Aos 57 anos, Bernardinho ainda se habitua à nova vida. Agora, nos meses em que as seleções nacionais de vôlei entram em ação, o técnico que comandou o Brasil em campanhas que levaram a seis medalhas olímpicas (quatro no masculino e duas no feminino) não está à beira da quadra.
– Vivo um período de abstinência e sofro – confessou, em entrevista a ZH.
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Bernardinho veio a Porto Alegre para ministrar uma palestra promovida pelo Partido Novo, ao qual se filiou após deixar o PSDB. Em entrevista à Rádio Gaúcha, disse que "nunca foi peessedebista", apenas se filiou em 2013 atendendo a convite do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do senador afastado Aécio Neves, que queriam o lançar como candidato a governador do Rio no ano seguinte e, para isso, o ex-técnico teria de ser vinculado à legenda por, no mínimo, um ano.
Segundo Bernardinho, sua intenção na política é, além de apresentar as ideias da nova legenda, fazer um apelo por maior participação no debate. Fala, com preocupação, da radicalização, e diz ser receptivo ao diálogo com pessoas de diferentes matizes ideológicos. Confira os principais trechos da conversa com ZH, em que relembra o corte de Ricardinho e fala de bastidores do ouro olímpico.
*Colaborou Eduardo Castilhos
Como tem sido acompanhar estes primeiros jogos de seleção brasileira sem a sua presença?
Não é fácil. Tenho um vínculo, tanto com o Renan, que é o treinador e um irmão que a vida me deu, quanto com alguns meninos que trabalharam comigo. Mais do que os jogos, eu sinto falta da rotina. Os treinamentos em Saquarema, isso que vocês não veem, é o que mais me falta. O treinamento diário, o desenvolvimento das pessoas, cobrança, ajuda, enfim. O processo das madrugadas buscando soluções e estratégias. Isso tudo me faz uma falta incrível. Eu vivo um período de abstinência e sofro. Não vejo os jogos ao vivo, gravo e vejo depois, para não ficar naquela loucura de tensão. Com o Bruno (levantador da seleção e filho de Bernardinho), eu converso bastante. Hoje, ele é um líder de uma geração. Difícil foi lançá-lo há nove, 10 anos. Troco algumas ideias com o Renan, mas, com ele, nunca vai ter uma observação, uma pontuação minha, sem uma pergunta dele.
O momento da entrada do Bruno na seleção foi de muita turbulência. O quanto aquele "barulho" vindo de fora fez você questionar decisões como aquela?
Por mais importante que seja o papel da imprensa em relatar e avaliar, nós entendemos que o barulho tinha de ficar de fora. O Bruno entrou no momento de uma das decisões mais difíceis, que foi cortar o Ricardinho. As pessoas perguntavam muito os porquês daquela decisão, e eram coisas nossas. Certamente havia porquês. Mas a questão que eu sempre coloquei foi a seguinte: "Se eu tivesse feito algo tão incoerente, injusto e incorreto, vocês acham que o restante da equipe continuaria a lutar por mim? Por uma causa comum?". Não estou falando de um time mirim, eram campeões olímpicos e mundiais. Homens. Certamente não concordariam. Se concordaram e seguiram lutando, é porque alguma coisa tinha de ser feita.
Como foi a reação de vocês com a repercussão daquela decisão?
Óbvio que foi difícil. Você entra no Maracanãzinho para a estreia no Pan-Americano e tem 8 mil, 10 mil pessoas. O Bruno foi vaiado por 99,9% dos presentes. Sou treinador, mas sou pai. O treinador já ficaria sentido. Com a relação de pai e filho, mais ainda. Ele conseguiu isolar. Por algum tempo, sofreu quieto, treinando. Jamais se lamentou. Quando foi campeão olímpico, agora, não foi cobrar de quem o criticou. Mas quando eu falo no corte do Ricardinho, não é querendo mostrar que estava certo. Pelo contrário. É com parcela de culpa. Como líder, não fui competente o suficiente para trazê-lo para o caminho certo.
O que você faria de diferente naquele episódio?
Acho que eu teria sido muito mais enfático, na questão de dar a ele um feedback permanente. Fiz isso bastante, mas não o suficiente. Não sei também se isso teria sucesso, só vivendo a experiência de novo para saber. Teve uma propaganda que ele fez, de uma empresa de telefonia, em que ele dizia que tinha chegado ao topo do mundo e, depois, caído. Era uma campanha com vários personagens que levaram tombos na vida. Para mim, pareceu ser um momento de uma autorreflexão, de dizer: "Eu errei". Existe também a questão da exposição, com as vitórias que tivemos. Isso mexe com o ego das pessoas. Se você não estiver totalmente equilibrado, a possibilidade de que você passe a achar que é o responsável por aquilo tudo em vez de ser parte de um time é muito grande.
Como você diferencia o sentimento dos dois ouros, o de Atenas 2004 e o do Rio 2016?
