Palmeiras campeão brasileiro com Felipão e Cruzeiro bi da Copa do Brasil com Mano Menezes. Athletico-PR, de Tiago Nunes, vencedor da Copa Sul-Americana. Grêmio, de Renato, campeão da Recopa, e Inter, com Odair Hellmann, dono da melhor campanha entre clubes que subiram da Série B para a Série A. A temporada de 2018 foi mais um exemplo do quanto a escola gaúcha de treinadores obtém êxito no futebol nacional.
No entanto, para Tite, comandante da Seleção Brasileira, existem duas linhas filosóficas dentro do Rio Grande do Sul. Uma, adepta do jogo físico e da bola longa, encabeçada por Carlos Froner. A outra, que prefere a aproximação e troca de passes, projetada por Ênio Andrade. Para entender de que forma estes pensamentos se desenvolveram desde os primórdios até inspirar os profissionais da atualidade, montamos uma árvore genealógica dos treinadores gaúchos.
— Nós sempre tivemos técnicos que foram significativos por serem comandantes, de fato. Em parte, também sofremos uma influência de Uruguai e Argentina, pela proximidade. Acho que essas coisas todas favoreceram para a definição do futebol no Rio Grande do Sul. Não é um futebol de exibição, que se caracterize pelo brilho ou beleza plástica. Sempre foi muito aplicado e operário. Neste sentido, se afirmou o que se poderia chamar de escola gaúcha — afirma o jornalista Ruy Carlos Ostermann.
Otto Pedro Bumbel
Ele mesmo fazia a parte de fisicultor
GEADA
Centroavante do Grêmio em 1949
Até o fim da década de 1920, a figura do treinador sequer existia no Brasil. Cabia ao capitão de cada equipe escalar quem iniciaria os jogos. O primeiro gaúcho a se destacar na função foi Telêmaco Frazão de Lima. Ex-jogador do Grêmio (hoje equivalente a um volante), passou a atuar na beira do campo depois de se aposentar. Reproduzindo de maneira empírica o que fazia na época de atleta, foi bicampeão estadual (em 1931 e 1932), comandando o time que tinha o goleiro Lara, o meia Foguinho e o atacante Luiz Carvalho. Foi o responsável por convocar atletas para o Campeonato de Seleções Estaduais — torneio que antecedeu o Brasileirão. Em 1942, chegou a ser contratado pelo Vasco da Gama, mas voltou. Também foi presidente do clube. Pode ser considerado a raiz de tudo.
Entretanto, o primeiro gaúcho a estudar o esporte foi Otto Pedro Bumbel. Natural de Taquara, jogou no Flamengo e, por saber falar alemão, serviu de tradutor para o técnico húngaro Dori Kurschner, que apresentou o sistema WM aos brasileiros. Antes de voltar ao Rio Grande do Sul, ainda se formou na Escola de Educação Física do Exército. Foi contratado pelo Grêmio em um período em que a hegemonia era toda do rival. Com o time conhecido por "Rolo Compressor", o Inter enfileirava seis títulos gaúchos. Ainda assim, Bumbel conquistou as taças de 1946 e 1949, lançando como goleiro o jovem Sérgio Moacir Torres Nunes, que viria a se tornar treinador posteriormente.
— Naquele tempo não tinha essa preparação que tem hoje. Não tinha nem fisicultor. Ele mesmo fazia a parte de fisicultor. Cada semana ele conversava com um jogador diferente, assim ele analisava todos. A partir da análise que ele fazia, ele adotava uma forma de tratar o jogador — relata o centroavante Geada no livro Até a pé nós iremos, de Ruy Carlos Ostermann.
Talvez por desconhecimento, os jornais da época seguiam escalando o time gremista no esquema 2-3-5, mas Bumbel apresentava de maneira inédita o "WM" (uma espécie de 3-4-3). Deixou o Tricolor após uma excursão pela América Central. Treinou as seleções da Costa Rica e Honduras e, posteriormente, foi para a Europa. Em Portugal, na temporada de 1957-58, foi campeão nacional com o Porto. Na Espanha, em 1964-65, conquistou a atual Copa do Rei com o Atlético de Madrid. Foi o grande desbravador. Morreu em 1998.
José Francisco Duarte Júnior, o Teté
Os técnicos vencedores não vencem se impondo pela rigidez, mas passando sabedoria e conhecimento
VALDIR DE MORAIS
Goleiro da Seleção Brasileira no Pan-Americano de 1956
Conhecido por ser um dos grandes times da história do Inter, o "Rolo Compressor" conquistou oito títulos gaúchos ao longo da década de 1940. Revelou, entre outros jogadores, o ponteiro Tesourinha, que veio a se destacar pela Seleção Brasileira. Entretanto, não teve um treinador que mereça o status de formador daquele time, que se notabilizou por priorizar a individualidade de seus talentos.
