Dono de quatro medalhas olímpicas, um recorde da natação brasileira, Gustavo Borges, 44 anos, empunha o microfone com naturalidade. Em visita à Associação Leopoldina Juvenil, um dos clubes que adotam a metodologia de gestão aquática criada pelo atleta, ele falou, no último dia 10, para uma atenta plateia formada por nadadores mirins e seus pais.
Desde que deixou as piscinas, em 2004, dedica-se a discutir – e a melhorar – o esporte brasileiro, sobre o qual demonstra profundo conhecimento. Não tece críticas a dirigentes específicos, mas detona o sistema como um todo. Pede transparência, mais participação dos atletas e uma estrutura organizacional que, em vez de copiar modelos estrangeiros, seja adaptada à realidade do país.
Como tem sido o trabalho junto a crianças, utilizando o método que você criou?
A Metodologia Gustavo Borges é um trabalho focado na gestão aquática como um todo. Tem parceiros no Brasil inteiro. É comum que eu faça visitas como essa, mantendo contato com clubes que utilizam a metodologia. A ideia é poder ampliar o relacionamento e passar uma mensagem positiva para os jovens.
Como é essa relação com crianças que não necessariamente vão se tornar atletas, mas estão em contato com o esporte?
É desafiador, porque o jovem, em especial a criança, é muito autêntico. Então, se você não é interessante ou a mensagem que você está passando não é legal, eles não vão fingir que estão gostando. O adulto finge. A gente olha, bate palma, depois vai lá fazer uma crítica no Facebook. A criança, não. Você tem de conquistar no momento. Quando você tem esse desafio, é como se fosse uma prova olímpica. Tem uma plateia com crianças de 12 anos e adultos misturados. Se eu não estou ligado nisso, fico conversando só com adultos. Fica chato. Daí eles já pegam o telefone, o videogame, vão fazer outra coisa. A conexão com a criança é diferente, tem de ser de um jeito bem mais lúdico e, talvez, isso atraia também o adulto. Se a gente parar para pensar, essa coisa lúdica não morre dentro da gente.
É fácil se comunicar com as crianças?
Quanto mais nova a criança for, mais difíceis são a comunicação e a tarefa de prender sua atenção. Mas a gente está na piscina, o já é algo lúdico por si só. Quando vamos para dentro d’água, a criança já explode de felicidade. Por mais que não tenha me visto nadar, os pais explicam para ela quem eu sou.
Como foi sua transição para a vida após a aposentadoria como atleta profissional?
A vida após a aposentadoria pode ser muito difícil para alguns. Especialmente aquela fase de mudança, os dois, três primeiros anos depois de parar. No primeiro ano, você ainda se sente um pouco atleta. Depois, cai na real que aquilo mudou. Quando se inicia um ciclo olímpico e você não está envolvido, a ficha cai. Aí você pode fazer duas coisas. Uma é chorar que não tem mais aquilo que sempre teve, as palmas, as pessoas lotando as arenas, medalhas, recordes, patrocínios. Ou você pode aceitar que aquilo acabou, celebrar os momentos que passaram e trabalhar de outra forma. O atleta tem uma dedicação muito grande, ele empreende no próprio corpo. Mas também trabalha dia a dia para fazer o que sempre quis, nadar, jogar vôlei etc. Se você canaliza essa energia, colocando-a em outra coisa que gosta de fazer, com certeza vai ser bom naquilo. Às vezes, o atleta não está disposto a pagar de novo aquele preço, o que pode ser um grande erro. Se você não se dedica à vida após a aposentadoria, não está feliz com o que faz, a situação fica de fato complicada. As coisas ficam mais claras quando você consegue enxergar a perspectiva e o futuro do que quer fazer. Você começa a aceitar esse outro estágio da carreira. Constrói uma nova vida tendo, como bagagem, aquilo que fez como atleta. É maravilhoso.
A política esportiva, no brasil, tem problemas estruturais gigantescos em todos os aspectos: na educação física na escola, na prática de atividade física pela população, que é sedentária, e também no alto rendimento.
Gustavo Borges
Ex-nadador
Você se preparou para a vida após o esporte. Muitos esportistas no brasil não fazem o mesmo. Há explicação para o fato de que não temos tantos ex-atletas trilhando carreiras de sucesso após saírem de cena?
Não sei qual a estatística de atletas que têm sucesso ou não, ou que estão em cargos de referência. Mas a comparação é muito injusta. Você sai de ser um medalhista olímpico, campeão olímpico, para usar como exemplo o posto mais alto, e depois esperam que a mesma pessoa, escolhendo outra atividade, também seja o “medalhista de ouro olímpico” nessa atividade. Isso dificilmente vai acontecer. Mas você pode ter uma carreira de sucesso fazendo trabalho social, abrindo uma empresa e, talvez, não tenha a disponibilidade de dar uma entrevista como esta, ou dar uma palestra. Tem de adequar um pouco a expectativa e o que estamos olhando para determinar se esse ex-atleta tem sucesso ou não. Há caras fantásticos, com carreiras esplendorosas, fazendo trabalhos incríveis depois do fim da carreira.