A emoção é muito semelhante, mas é óbvio que tem algo diferente depois dos "quases" em 2008 (Pequim) e 2012 (Londres). Em 2012, nós estávamos ganhando o terceiro set (na final contra a Rússia) de 21 a 19 depois de ganhar os dois primeiros. Foi muito duro. Muitos dos que estavam em 2016 também estavam em 2012. Depois, fomos vice-campeões mundiais em 2014, vice em Ligas Mundiais. Foi se criando um peso, com a dúvida que pairava. O fato é que ninguém apostava na gente para o ouro. Outra coisa: jogando em casa. É claro que, se você parar para pensar racionalmente, é preferível jogar em casa. Mas emocionalmente, há algo a ser trabalhado. Tudo é diferente. E o Maracanãzinho é um pouco o templo do vôlei. Desde a nossa geração de prata, o Mundialito, sempre teve essa ligação. Interessante que o time de 2016, em termos absolutos, é menos talentoso do que o de Atenas. Não há nenhuma vergonha nisso. Bom para mim é que eles confirmaram minha teoria de que o único lugar em que o talento vem antes do trabalho é no dicionário.
Como vocês se prepararam, do ponto de vista psicológico, para aquele jogo contra a França, em que o Brasil poderia ser eliminado já na primeira fase da Olimpíada?
Ali era vida ou morte. Se nós perdêssemos aquela partida, teríamos terminado em nono lugar. Provavelmente, nós não estaríamos fazendo essa entrevista hoje (risos). Aquela vitória nos deu o direito de continuar a lutar. A França era uma das favoritas, foi campeã da Liga Mundial no Rio no ano anterior, ganhou o Europeu. Voltou para casa em nono lugar. A preparação, no dia anterior, teve a questão estratégica muito forte. Fizemos também confraternizações em um restaurante e chamamos as famílias nos dias de jogos. Era uma forma de mostrar que não eram só máquinas de jogar. Que havia aquilo, da família. E outra história legal daquele jogo deve estar no livro do Escadinha (Sérgio, líbero da seleção em quatro Olimpíadas). Ele pediu para falar com o grupo e disse o seguinte: "Olha pessoal, estou na UTI, respirando por aparelhos. Se vocês não me ajudarem, eu morro". Claro, desportivamente acabaria a carreira dele. Ele dizia: "Eu não quero morrer amanhã". Com isso, conclamava a defender uma nova causa, que era lutar pela sobrevivência de um companheiro, de uma referência. Se você perguntar: qual o jogo mais tenso da sua vida? É aquele. Certamente foi a partida que definiu a sequência posterior.
O Brasil aproveitou a Olimpíada do Rio? Ela deixou legado?
Claramente, não. Acho que alguma coisa de mobilidade, com os BRTs, aconteceu. O metrô chegou até a Barra. Isso foi muito bom. Mas foi muito menos do que deveria. No que diz respeito ao legado mais esportivo, a gente olha para o Parque Olímpico hoje, e ele está praticamente abandonado, com o governo federal tendo de assumir algumas coisas. As transformações das arenas em escolas, que eram o plano, têm um custo, que não foi considerado ou foi mal considerado. E nada acontece. É o Estado grande demais entrando em tudo. Se dizia que a Olimpíada seria financiada pela iniciativa privada, e o que aconteceu, no fim, foi que as verbas públicas bancaram. A festa foi linda. É fato. Mas a pergunta é: a que custo para um país com recursos limitados?
O esporte brasileiro viveu um ciclo de investimentos abundantes e, agora, tem de lidar com cortes. Esse momento de abundância foi aproveitado? Se não, qual a parcela de culpa da má gestão do esporte?
Fica tudo na conta da má gestão. Sabendo que tem recursos abundantes, tinha de se preparar para fazer bons Jogos, mas com a noção de que a crise viria. A grande questão é que o sistema esportivo inviabiliza a entrada de pessoas que não aqueles presidentes de federações, que ficam décadas ali. A Confederação Brasileira de Rúgbi, tocada de forma totalmente profissional por empresários, e a da vela, que mudou agora, são boas exceções. Fora elas, nós vivemos o sistema arcaico dos anos 1950, 1960. Quem está interessado em ajudar acaba sucumbindo diante dos patrões do processo. Eu vou ter uma conversa com o doutor Nuzman (Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico do Brasil há mais de 20 anos). Minha pergunta a ele é a seguinte: "Você formou um sucessor? Um grande líder tem de formar um sucessor". O sistema tem de mudar, mais pessoas têm de participar.
Como você tem acompanhado o momento de turbulência da política brasileira e como você se insere nesse momento, agora que mudou de partido?