Já a geração seguinte, essa sim, teve um comandante de fato. Aliás, nenhum outro treinador esteve mais vezes à beira do campo pelo Inter do que ele: José Francisco Duarte Júnior, o Teté. Nem Abel Braga ou Rubens Minelli. Foram mais de 330 partidas, conquistando quatro vezes o Gauchão (1951, 1952, 1953 e 1955). Entretanto, seu maior feito talvez tenha sido a goleada de 6 a 2 no primeiro Gre-Nal do Estádio Olímpico, em 1954, em que o atacante Larry marcou quatro gols. O sucesso foi tanto que a equipe recebeu o apelido de "Rolinho" (em referência aos antecessores) e o treinador ficou conhecido por "Marechal das Vitórias". A alcunha se devia menos aos dotes estratégicos e muito mais ao fato de Teté ser um militar reformado, que havia treinado o 9ª Regimento da Infantaria (atual Farroupilha, de Pelotas).
Em 1956, Teté convocou, treinou e comandou um selecionado de atletas de clubes gaúchos, que representou a Seleção Brasileira no Pan-Americano, no México. E assim, com jogadores do seu Inter, reforçados por atletas do Renner, do Grêmio e de outros clubes, voltou de lá com a medalha de ouro. Neste time, atuava, entre outros ótimos jogadores, Ênio Andrade — futuro técnico da dupla Gre-Nal.
— Teté era amigo dos jogadores, era da nossa confiança. Apesar de ser sério nas preleções, aceitava palpite deles. Até porque, o treinador que não aceita, perde a moral — atesta o ex-goleiro Valdir de Morais, que vê semelhanças entre Teté e Selviro Rodrigues, seu treinador no Renner campeão gaúcho de 1954, e com Osvaldo Brandão, que o comandou no Palmeiras.
— Os técnicos vencedores não vencem se impondo pela rigidez, mas passando sabedoria e conhecimento — conclui Valdir.
O título pan-americano foi o crepúsculo de Teté. Com o surgimento do futebol-força de Foguinho no Grêmio, acabou ficando ultrapassado. Como também não cuidava muito de sua saúde (era obeso e fumava muito), morreu jovem: em 1962, aos 54 anos.
Oswaldo Rolla, o Foguinho
Ele tinha uma premeditação. Transformou o futebol caminhado em futebol de velocidade
MILTON KUELLE
Meia do Grêmio na década de 1960
Antes de virar o "Seu Oswaldo Rolla", era apenas Foguinho — em referência aos cabelos ruivos. Meia voluntarioso do Grêmio, foi campeão gaúcho em 1931 e 1932, treinado por Telêmaco. Em 1935, marcou um dos gols da vitória no Gre-Nal Farroupilha, válido pelo Campeonato Citadino e última partida do goleiro Eurico Lara. Líder dentro de campo, dava indícios de que viraria treinador. E, de fato, virou. Porém, mais do que isso, organizou uma revolução no futebol gaúcho.
Em 1953, sob o comando do Cruzeiro de Porto Alegre, excursionou pela Europa, enfrentando italianos, turcos e suíços. Segurou um histórico 0 a 0 com o Real Madrid, de Alfredo Di Stéfano, em pleno Santiago Bernabéu. Acima disso, no Velho Continente, Foguinho viu de perto a evolução do futebol promovida pelos húngaros, que aliavam técnica, força e ampla movimentação. Era o que ele implementaria em seus futuros trabalhos. Quis o destino que, em 1955, o treinador parasse no recém-inaugurado Estádio Olímpico, fazendo os atletas subir correndo as arquibancadas, para aprimorar o preparo físico.
— Ele disse que iria fazer um time de futebol diferente de todos os times brasileiros, que privilegiavam o toque de bola. Ele tinha uma premeditação. Transformou o futebol caminhado em futebol de velocidade. Os adversários diziam "vocês só correm", e nós perguntávamos quanto estava o placar do jogo — afirma Milton Kuelle, apelidado de "Formiguinha" por ser o meia operário daquela equipe.
À frente do Grêmio, Foguinho conquistou cinco Campeonatos Gaúchos de maneira consecutiva (1956, 1957, 1958, 1959 e 1960) — feito até hoje inalcançado por outro profissional. Organizado em um moderno 4-2-4, o Grêmio dispunha de jogadores como os zagueiros Aírton Pavilhão e Calvet, o lateral Ortunho, os atacante Gessy e Juarez Tanque. Quando deixou o clube, em 1961, estava enraizada a identidade do "futebol-força", que foi seguida à risca pelos futuros treinadores gremistas (Ênio Rodrigues, Carlos Froner e Sérgio Moacir), que fariam o Tricolor conquistar mais sete Estaduais em sequência.