E há, realmente, aqueles que entram na infelicidade, na depressão, e isso é um problema sério. Não sei dizer se é a grande maioria ou se é uma boa parte, mas, como há muitos casos, é algo que precisa ser cuidado com carinho. Trata-se de um problema social importante. O que não pode é o atleta achar que, por ter sido atleta, por ter conquistado várias coisas representando o Brasil, pode esperar algo em troca. Ele foi remunerado por isso, teve o seu momento, e agora precisa fazer diferente.
É preciso estar preparado.
Sim. E tem a questão financeira. Mesmo que você tenha resolvido o problema do dinheiro na sua vida, se não tiver perspectiva de futuro, fica complicado para a cabeça. Há atletas que não têm a questão financeira resolvida, mas trabalham bem para se resolver após a aposentadoria. Há vários casos. O mais importante é ter um caminho e segui-lo. Se não estudou, estude. Se não se preparou, se prepare. Não dê desculpas. Passe a fazer as coisas de forma organizada e consistente, assim como você fez no esporte. Para isso, às vezes é até importante antecipar um pouco esse momento de transição. Há muitos exemplos de quem quis arrastar um pouco mais a carreira e acabou entrando em um ciclo de lesões. A coisa desanda. É outro problema: a transição sem saúde.
Como você tem acompanhado o momento turbulento do esporte brasileiro, com denúncias e prisões de dirigentes importantes?
Um treinador sempre falava o seguinte: “Se você fizer aquilo que sempre fez, estará onde sempre esteve”. Ele usava para incentivar os atletas a mudar. Quem faz a mesma coisa e espera resultado diferente vive no mundo da Lua. No esporte brasileiro, a gente vai além: não só fazemos a mesma coisa esperando resultados diferentes, como fazemos a mesma coisa sabendo que dá errado. Muito errado! E tentando continuar para que aquilo não se acabe. Isso é o pior dos mundos. A gente está colhendo frutos hoje de como lidou com o esporte ao longo dos últimos 20, 30, 40 anos. A política esportiva, no Brasil, tem problemas estruturais gigantescos em todos os aspectos: na Educação Física na escola, na prática de atividade física pela população, que é sedentária, e também, como não poderia ser diferente, no alto rendimento. Começa por não ter tantos bons professores de Educação Física e a disciplina não ser considerada séria, como qualquer outra. Aí tem o fato de não estarmos nem aí para o adulto que não faz atividade física. No alto rendimento, nós não temos uma estrutura de renovação, é só ler os estatutos das entidades para constatar isso. O modelo do esporte brasileiro é falido e fracassado. Isso está mais do que comprovado. Pode até dar certo em algumas situações, ou ter dado certo durante um período, com alguns atletas, mas o modelo está esgotado. E, quando o modelo se esgota, tem de mudar.
Você lê os estatutos das entidades esportivas... é para chorar. Você pensa: ‘não é possível que, para me candidatar ou participar, eu tenha de me submeter a isso’. Não dá.
Gustavo Borges
Ex-nadador
O que se deve mudar?
Não é o caso de trocar a peça, tirar um e colocar outro; é mexer no modelo de governança, é ter gestão participativa, é a presença efetiva dos atletas, dos treinadores. Só assim você vai conseguir fazer as coisas andarem para a frente. Com menos interesses particulares e mais do esporte como um todo. Você lê os estatutos das entidades esportivas... É para chorar. Você pensa: “Não é possível que, para me candidatar ou participar, eu tenha de me submeter a isso”. Não dá. Há várias linhas de trabalho que precisam de profissionalização. E não só isso: precisamos das pessoas certas ali, o que não tem acontecido. O caso do Coaracy (Nunes, advogado que presidiu a Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos, a CBDA, e foi preso neste ano suspeito de desviar R$ 40 milhões) passa um pouco por isso. O caso do COB também (referência aos escândalos envolvendo o Comitê Olímpico Brasileiro e seu ex-presidente, Carlos Arthur Nuzman). No cenário mundial, o que acontece com a Fina, a Federação Internacional de Desportos Aquáticos, em relação à CBDA, também é para se proteger de uma rebelião mundial (a Fina não reconheceu a eleição na CBDA, já que foi realizada após o afastamento dos gestores anteriores, que respondem a processo na Justiça comum). Se você deixar a Justiça comum entrar na CBDA ou no COB, como ficam a Fina e o Comitê Olímpico Internacional? A Justiça pode entrar lá? Todo o processo fica blindado para que nada aconteça de forma drástica. Se não tiver pessoas nas federações dispostas a fazer mudanças em seu âmbito, e acho que o COB e o Ministério do Esporte deveriam apoiar uma transformação assim, vamos ver mais do mesmo. O esporte vai patinar e, toda hora que tiver uma crise, vem a Swat, o FBI, o Caveirão... A gente está cansado disso. Estamos em uma crise econômica no Brasil desde 2014, com a Lava-Jato, que, ao meu ver, veio para dar um respiro de credibilidade para o país e resgatar um pouco do nosso orgulho. Independentemente das opiniões individuais, acho que vamos sair desse modelo para algo melhor. Mas é muito triste. É o nosso orgulho que está ferido. Ficamos sem acreditar nas instituições.