A minha participação tem a ver com o fato de que o Novo é um projeto em que eu acredito. Não é uma questão de ser um evangelizador. Minha proposta é que as pessoas se informem, se envolvam. A maioria das pessoas não lembra em quem votou para vereador. Eu, que sou mais velho, não me lembro de quatro eleições atrás. Isso é péssimo. Demonstra uma falta de consciência cidadã terrível. Eu fui a uma reunião da escola da minha filha de 15 anos. Estavam professores, os pais, e vários falaram. O conteúdo foi espetacular. No final, me viram e perguntaram se eu não queria falar algo. Eu disse que queria falar duas coisas: primeiro, que a reunião tinha sido excelente, o debate sobre os conteúdos e tal. E segundo, que eu confirmei ali minha conclusão de que nós, como geração, falhamos. Porque, ao falar dos planos para os filhos, os pais não disseram que queriam que o filho empreendesse, ou que fosse um bom jornalista, bom médico, engenheiro. Todos, sem exceção, disseram que queriam mandar os filhos para fora do país. As pessoas me perguntam por que eu não fui embora. Só que eu, a partir do contato com essas pessoas que me admiram, me dei conta de que, se eu vou embora, dou um sinal a elas de que desisti. E elas vão pensar: "Esse cara desistiu. Ele é um lutador, mas desistiu da gente". Por isso, essa ideia de conclamar as pessoas.
Você vê algum movimento nesse sentido?
Eu vejo jovens que realmente têm essa ideia de construir um país melhor. E não é só o Novo que vai construir, são outros também, mas que tenham valores reconhecidos. Com ideologias diferentes? Acredito que sim. É uma coisa importante até para diminuir esse discurso do ódio, de que o contraditório tem de ser demonizado. Quase criminalizado. Nós não vamos construir nada pensando que existe uma única forma de fazer. Hoje não existe debate. Existe ataque. O que me atraiu no Novo foi o debate sobre ideias, sobre projetos. Quantos partidos têm, efetivamente, uma ideia? A gente geralmente vota em pessoas, não em partidos. O PT tinha essa unidade, mas isso se esfacelou, tanto que houve aquelas cisões enormes. A questão nem é criticar esse ou aquele partido, apenas pontuar que hoje o foco está em pessoas, e não em ideias, onde sempre deveria estar no debate político.
Na entrevista recente à Rádio Gaúcha, você disse que sua família não quis que você fosse candidato.
Várias pessoas, ao longo dos anos, me convidaram para entrar na vida pública. A questão é que eu ainda não me sinto capaz, ou as pessoas atribuem a mim capacidades que não tenho. Sou muito crítico em relação a mim mesmo. As pessoas sugerem que eu possa dar aula em universidade, eu acho que não sou capaz. Eu tenho que ser realmente bom no que eu faço para fazer bem feito. Mas tem isso do discurso de ódio, que assusta. Essa coisa de demonizar o outro. Nós estamos, realmente, em um estágio pré-histórico no debate político.
A sua intenção, então, é a de disseminar as ideias, mais do que se candidatar, como foi noticiado?
Sim, isso foi ventilado. As pessoas sabem. A questão é que eu sinto que eu não posso me esconder, tenho de dar minha contribuição. Minha contribuição não é só concorrendo a algo, que não é minha ideia hoje. É simplesmente trazendo pessoas (para o debate). Que as pessoas venham participar do processo, venham se candidatar se forem capacitadas, e há muitas que são. Por que não? Existem tantos jovens, e não só jovens, aqueles com espírito jovem, que querem fazer transformações. O Brasil precisa disso. Eu me vejo hoje como um apoiador de projetos, dos mais diversos. Em educação e segurança, por exemplo. Nós temos números de guerra no Brasil. Se o poder paralelo em uma comunidade disser que não tem aula, não tem aula.
O partido ao qual você se filiou tem ideais liberais. Uma crítica frequente a alguns líderes liberais no Brasil é de que só são liberais do ponto de vista econômico, e são conservadores em pautas relacionadas a costumes, como o casamento gay, por exemplo. Como você vê essa questão?
Existem certas questões sobre as quais nós temos que nos capacitar um pouco mais, nos informar mais. Eu sou altamente favorável, por exemplo, à liberdade de expressão. Mas não à libertinagem de expressão, sem nenhuma responsabilidade. A questão do casamento de pessoas do mesmo gênero, ter a liberdade, sim, de poderem fazer. Mas questões como aborto, legalização da maconha, são complexas. Não sei dizer qual é minha posição. Preciso buscar mais informações. As pessoas falam dos debates e, hoje, quando você assiste a um debate, a impressão que você tem é de que os candidatos são onipresentes e oniscientes. É engraçado isso. Se você for reparar, o Aldo Rebelo, do PC do B, foi ministro do esporte, da ciência e tecnologia, da defesa. Ou seja, ele tem uma capacidade incrível. Eu não tenho condições de saber de tudo, não tenho todas as respostas. Agora, se eu estivesse no comando de qualquer coisa, escalaria os melhores de cada tema. De uma certa maneira, é como um treinador.
Teme que as opiniões políticas o afastem de admiradores que você carrega do esporte?
Nunca me importei muito. Se eu tomar decisões imaginando o que é conveniente, o que é mais popular, o caminho está errado. Tem de fazer acontecer. E volto a dizer: não tenho a pretensão de ditar o que as pessoas têm de fazer. Quero que participem. Que vejam como estão atuando seus representantes. Que se sintam representadas. Muitas vezes nós não nos sentimos, mas também não fazemos muito para estarmos representados. Há uma leitura, quando se entra na política, de que vai entrar de branco em uma carvoaria. Não tem como sair limpo. Mas será que tem de ser assim?
* ZH Esportes