Esta terça-feira (19) marca uma das datas mais importantes do futebol brasileiro. Não se comemora aniversário de nenhuma das cinco Copas do Mundo conquistadas pelo Brasil, mas um fato quase tão importante quanto um título mundial. Há exatos 50 anos, Pelé marcava o gol mil de sua carreira.
Já quatro vezes campeão do mundo — duas com a Seleção Brasileira e outras duas com o Santos —, Pelé era indiscutivelmente o melhor jogador do mundo 50 anos atrás. O ano de 1969 foi marcado pela expectativa pelo milésimo gol. E ele veio naquele 19 de novembro que entrou para a história do futebol.
O palco não poderia ser melhor: o maior estádio do mundo, o Maracanã. Naquela noite, o Santos enfrentou o Vasco da Gama pelo torneio Robertão. O placar era de 1 a 1 quando, já no segundo tempo, Pelé foi derrubado na área. Pênalti marcado pelo árbitro pernambucano Manoel Amaro de Lima para a vibração de um estádio inteiro — até mesmo os vascaínos queriam ser testemunhas daquele momento e comemoraram junto a santistas e torcedores de outros clubes do Rio de Janeiro, que foram ao Maracanã na expectativa pelo milésimo gol.
O único que parecia não querer aquele gol era o goleiro vascaíno Andrada. O argentino, falecido em setembro aos 80 anos, tentou desestabilizar Pelé antes da cobrança. O rei do futebol ignorou a estratégia. Com a calma dos grandes gênios, caminhou até a bola e mesmo que o goleiro não tenha se mexido diante de sua tradicional paradinha, colocou a bola no canto e converteu o gol mil.
— Na hora, a perna tremeu, o joelho também. Eu só pensava “caramba, esse eu não posso perder”. Graças a Deus no fim deu tudo certo — recordou o Rei Pelé.
O jornalista Lauro Quadros, que trabalhou na cobertura daquele jogo em 19 de novembro de 1969, acredita que até mesmo o goleiro Andrada queria o gol, tamanho o entusiasmo do público presente.
— Até hoje eu me pergunto: “Será que o Andrada fez tudo aquilo só para chamar atenção?” Acho que, no fundo, ele não ficou bravo de ter sofrido aquele gol. Ele entrou para história por ter sido o goleiro do gol mil do Pelé — contou.
O gol mil de Pelé parou o jogo. O craque foi dentro da goleiro buscar a bola enquanto dezenas de jornalistas o seguiram. Aos repórteres, pediu atenção com as crianças brasileiras.
— Pelo amor de Deus, minha gente. Agora que todos estão ouvindo, faço um apelo especial a todos: ajudem as crianças pobres, ajudem os desamparados. É o único apelo nesta hora muito especial para mim — pediu o rei.
Pelé ainda fez outros 284 gols até encerrar a carreira em outubro de 1977, vestindo a camisa do Cosmos, dos EUA. Quatro deles foram anotados no Mundial de 1970, no México, quando se tornou o primeiro e até hoje único jogador a ganhar três vezes a Copa do Mundo. O ex-jogador do Santos e ex-ministro dos Esportes relembra à reportagem o gol mil e avalia os casos de racismo no futebol, a atuação de Maradona como técnico e a experiência de treinadores estrangeiros no Brasil.
Com o envelhecimento, você se sente mais distante do mito Pelé?
Não há uma diferença muito grande no meu convívio. Eu sempre respeitei todo mundo. Graças a Deus, qualquer país que eu vou me recebe muito bem. Nunca fiz inimizade com ninguém. É até um prêmio de Deus. Toda hora tem um convite para fazer alguma coisa na China, no Japão...
Você não viajará mais? Tomou essa decisão?
Não tenho viajado mais por causa da operação, da cirurgia. Foram três cirurgias. Eu até brinco: Deus foi bom comigo. Depois que eu parei de jogar futebol, ele mandou tudo que tinha de mandar de fratura, de cirurgia, de coluna. Graças a Deus foi nesses últimos três anos, dois anos e meio.
Em campo, você teve muitos momentos intensos. Um deles faz 50 anos no dia 19 de novembro: o milésimo gol. Outro episódio aconteceu em 1977, na sua despedida do Cosmos, em que você disse "love, love, love". Como foram esses dois momentos diferentes? O que você lembra deles?
