Mayra Aguiar chega ao ginásio da Sogipa levando nas mãos um inestimável volume acondicionado em uma caixa modesta, dessas que você usaria para armazenar faturas bancárias.
A judoca veste um quimono branco, sobe no tatame do clube de Porto Alegre, retira cinco medalhas – dois ouros, uma prata e dois bronzes em Campeonatos Mundiais – da caixinha e as distribui no tablado onde cresceu e treinou nos últimos 15 anos. Em seguida, saca o celular e dispara fotos de diferentes ângulos dos objetos de desejo de todo atleta de alto desempenho.
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Quem acompanha a cena acreditaria estar diante de uma atleta ciosa de suas façanhas, mas uma rápida conversa revela, na verdade, um certo desprendimento da maior campeã da história do país na modalidade.
– Tu já tens a dimensão exata da tua importância para o esporte brasileiro? – pergunta a reportagem de ZH.
– É uma coisa que não penso muito. Até minhas medalhas, meus troféus, ainda não parei para arrumar. Está tudo bagunçado. Às vezes vejo essas medalhas todas, os troféus, e penso: caramba, que história. Mas acho que só vou ter noção disso quando parar. Vivo muito os objetivos a curto prazo. Então, meu próximo objetivo é o Grand Slam (de Abu Dhabi, no final de outubro). Conquistei agora o Mundial, que é um supertítulo, mas já passou. Ainda quero conquistar muita coisa – afirma a gaúcha de 26 anos.
Uniformizado em um quimono azul, o ex-judoca e hoje deputado federal João Derly se aproxima em meio à sessão de closes e selfies de Mayra e também deposita duas medalhas no dojô. Uma delas, prêmio pelo inédito título para o Brasil no Mundial de Cairo 2005, já apresenta sinais de desgaste na superfície dourada.
– É de tanto passar de mão em mão... Até já evito levar às escolas para mostrar à gurizada – resigna-se o gaúcho de 36 anos, que hoje exibe suas maiores conquistas em um quadro com iluminação especial na parede da sala de casa.
Não é todo dia e em qualquer lugar que dois bicampeões mundiais podem ser reunidos em um mesmo local. Pois não raro os frequentadores da Sogipa e alunos das escolinhas de judô têm o privilégio de encontrar dois dos maiores ídolos do esporte brasileiro. Na tarde da última segunda-feira (11), ZH convidou os dois campeões para um bate-papo descontraído no dojô do clube.
Logo de início, Derly fala da emoção de ter sido lembrado, instantes depois da conquista de Mayra na Hungria, pela colega que viu crescer ao seu lado no clube e na seleção brasileira.
– A Mayra me enviou uma mensagem de agradecimento. Respondi: "Agradecer por quê?". E ela: "Por ter sido minha inspiração". Dei aquela engasgada. Me senti grandão, campeão de novo – conta o ex-judoca, que de ídolo da futura campeã hoje assume a condição de fã.
– O João me ajudou muito, sempre foi um espelho. Quando cheguei ao clube, tirava foto com ele, olhava como ele se portava dentro do tatame, o que ele fazia fora do tatame – emenda a fã que virou ídolo.
Sentados no tatame, Derly e Mayra reviveram momentos em comum dos dois únicos bicampeões do judô brasileiro. Foi quase uma década de convivência em treinos, concentrações e competições. Guri criado no Alto Petrópolis e que ingressou na escolinha da Sogipa aos seis anos, o então peso ligeiro (até 60kg) já era um atleta em ascensão quando a menina do bairro Medianeira passou a treinar no clube, aos 11 anos.
Não demorou para Derly "adotar" a judoca-prodígio, que logo também virou sua colega de seleção. Quando Derly conquistou o ouro no Pan do Rio 2007, já na categoria meio-leve (66kg), Mayra era a caçula da equipe. Prestes a completar 16 anos, a garota faturava a prata em casa, ainda na categoria 70kg, só perdendo na decisão para Ronda Rousey, que mais tarde se consagraria nos octógonos do UFC. Ainda em 2007, também no Rio, a gaúcha participava de seu primeiro Mundial. Além de lutar, viu o amigo pendurar no pescoço o segundo ouro na competição – conquista que, aliás, completou 10 anos na última sexta (15).