Foguinho ainda passou por Cruzeiro, Pelotas e até pelo rival Inter — sem tanto êxito. Foi árbitro e comentarista na Rádio Gaúcha. Morreu em 1996 e só foi superado em 2015, por Felipão, como o técnico que mais vezes comandou o Grêmio.
Carlos Froner
Era gritão, mas um homem muito íntegro e cordial fora do campo
JOÃO SEVERIANO
Meia do Grêmio nas décadas de 1960 e 1970
Capitão da reserva do Exército, o são-borjense Carlos Froner chamou a atenção após bons trabalhos por Cruzeiro e Aimoré. Com uma filosofia de jogo que privilegiava a imposição física, bola aérea e contra-ataques, assemelhava-se ao técnico gremista Foguinho. Por isso, foi contratado pelo Inter, em 1962, para romper com a hegemonia do rival no Estado. Acabou demitido em meio ao campeonato e criou uma antipatia ao clube dos Eucaliptos. Automaticamente, aproximou-se do Grêmio, por quem foi contratado e deu sequência às conquistas estaduais (1964, 1965 e 1967). Em 1966, comandou uma Seleção Brasileira formada por atletas da dupla Gre-Nal que conquistou a Taça Bernardo O'Higgins, em dois amistosos contra o Chile.
— Tudo começou pelo Foguinho, que foi meu treinador por pouco tempo. No nosso tempo não tinha toque de bola. Isso era para humilhar o adversário. A gente corria mais em direção ao gol — avalia o meia João Severiano, que atuou no Grêmio na década de 1960 sob o comando, entre outros, de Froner.
— Ele era retranqueiro. Gostava de armar um esquema para não tomar gol. Colocava zagueiro de centro-médio e centro-médio de meia. Era gritão, mas um homem muito íntegro e cordial fora do campo — completa Joãozinho.
Rígido no trato com os atletas (até pela formação militar) e adepto de um estilo de jogo mais pragmático, que priorizava a organização defensiva, era acusado de ser "retranqueiro". Esta fama se expandiu quando deixou o Rio Grande do Sul para treinar Santa Cruz de Recife, Bahia, Vitória, Flamengo e Vasco. Mas, ao mesmo tempo, foi modelo para muitos treinadores no interior do Estado. No Brasileirão de 1978, por exemplo, fez uma boa campanha com o Caxias, do zagueiro Luiz Felipe Scolari — que até hoje não esconde ter no "Capitão Froner" seu grande mentor.
Em 1984, quando Valdir Espinosa não renovou contrato após o título mundial, Froner retornou ao Grêmio. Destoava completamente do antigo comandante, mas ainda assim chegou à final da Libertadores, sendo derrotado pelos argentinos do Independiente, e foi semifinalista do Brasileirão — seu último grande trabalho.
Afastou-se do futebol em 1992 e, uma década depois, morreu — às vésperas de seu pupilo Felipão embarcar para a Ásia, onde conquistaria a Copa do Mundo sob o comando da Seleção Brasileira. O bastão estava entregue em boas mãos.
Ênio Andrade
Não se via ele fazendo gestos fora do campo. Analisava bem o que estava acontecendo no jogo
MAURO GALVÃO
Zagueiro do Inter em 1979
Com o surgimento do Campeonato Brasileiro, a dupla Gre-Nal passou a sonhar com voos maiores e trouxe treinadores de fora do Estado. No Olímpico, a aposta foi no carioca Otto Gloria. Mas foi no recém-inaugurado Beira-Rio que a mistura do jogo físico de Daltro Menezes com a cadência brasileira de Dino Sani foi melhor sucedida. Brotavam jogadores da base, como Cláudio Duarte, Falcão e Carpegiani.
Foi nesta época em que o porto-alegrense Ênio Andrade ganhou sua primeira chance no Grêmio. Não conseguiu evitar o título gaúcho nem o bicampeonato nacional dos rivais — organizados por Rubens Minelli no 4-3-3. Mas herdaria os frutos daquela mistura excepcional.
Como meia, Ênio jogou no início do "Rolinho", nos anos 1950. Com a camisa do Renner, e treinado pelo professor de educação física Selviro Rodrigues, foi campeão gaúcho em 1954. Parou no Palmeiras de Osvaldo Brandão (outro gaúcho, também ex-jogador do Inter) e fez parte do elenco campeão nacional de 1960.
