Era julho de 2015, e Bel corria devagar na esteira da academia quando uma dor no seio esquerdo chamou a atenção. Desconfiada, pegou sua toalhinha e foi para a casa, em Governador Celso Ramos, em Santa Catarina. Fez exame de toque e sentiu o nódulo perto do mamilo. O que ela temia foi constatado dias depois no hospital: estava com câncer, triplo negativo, dos mais agressivos. Começava, naquele momento, a reviravolta na vida de Isabel Araújo Nunes, 50 anos, um dos nomes mais importantes do futebol feminino do Inter, jogadora da seleção brasileira nos anos 1980 e 1990 e capa da revista Playboy.
Bel precisou de coragem para encarar a doença e todas as suas consequências. O baque foi grande, mas a menina que enfrentou desde pequena as botinadas dos garotos maiores nos campinhos dos bairros Campo Novo, onde nasceu, Cavalhada e Nonoai, na zona sul de Porto Alegre, enfrentou firme a batalha.
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– É um choque, a casa cai. Mas a alternativa que resta é lutar, não se entregar nunca – afirma, enquanto passa a mão nos cabelos curtos e crespos, sentada na sacada de seu sobrado no centro de Florianópolis, onde mora desde 2016.
Sem a cabeleira longa, lisa e loira, decorrência do tratamento de quimioterapia, Bel ainda está se acostumando ao novo visual. Vaidosa, torce para que eles voltem a ser compridos e macios:
– Estão duros. Estou só esperando crescer mais um pouco para alisar.
Cabelos. Eles sempre foram marcantes na vida da ex-jogadora. Ainda pequena, aos nove anos, tomou a difícil decisão de cortá-los. O motivo: o futebol. Incentivada pelo pai, Aristides Nunes, seu Tide, passou a tesoura e fez um corte "Joãozinho" para poder participar de um torneio dente de leite no bairro Vila Nova, na final dos anos 1970. Integrou um time de meninos com o nome de Mário. Foi bem, marcou gols e não parou mais.
Zunia nos campinhos e nas quadras. Descoberta no clube Nonoai pelo técnico Getúlio Fredo, foi levada para jogar no Pepsi Bola, em 1983. A ideia de Getúlio era criar um time competitivo de futebol feminino no RS. Deu certo, e a equipe acabou sendo base do futebol feminino do Inter.
A trajetória de Bel como jogadora profissional começava ali. Rápida, audaciosa e goleadora, ninguém segurava a número 7. Uma atacante com muitos recursos técnicos. Não só isso. Linda, não demorou a ganhar páginas de jornais e revistas.
Arrancava suspiros de torcedores pelos gols e pela beleza. Nos cabelos esvoaçantes geralmente usava uma fita ao estilo Renato Portaluppi – aliás, era comparada ao ídolo do Grêmio por suas peripécias fora dos gramados. Já contarei algumas delas.
Aos 17 anos, ganhou as páginas da Revista ZH, caderno dominical de Zero Hora da época, e recebeu o primeiro convite para posar para Playboy. Assustou-se e não aceitou fazer nu total, mas topou fotos de biquíni.
– Imagina, era menina ainda. Naquele tempo não tinha isso de tirar a roupa tão fácil – lembra a ex-atacante.
Bel continuou nos holofotes mesmo quando o Inter fechou o departamento feminino, em 1987. O futsal foi a saída. Jogou no Bruxas e no Chimarrão. Conquistou Estaduais e fez dobradinha com a amiga Duda, com quem já havia atuado no time colorado.Bel
– Sempre fizemos uma boa dupla, difícil bater o time quando estávamos juntas – recorda Duda Luizielli, que hoje trabalha para reestruturar o futebol feminino no Beira-Rio.
Mais madura, aos 29 anos, Bel não resistiu à nova investida da Playboy. Na época, a revista comandada por Juca Kfouri ofereceu um cachê de US$ 32 mil (R$ 106 mil hoje). Para a jogadora, uma pequena fortuna, nunca havia visto tanta grana. Em julho de 1995, ela estampou a capa com o título: "Goool, tiramos a roupa da Bel, a supercraque do futebol". Ela lembra bem o que fez com o dinheiro: comprou um Escort vermelho, deu presentes para a mãe, Ercília, as irmãs e os primos, e adquiriu um terreno na Vila Nova, no qual construiu uma casa que tem até hoje.