– Quando o João foi campeão mundial, eu treinava com ele, o ajudava nos treinos, caindo, sendo sparring dele. Vi muito de perto o quanto era duro lutar nessas competições e o que era preciso para conquistar o título. Lembro que o João treinava até a comemoração que faria caso fosse campeão mundial. Pensava: "Caraca, isso aí é muita confiança" – entrega Mayra.
– Eu também comecei a viajar bem cedo com a seleção brasileira. Alguns atletas, como o Aurélio Miguel (ouro em Barcelona 1992) quase me adotaram. Então, a Mayra era minha protegida nas viagens. Só não podia aliviar com ela. Mesmo jovem, já dava para ver que tinha muito talento e era muito forte. Ela foi ficando num estágio que até evitava treinar com ela – conta.
– Cair para uma menina não dá, né... – provoca Mayra.
Com a inspiração dos dois bicampeões, a esperança é de que a usina de talentos do judô gaúcho continue a produzir novos Derlys e novas Mayras para brilhar nas grandes competições internacionais.
Da pipoca nos cinemas ao refrigerante no Mundial
Desde que passaram a treinar sob o mesmo teto, a relação entre os dois judocas sempre foi estreita. Já consagrado campeão mundial, João Derly e a namorada (e a futura mulher), Gabriela, levavam a então adolescente Mayra Aguiar ao cinema, entre um intervalo e outro de treino.
O pacote do programa incluía guloseimas como pipoca, refrigerante e doces, a despeito da briga dos atletas contra a balança – vale lembrar que o atleta deslanchou na carreira quando subiu de categoria, já que sofria para se manter no limite de peso, mesmo desafio enfrentado posteriormente por Mayra.
A judoca lembra de uma conversa com Derly que a ajudou a encontrar o equilíbrio entre os cuidados com a dieta e eventuais escapadas para aliviar as tensões.
– No Mundial de Tóquio (em 2010), quando conquistei minha primeira medalha, estava nervosa antes da competição. Aí o Derly me perguntou: "Mas tu não amas o que tu faz?". Respondi: "Amo, mas estou com vontade de comer um chocolate, de tomar uma Coca-Cola, mas não posso por causa do peso" – conta a judoca. – Ele disse: "Então toma, Mayra. Nessa hora a tua cabeça é o que vai ser mais importante. Tu tens de estar feliz, tens de estar bem. Nos Mundiais que ganhei, eu estava feliz, eu estava bem. Vai lá e toma". Então bebi uma Coca-Cola, fiquei feliz e ganhei a medalha. Foram essas palavras, esses momentos, que me fortaleceram muito – conclui Mayra.
Em meio às lembranças dos tatames da vida, o treinador Antônio Carlos Pereira, o Kiko, responsável pela formação dos dois campeões, se une à conversa para revelar um "momento Garrincha" – o gênio dos gramados que desconhecia os adversários em Copas do Mundo – de Mayra. Com a prata de Tóquio erguida na mão direita, o sensei conta que, no caminho para a final, a pupila enfrentou a chinesa Xiuli Yang. Quando a brasileira conseguiu um ippon, o ginásio quase veio abaixo.
– A Mayra não entendia o porquê de tantos aplausos na torcida. Aí disseram, para surpresa dela, que tinha acabado de derrotar a campeã olímpica (em Pequim 2008) – conta Kiko.
– Puxa, vocês tinham de ter me contado isso antes – diverte-se Mayra.
A "Mayrinha" de Derly
Basta acompanhar cada desembarque vitorioso de Mayra Aguiar em Porto Alegre para constatar o fascínio que a bicampeã exerce sobre os alunos das escolinhas de judô.
Simpática, a bicampeã faz questão de agradecer o carinho que recebe dos judocas mirins. A idolatria pela gaúcha invade até a casa de outros campeões dos tatames. João Derly que o diga. Isabela, quatro anos, filha do ex-judoca, é fã da atleta:
– Ela adora a Mayra. Quando nós brincamos de judô, a Isabela diz que é a Mayra.
OS QUATRO OUROS
João Derly
Mundial do Cairo (Egito), em 2005
Mundial do Rio de Janeiro, em 2007
Mayra Aguiar
Mundial de Chelyabinsk (Rússia), em 2014
Mundial de Budapeste (Hungria), em 2017
*ZHESPORTES