Essa coisa da recepção do americano com "love, love, love", eu acho que para quem não é do país foi uma das maiores homenagens que eu pude ter. No Brasil eu tinha certeza. Até eu brinco: só os corintianos não gostaram, porque eu fiz o Corinthians sofrer muito (sorri). Mas agora, falando sério, eu jamais esperava que o americano, que é um povo meio frio e que tem muitos artistas... O futebol não é o maior esporte lá. É o beisebol, o futebol americano.
Você dormia ao ver os jogos de beisebol?
De vez em quando a gente ia ver e falava: "Vamos dar uma descansada, uma cochilada aqui?".
Esses foram os momentos mais fortes com o público?
O milésimo gol, de pênalti... Todo mundo fala que bater pênalti é fácil. Mas é fácil quando está dois a zero, três a zero. Mas tremer como eu tremi quando fui bater meu pênalti... Duvido que alguém já tenha passado por isso. Eu falava: "meu Deus do céu, e se eu perder o pênalti?". O mais engraçado é que eles fizeram uma homenagem, mas ninguém ficou na área. Quando olhei para trás, estava todo o time no meio de campo. Eu falei: pô, se bate na trave ou o goleiro rebate, meu time está todo lá atrás. Falei: caramba, ninguém veio!
O que você está achando de Jorge Jesus, um técnico estrangeiro com sucesso no futebol brasileiro?
Já tiveram alguns técnicos estrangeiros no Brasil, mas nessas condições acho que não teve nenhum técnico no Brasil que se comparasse a esse. O Santos está em terceiro lugar, pode até não ganhar, mas está com um time. Ele (Jorge Sampaoli) montou um time que todo mundo achava que não ia dar certo, só com jogadores estrangeiros. E eu acho que deu certo. Então foi uma surpresa muito grande.
Soube que Maradona voltou a ser técnico na Argentina?
Vi, acho que Pepito (assessor) me passou isso na semana passada. Eu falei: "Pepito, se tem uma coisa que eu jamais vou voltar a fazer é ser técnico". Profissional, não. Juvenil, infantil, amador, até trabalhar com criança, tudo bem. Mas profissional... Eu acho que essa loucura não vou fazer, não. Deus foi muito bom para mim para eu fazer essa loucura.
Você tem acompanhado os casos de racismo em estádios? Houve o episódio de Balotelli, na Itália, agora contra Taison, na Ucrânia, e outros no Brasil. O que pode ser feito para enfrentar o racismo no futebol?
Já tivemos isso há um tempo atrás e achavam que as coisas eram por causa do tempo. Agora que estamos no mundo moderno está acontecendo mais ou menos a mesma coisa. Mesmo uns absurdos que aconteceram no Maracanã, negócio de guerra, de briga, são coisas tristes que acontecem no futebol. O que eu acho é que tem que se tomar alguma decisão mesmo.
De punição?
Exato. Nós, os seres humanos, estamos ficando um pouco diferentes. Infelizmente, essas coisas que estão acontecendo agora não deviam acontecer mais.
Em relação ao período em que você foi jogador, essas manifestações racistas mudaram ou ainda são tão intensas quanto no passado? De racismo e de homofobia.
Eu acho que teve alguma mudança, mas infelizmente não chegou ao que eu acho que deveria ser para um esporte, para qualquer esporte, uma coisa de pessoas que não são doidas e estão juntas, participando de uma festa. É triste. Eu joguei em vários lugares. Graças a Deus nunca tive nenhum problema. Até na Argentina, que era uma rivalidade danada contra o Brasil, já tive jogo contra o Boca, contra o River, e não passamos por isso.
Você é o brasileiro mais conhecido no mundo e já teve uma participação política direta no Ministério dos Esportes. Como você avalia o momento político do Brasil?
Triste. Muito triste. Tá pior que o futebol. Embora a gente tenha alguns títulos que ainda dá para ganhar... Vamos torcer pro Flamengo ser campeão agora (da Libertadores). Tem o Brasil, tem o Flamengo. Mas na política está triste.
Você sente uma regressão?
Totalmente. Porque está sem rumo. Isso é triste porque você não sabe exatamente quem apoiar. Está numa situação muito difícil.