A busca das famílias das vítimas do acidente na Colômbia por valores indenizatórios e outras medidas que proporcionem um recomeço é como a montagem de um quebra-cabeça repleto de peças soltas. Quase um ano após a queda do avião da LaMia, a maior parte da compensação financeira já garantida diz respeito ao pagamento dos direitos trabalhistas previstos em lei aos dependentes dos acidentados.
São valores que incluem saldo de salários, férias, 13º e outras verbas rescisórias de jogadores, funcionários da Chapecoense e demais profissionais embarcados no voo. Cada depósito varia conforme a remuneração da vítima. Ajudas financeiras pontuais também foram compartilhadas entre as famílias, como a arrecadação do amistoso da Seleção Brasileira com a Colômbia, em janeiro, e metade do que a própria Chapecoense recebeu em duelos como a Copa Suruga e o jogo festivo contra o Barcelona.
Em relação às vítimas que integravam a delegação, a Chapecoense afirma ter garantido o pagamento de 40 salários aos dependentes dos atletas e de 12 salários aos familiares dos demais funcionários – valores referentes a um seguro próprio, que variam de acordo com as remunerações. O clube também diz ter distribuído às famílias o dinheiro do “bicho” que seria pago à delegação, respeitando a divisão combinada pelos jogadores antes da tragédia, com fatias que ultrapassam R$ 70 mil.
A expressão “bicho” é comum no futebol para se referir a pagamentos informais como forma de premiação por vitórias e títulos conquistados. Algumas viúvas ainda teriam conseguido o benefício de pensão pelo INSS, com teto máximo de R$ 5 mil. Mas para a maioria das famílias que tinha o sustento garantido pelo trabalho de quem morreu na Colômbia, o socorro prestado ainda é pouco.
A principal luta é pelo direito aos valores do seguro de US$ 25 milhões contratado pela LaMia com a seguradora Bisa. Em março, a seguradora ofereceu proposta, não negociável, de U$ 200 mil de indenização individual. O problema, segundo familiares, é que além de a quantia ficar abaixo do valor total da apólice, a oferta estava condicionada a um termo de quitação de dívida. Ou seja, todos teriam de isentar a seguradora de desembolsar mais valores futuramente.
Isto porque, conforme a Bisa anunciou em março, a Colômbia não era um destino previsto no acordo contratual. Assim, o voo sobre o território colombiano deveria ao menos ter sido informado previamente, o que não aconteceu. O valor oferecido às vítimas, alega a seguradora, trata-se de um fundo humanitário. Insatisfeitos com a oferta, familiares negaram acordo.
A Chapecoense buscou os serviços de um escritório de advocacia em Florianópolis para processar a LaMia e o próprio governo boliviano. Segundo o assessor jurídico do clube, Marcelo Zolet, a ação deverá cobrar danos materiais por todo o gasto que a Chape teve em função da tragédia, desde custos hospitalares e verbas rescisórias até valores mais abrangentes, como os gastos com novas contratações para o time e perdas de atletas que poderiam ser negociados. Sabe-se apenas que a cobrança terá cifra milionária, ainda não definida.
– Será nossa ação principal por entendermos que a LaMia é o causador da tragédia e os órgãos fiscalizadores não exerceram a função que era deles. Se o pessoal da Bolívia vetasse o voo, o avião não teria decolado. São questões complexas de direito internacional. Estamos trabalhando juntos com esse escritório – destaca Zolet.
Clube responde ações trabalhistas
Mas a questão internacional não é a única dor de cabeça jurídica do clube. Ações contra a Chapecoense têm sido ajuizadas na Justiça do Trabalho na cidade. Até o fechamento desta edição, 17 ações já haviam sido movidas nas varas do Trabalho de Chapecó.
Segundo informações do Tribunal Regional do Trabalho, a maioria dos casos já teve audiência realizada, mas nenhuma ação foi julgada ainda nem há registro de acordos. O assessor jurídico da Chape diz que o clube não reconhece pendências trabalhistas além das rescisões já acertadas.