Em outros países, vemos manifestações políticas fortes de atletas, como estamos acompanhando atualmente nos estados unidos. O que falta para que nossos esportistas tenham uma participação mais ativa na vida social?
Você fez uma comparação com países mais maduros. Vou falar sobre os EUA, que você citou. É um país em que o Estado tem uma interferência menor nas instituições. Na minha opinião, quanto menor a interferência, melhor para todo mundo. Hoje, muitos atletas brasileiros são patrocinados pelo governo ou por empresas governamentais. Eu tenho apoio de uma empresa estatal, os Correios, e tive esse apoio durante toda a minha carreira. Não vejo problema em relação a isso, desde que se preserve o que é certo e o que é errado. Nunca fui reprimido por conta das minhas opiniões. Se um atleta tem esse medo, é
porque a federação ou a confederação a que ele está relacionado está interferindo no que ele pode falar ou não. Então, o medo está relacionado a quê? O patrocínio vem por mérito, mas como que é aferido esse mérito? O que leva um atleta a ser patrocinado ou não dentro dessas confederações? Aí, você começa a se embrenhar até na questão de como isso é controlado. Como se controla a voz dos atletas. Talvez aqueles mais desprendidos, ou até os ex-atletas, que têm mais espaço por não ter receio de não pegar uma seleção, de bater de frente com um dirigente, esses são mais liberados. Mas, para isso amadurecer, tem de haver independência das instituições e menos influência do Estado.
As estatais não devem patrocinar o esporte?
Devem patrocinar, sim. A mudança não deve ser feita de uma hora para a outra. Até porque, se não for assim, o esporte acaba de vez. Como o país ainda é dependente das políticas públicas, existe essa interferência muito grande. Mas a gente precisa ampliar. Vemos que o Estado, sozinho, não consegue fazer tudo o que é necessário. Então, o ideal é uma gestão mais transparente, focada na governança e que atraia a empresa privada. Já existem mecanismos, como o Pacto pelo Esporte (acordo voluntário entre empresas patrocinadoras do esporte, que define regras e mecanismos nas relações entre investidores e entidades esportivas, delineando práticas de gestão para as modalidades patrocinadas). Esse acordo traz indicadores para as empresas olharem para essa instituição, avaliando se adotam práticas que julgam importantes. Isso inclui contas publicadas, atletas votando nas assembleias... A gente tem ferramentas. O que falta é os presidentes das confederações, do COB, olharem para esse arcabouço de informações que já temos, analisar o modelo que temos hoje e dizer: “Não dá mais”. É difícil, sim. Tem um milhão de “veja bem” para a gente não tocar isso adiante, mas, se não colocarmos na discussão e não avançarmos, paramos no tempo. Daqui a quatro, cinco anos, vamos fazer uma entrevista e falar as mesmas coisas.
Uma crítica comum ao esporte brasileiro é de que não há um modelo definido de financiamento, o que faz com que atletas e entidades captem verba pública, consigam um patrocínio aqui e ali. Você concorda? Que modelo seria adequado a nossa realidade?
A resposta a essa pergunta é complexa. O que a gente sabe é que está garantido o financiamento para o ano que vem. Já se sabe que serão R$ 2 bilhões para o esporte. E sabese, também, como essa quantia vai ser distribuída. Está tudo definido. Isso mostra que, quando você gasta tempo em um assunto, a coisa passa no Congresso e o dinheiro sai. O que falta é mais atenção para a relação do esporte com a qualidade de vida das pessoas. Hoje há muito mais farmácia na rua do que estrutura para atividade física. Isso está relacionado e não nos damos conta. Porque o esporte não é pauta. Não é tratado como relevante.
Há algum modelo que possamos importar?
Temos de ter cuidado quando, por exemplo, analisamos o esporte norte-americano. Lá, a base do alto rendimento vem das faculdades. Elas são, em parte, estatais. Então, há financiamento do Estado, mas de forma diferente. O que pode ser importante no Brasil é colocar indicadores para empresas patrocinadoras. Seria um primeiro passo. O ideal é não pensar num modelo idêntico ao dos EUA, ou da França, ou outro. Podemos usar esses países como exemplos, mas fazer o nosso próprio modelo. Quando empresas copiam o que se faz lá fora, ignorando as peculiaridades do Brasil, vão à falência. A gente precisa entender o que o mundo faz e o que funciona no Brasil. Só colocando um pouco mais de carinho nas decisões, mexendo nos estatutos das entidades e mudando a governança já teremos um primeiro passo. E aí, daqui a quatro ou cinco anos, poderemos partir para uma discussão de um ponto diferente do que estamos hoje.