– No mês seguinte, saiu publicação com a Adriana Galisteu, aquela da depilação. O cachê da Adriana foi meio milhão. Fiquei louca. Mas tudo bem, ela era famosa, eu não – compara Bel.
As fotos do corpo perfeito na Playboy alçaram Bel ao estrelato. Recebeu inúmeros convites para participar de desfiles de moda e também ganhou as telas de TV. Participou de programas do Serginho Groismann, da Hebe Camargo e do Jô Soares.
– Depois de olhar as minhas fotos, o Jô pediu no ar para o Juca (Kfouri) me dar mais um cachê, que eu merecia. Foi uma diversão, mas não ganhei mais nada – gargalha a ex-jogadora ao lembrar a entrevista.
Bel sempre foi divertida. E polêmica, estilo menina rebelde. Lembra lá atrás quando falei que ela era comparada ao Renato Portaluppi? Era bem isso. Ao ser perguntada sobre o tema "festeira", vai direto ao ponto:
– Gostava da noite, dos amigos, das discotecas, da cervejinha. Era daquelas de fazer xixi na chuteira das colegas. Ah, e sempre fui namoradeira. Foram muitas confusões por causa disso.
Rolos mesmo. O tédio das concentrações incomodava a ex-atacante. Uma dessas aventuras ocorreu em 1995. A seleção brasileira se preparava para disputar o Sul-Americano da categoria, e as jogadoras estavam hospedadas em Goiânia. Tudo começou no café da manhã, quando ela e um colega conheceram um charmoso garçom. A "cara do Alain Delon", afirma Bel.
Rolou papo, paquera e depois beijinhos no corredor do hotel.
– Alguma invejosa viu, contou para o supervisor e aí a lambança estava feita. Resultado: o coitado do guri foi demitido – diz Bel, com cara de dó.
Outra vez, também com a seleção, enredou-se ao levar o namorado (um jogador de futebol que ela prefere não revelar o nome) para o quarto, em Campinas. Tudo ia bem até o diretor de futebol bater a sua porta e pedir para falar com ela.
– Mandei o cara para o banheiro. Não tinha o que fazer. O Romeu (diretor) não terminava de tagarelar, e o fulano lá, bem quietinho – recorda-se. – No final deu tudo certo.
– A Bel dava dor de cabeça para os adversários, rápida, inteligente, uma amiga para a vida toda. E também incomodava os dirigentes, pois era boêmia – entrega, aos risos, o ex-técnico Getúlio Fredo, 61 anos, hoje treinador na Estônia.
A gauchinha despertava paixões. Uma das suas histórias "malucas" passou-se bem longe daqui, na Itália. Um empresário a levou para jogar no Torino. Depois de se adaptar ao frio e ao duro futebol praticado por lá ("só tinha jogadora forte") e à diferença na preparação física ("corriam muito"), viu seu sonho europeu ter fim ao se envolver com o presidente do clube, Roberto Goveani, em 1994.
– Estava em uma fase boa, titular, fazendo gols, mas quando começou o namoro tudo se complicou. O assunto se espalhou e não foi bom para mim. Foram apenas três meses nesta aventura italiana – diz.
Bel não se arrepende. Considera tudo uma experiência de vida. Até mesmo a passagem pelo Grêmio, seu último clube, em 2001, aos 35 anos, avalia como positiva.
– Já não tinha mais aquela força, arrancada forte, uma marca minha, aí decidi parar – confessa.
Depois de deixar os gramados, Bel casou, teve um filho, Luiz Felipe, hoje com 13 anos. Sempre procurou estar próximo ao esporte. Atualmente, é professora de educação física da Associação Catarinense para a Integração dos Cegos (Acic), em Florianópolis. Está feliz. Pudera. Saiu vitoriosa de sua mais renhida disputa, o câncer. Foram duros oito meses desde que aquela dorzinha a incomodou. Como seu tumor era agressivo, precisou fazer logo a cirurgia. Perder o seio a apavorava. Mas aí uma notícia acalentadora em meio ao temporal:
– O médico propôs reconstruir o seio retirando gordura do abdômen. Topei fazer na hora.
A cirurgia foi um sucesso. Etapa dois: quimioterapia. Foram oito sessões de remédios pesados. Enjôos e mudanças no corpo.
– Perdi todos os pelos do corpo, nem sobrancelha ficou, um horror. Via uma outra mulher no espelho.
Uma mulher diferente, forte e madura. Destemida para vencer qualquer desafio:
– Estou viva. Quer melhor notícia do que esta?