Ver uma mulher trabalhando na linha de frente dos clubes de futebol é um grande desafio no Brasil. Quando há, elas normalmente são nutricionistas e psicólogas. Nas comissões técnicas, no entanto, são raras. A exceção é Michele Kanitz, a única mulher analista de desempenho entre os clubes das séries A e B do Brasileirão. Com 27 anos, tem currículo de sobra para ser a responsável pelos relatórios entregues ao técnico Osmar Loss, do Guarani, após cada jogo e treino.
Engana-se quem pensa que a idade reservou a ela uma experiência modesta no esporte: aos 25, já era formada em Educação Física, pós-graduada em Futebol, acumulava cursos na área, além das licenças C e B da CBF. Com isso, virou técnica da equipe feminina do Ferroviária. A missão era disputar sua primeira Libertadores e defender o título conquistado pelo time de Araraquara em 2015. O troféu continental, porém, chegou em 2017, quando era auxiliar do Corinthians — e não deixou de lado a afinidade com a análise de desempenho.
Nascida em Muçum, cidade a 115 quilômetros de Porto Alegre, Michele tem a tarefa de esmiuçar os detalhes da movimentação dos jogadores do Guarani e traduzir as conclusões para Loss. É um trabalho solitário: em cima de imagens colhidas em jogos e treinos, ela traça a eficiência da movimentação dos jogares. A partir das informações repassadas por ela, o técnico arma sua estratégia e corrige os erros da equipe.
Respirar futebol nunca foi novidade para Michele: o pai e a mãe dela jogaram. Quando criança, até tentou o futsal, mas percebeu que teria mais chance se investisse em conhecimento para atuar nos bastidores.
— A televisão em casa era 24 horas de futebol. Sempre gostei muito e sempre soube que trabalharia com futebol — assegurou.
Agora, Michele faz o curso da licença A da CBF e também é instrutora de análise de desempenho da Conmebol. Ela é uma das referências no assunto no Brasil e na América Latina pelo currículo recheado de especializações na área. Frequentemente, faz viagens para ministrar cursos a atletas, dirigentes e participantes de comissões técnicas.
Por ser mulher, a analista recorrentemente precisa provar que sabe — e tem certeza — do que está falando. Com suas qualificações, conquistou respeito por onde passou, mas o caminho até o reconhecimento não foi fácil:
— O preconceito é de ver você primeiro como mulher e depois como profissional. Aconteceu das mais diversas formas, de clube grande a clube pequeno, de homens diferentes. É constrangedor e chato. Se eu fosse homem, tudo seria mais fácil. Mas tenho a segurança de fazer um bom trabalho.
Inspirada em Tite, Dorival Júnior, Osmar Loss e Emily Lima, Michele espera não ser a exceção feminina em um mundo tomado por homens durante muito tempo. Ela acredita que a abertura para o futebol feminino pode colaborar para que as mulheres tenham o espaço que merecem dentro do esporte.
— A modalidade vem crescendo desde que entrei. A obrigatoriedade tem dois lados. O positivo é que a categoria entra em clubes de camisa pesada, o que melhora a visibilidade. O negativo é que alguns clubes só vão emprestar a camisa, sem ajudar estruturalmente e financeiramente. Se for assim, como já existem alguns casos, o futebol feminino não vai crescer de imediato. Tem que ajudar em estrutura, financeiramente, assinar a carteira de trabalho dos funcionários. O mesmo processo realizado no futebol masculino — advertiu.