– Algumas famílias entendem que o clube deu causa ao acidente e deve ser condenado a pagar pensões. Entendemos que a Chapecoense não deu a causa do acidente, não é uma questão trabalhista. A investigação na Colômbia deu como causa a falta de combustível. Os órgãos oficiais tinham de fiscalizar isso – defende o advogado.
Hoje, o drama de quem perdeu entes queridos na viagem à Colômbia é acompanhado de perto por duas entidades: a Associação dos Familiares das Vítimas do Voo da Chapecoense (Afav-C) e a Associação Brasileira da Vítimas do Acidente com a Chapecoense (Abravic). As associações têm focos diferentes. Enquanto a Afav-C busca o direito a verbas indenizatórias e recursos permanentes, a Abravic tem atuação voltada à assistência social imediata. No mês passado, por exemplo, a Abravic celebrou convênio com a Chapecoense que garante à entidade o auxílio mensal de R$ 28 mil para ações especialmente voltadas à saúde.
– A questão macro nessa situação é a assistência social. As outras questões são secundárias. Temos como foco a assistência social, mas obviamente participamos de outras questões de interesse das famílias – diz o advogado Gabriel de Andrade, presidente da Abravic.
A exemplo da Abravic, a Afav-C também estreitou relações com a Chapecoense nos últimos meses. A associação, inclusive, prepara uma espécie de contrato para formalizar medidas com as quais o clube possa se comprometer. No documento deverão constar cláusulas referentes à exploração da imagem do acidente de forma coletiva, como em documentários e filmes, de modo que eventuais arrecadações sejam devidamente compartilhadas.
– Nosso foco é garantir que as famílias recebam tudo a que têm direito. A Abravic vai ao encontro de uma necessidade imediata, um suporte de curto a médio prazo. Nossos pleitos são mais amplos e definitivos, que possam garantir a cada familiar uma nova oportunidade de recomeçar a vida – anuncia Fabienne Belle, presidente da Afav-C e viúva do fisiologista Cesinha.
A associação, diz Fabienne, ainda não move processo contra qualquer instituição. Mas a entidade, garante, tem concentrado esforços na tentativa de viabilizar o pagamento da apólice de seguro contratada pela companhia aérea LaMia.
– No caso dessa ajuda humanitária, seria pago metade do valor da apólice por família, muito abaixo das indenizações pagas em um acidente aéreo. Não cobriria a perda real que tivemos. Não podemos dar um valor à vida, mas existem cálculos técnicos que os advogados usam para as causas e esse valor não seria coerente com a realidade – analisa.
Assistência em boa hora
Viúva do massagista Sérgio Luis Ferreira de Jesus, o Serginho, a funcionária pública Dicléia Johann de Jesus é uma das pessoas que esperam pelo seguro da companhia aérea. Ela também não esconde certa mágoa com a Chapecoense, embora garanta que não pretende contestar o clube judicialmente.
– O Sérgio amava o que fazia, o clube, desde criança. A renda dele é que mantinha nossa situação como boa. Nossa filha nunca trabalhou, apenas estudava. Era a premiação, o bicho, salário por fora. Nós perdemos tudo financeiramente, além da razão de viver. Ficamos sem convênio de saúde, sem nada. As pessoas me perguntam porque não entrei com ação trabalhista contra o clube. Como eu disse, aprendi a amar o clube junto com o meu marido, criei minha filha dentro dele. Dinheiro nenhum traz meu marido de volta. Acho que quem tem que pagar por algo são os responsáveis pela aviação – desabafa
Sem a companhia do marido para cuidar de uma criança de 2 anos e meio, ela ao menos tem a ajuda da Abravic para custear a faculdade da filha de 21 anos.
– Temos um pouco mais de assistência desde a criação da Abravic. Estou contente porque nos ajudam com a bolsa da faculdade da minha filha e nos amparam de alguma forma. Ofereceram psicólogo, psiquiatra, o que for preciso. Já não nos sentimos tão sozinhos. Há uma luz no fundo do túnel, brilhando. Mas o clube falhou bastante conosco – lamenta.