Como treinador, migrou de clube para clube até chegar ao Beira-Rio em 1979. Reorganizou a equipe que havia terminado o Gauchão em 3º lugar. Lançou Mauro Galvão e, com a liderança de Falcão, conquistou o Brasileiro de maneira invicta.
— Não se via ele fazendo gestos fora do campo. Analisava bem o que estava acontecendo no jogo e, quando a gente ia para o vestiário, ele dizia por onde tinha que atacar, como melhorar a parte defensiva — relata o ex-zagueiro Mauro Galvão.
Ênio continuou no Inter até 1980, quando perdeu a final da Libertadores para o Nacional de Montevidéu. Mas foi parar no Grêmio e repetiu o mesmo modelo de jogo: defesa sólida, troca de passes e competitividade. Com esta fórmula, conquistou o Brasileirão de 1981.
Deixou Porto Alegre e foi responsável por um dos mais inusitados campeões nacionais: Coritiba. Voltou ao Inter e, comandando um time limitado tecnicamente, foi vice-campeão em 1987, perdendo a final para o Flamengo de Zico, Renato e Bebeto. Teve no Cruzeiro, no início dos anos 1990, seu último grande trabalho. Morreuu em 1997, deixando um legado que serviu de inspiração para outros grandes treinadores, como Otacílio Gonçalves, Mano Menezes e Tite.
— Tite, com certeza, aprendeu bastante com o "seu Ênio". Gostei muito de trabalhar com ele. Tem algumas diferenças, claro. Tite gosta de motivar os jogadores pela emoção na palestra — conclui Galvão que, com Tite, foi campeão da Copa do Brasil em 2001 pelo Grêmio.
Valdir Espinosa
Não tenho a pretensão de dizer que o que o Renato faz é o que eu fazia
VALDIR ESPINOSA
Técnico campeão mundial com o Grêmio em 1983
Valdir Atahualpa Ramires Espinosa. O nome parece de um estrangeiro. E é exatamente isso o que ele representa na escola gaúcha de treinadores. Lateral revelado no início dos anos 1970, deixou o Olímpico para jogar por CSA, Vitória e Esportivo antes de anunciar sua aposentadoria como atleta.
Foi no clube de Bento Gonçalves que se tornou técnico de futebol em 1979. Tendo no currículo um vice do campeonato gaúcho pelo clube do Interior, foi contratado por Fábio Koff. Chegou a Porto Alegre abaixo de críticas da imprensa local e de ídolos do clube, como Foguinho, sendo acusado de "acariocar" o estilo de jogo Tricolor. Fã confesso do Flamengo de Zico, que havia conquistado o mundo, Espinosa iniciava uma reconstrução do Grêmio tendo no jovem ponta Renato, então com 21 anos, a síntese do que queria: muita força e demasiada técnica.
— Minha inspiração foi o futebol que eu entendi e aprendi a jogar. Dizem que o futebol gaúcho é só força, mas se olharmos João Severiano, Milton Kuelle, Airton Pavilhão, vamos ver qualidade. O que eu trouxe para o Grêmio era a técnica que eu tinha visto, com quem eu tinha jogado, e que a mim encantava. Então a gente trouxe jogadores de qualidade e mostrava a eles que vinham pela qualidade técnica, mas tinham que aliar à determinação e força — explica Espinosa, que cita um treinador de fora do Estado como seu principal mentor: Otto Gloria.
— Chegou ao Grêmio com o status de um dos maiores técnicos do Brasil, treinador do grande Benfica, de Portugal. Então, a gente parava para ouvir o que ele tinha a dizer. Aquilo fez com que eu aprendesse cada vez mais — conclui.
Com esta filosofia de futebol, o time de Espinosa se diferenciava da identidade histórica do próprio Grêmio, mas também não se encaixava no modelo praticado no Brasil. Como um forasteiro, foi campeão da Libertadores e do Mundial em 1983.
Saindo do Olímpico, continuou obtendo êxito. No Paraguai, em 1986, encerrou um jejum de nove anos sem títulos nacionais do Cerro Porteño. No Rio de Janeiro, em 1989, fez o Botafogo voltar a vencer um Estadual 21 anos depois. Não é preciso pensar muito para decifrar que seu antigo pupilo, Renato Portaluppi, dá continuidade à obra de Espinosa.
— Se alguma coisa que ele trabalhou comigo, estiver aproveitando, que bacana. Mas, não tenho a pretensão de dizer que o que ele faz é o que eu fazia — comenta o próprio Valdir Espinosa.