância que tem quando a gente oferece esportes em uma realidade traumática, difícil, seja ela social, seja ela motivada pela guerra, ou até em uma pandemia.
Então, sem dúvida, os esportes ocupam e vão ocupar um espaço importante. A questão é quando e como. Ou seja, o futebol e os esportes em geral são fundamentais para nos ajudar seja na vida normal e mais ainda em um momento de trauma como uma pandemia. Mas, dentro do enquadre e das necessidades da realidade.
Paulo Oscar Teitelbaum, médico psiquiatra e psicanalista da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)
O retorno do futebol contribui sob o ponto de vista psicológico ou atrapalha, dando sensação de normalidade?
A questão do futebol como qualquer outra das questões que estão em debate, seja do ponto de vista sanitário ou econômica, não é isolada do contexto. Quando temos mais de 90 mil mortes, a pior pandemia que já vivemos, precisamos dar o peso certo para isso. Como isso chega até as pessoas? Temos de pensar em como os fatos se integram, e não com se excluem. Nesse sentido, a volta do futebol, do ponto de vista de entretenimento, tem um papel muito importante dentro da sociedade. Especialmente aqui no Estado, em que o futebol tem um apelo muito grande.
Emocionalmente, é muito mais saudável grenalizar o Gre-Nal, o jogo em si, do que grenalizar a política nacional ou aspectos da saúde, como temos visto
PAULO OSCAR TEITELBAUM
médico psiquiatra e psicanalista
Temos de lembrar o seguinte: estamos há quase cinco meses dominados por um pano de fundo de angústia, medo e incerteza. Todos estamos vivendo isso. Estamos cansados, adotando as medidas sanitárias, distanciamento, e nesse sentido ter a possibilidade de uma via de entretenimento é muito importante. Isso não exclui que todos os cuidados e campanhas de cuidados devam continuar. Mas por que é importante ter a volta do futebol? Porque ele envolve as pessoas emocionalmente de uma forma tão intensa, que propicia que se tenha uma ocupação emocional positiva. Dá vazão a sentimentos de paixão, alegria, inclusive dentro do contexto de distanciamento. Ele possibilita que se possa ocupar o pensamento e sentimento com situações diferentes do que se vê todo dia, como doenças, mortes, riscos, que são sentimentos negativos.
Então, o futebol promove essa via de sentimentos positivos, de congraçamento entre as pessoas, e promove também a possibilidade de que se dê vazão a sentimentos de rivalidade, disputa, raiva, que também fazem parte da gente e têm algum aspecto saudável. Emocionalmente, é muito mais saudável grenalizar o Gre-Nal, o jogo em si, do que grenalizar a política nacional ou aspectos da saúde, como temos visto. Por isso, a volta do futebol tem sim um componente bastante positivo para o aspecto emocional da nossa coletividade.
O senhor é favorável à volta agora?
Sim, porque em meio aos sentimentos de angústia, medo e incerteza, o futebol oferece momentos de lazer e entretenimento que podem ser desfrutados em casa, com esse distanciamento. O futebol também tem a capacidade de transmitir uma mensagem em relação aos cuidados. Na minha maneira de ver, essa transmissão das mensagens se sobrepõem à ideia de repassar a mensagem de volta à normalidade, que poderia ter um efeito negativo em relação aos cuidados.
O futebol está transmitindo uma mensagem positiva quando se vê toda a divulgação dos testes dos jogadores, as imagens da chegada ao estádio com distanciamento, com máscaras, os cuidados nas viagens. Portando, acredito que tenha esse aspecto positivo da mensagem que está sendo transmitida.
Qual o papel do esporte na vida das pessoas nesses períodos de grandes traumas, como guerras e pandemias?
Tanto o futebol como qualquer situação de apelo popular pode ser usada para o mal, no sentido de ser manipulada no contexto do pão e circo, de ocupar as pessoas com coisas banais em detrimento a situações graves. Até pode. Mas acredito que qualquer disputa esportiva representa uma evolução emocional da própria humanidade.
O futebol ou qualquer outro esporte é uma guerra simulada. São dois exércitos em busca de uma conquista. Se pensarmos em termos de evolução emocional do indivíduo, da humanidade, quando se eleva essa disputa a um esporte, representa uma evolução em termos humanos de relacionamento. Então, historicamente no contexto da evolução humana, o esporte tem um papel importante no bem-estar civilizado do convívio humano. A disputa, a rivalidade, o desejo da conquista, são coisas do ser humano, fazem parte dos nossos instintos.
Pensando nos homens das cavernas, eles precisavam comer e disputavam um pedaço de carne até a morte. Isso se transformou, foi aperfeiçoado, e chegamos a uma partida de futebol. Faz parte do desenvolvimento humano. Por isso, entendo que a prática e a paixão pelo esporte também têm essa função que é emocionalmente importante, de dar vazão a esses instintos.