Chapecó estava em polvorosa em 7 de maio, data da final do Campeonato Catarinense. Bandeiras verdes tremulavam pela cidade, e o som de buzinas e foguetes dava ritmo à alegria de uma comunidade orgulhosa. O título da Chapecoense era um símbolo de recuperação do clube.
Entre as viúvas das vítimas do acidente que matou 71 pessoas há seis meses, em 28 de novembro passado, as reações à conquista variaram. Houve quem recebesse a vitória com satisfação, enquanto outras trabalharam diretamente no jogo e ocuparam-se das tarefas de um dia atribulado. Um terceiro grupo fez o que virou rotina no período: sofreu. Enclausurou-se em casa, fechou cortinas e procurou, ao máximo, isolar o som de celebração que vinha da rua.
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A decisão do Estadual e suas repercussões exemplificam um contraste vivido na cidade de pouco mais de 240 mil habitantes. O "luto público" de Chapecó pelo acidente parece ter sido substituído por um sentimento de congregação. A cidade abraçou a Chapecoense. Há adesivos nos carros e bandeiras em lojas, restaurantes e cafés. Ao passar por bancas de vendedores ambulantes, é preciso baixar a cabeça para não roçá-la em uma "cortina" formada por camisas da Chape penduradas e colocadas à venda. O clube tornou-se parte inseparável da identidade do lugar, que se orgulha da instituição.
Do outro lado, está o "luto privado" de quem chora a morte das vítimas. É verdade que há viúvas que vibram com o processo de reconstrução da Chape, mas há também um grupo considerável que reclama da postura do clube desde a tragédia. Sentem-se desamparadas, abandonadas. Natural, portanto, que não tenham estômago para celebrações.
As reclamações dizem respeito desde a atos mais simbólicos, como o cancelamento das carteirinhas que davam acesso às famílias ao setor das cadeiras na Arena Índio Condá, o estádio do clube – a Chapecoense teria concedido apenas a entrada nas sociais –, até questões mais concretas, como cálculos de indenizações pelo acidente.
– Ficou um sentimento de mágoa porque poderiam ter um contato mais direto com a gente, mas, como nos veem como uma ameaça, isso não existe – protesta Graciela Missel, 31 anos, viúva de Márcio Koury, médico do clube.
A ameaça a que Graciela se refere é jurídica. Luiz Antônio Palaoro, vice-presidente jurídico da Chapecoense, estima que entre oito e 10 ações já foram abertas contra o clube. Os pleitos são, em geral, relativos a questões trabalhistas.
O caso de Márcio Koury é um dos que alimentam o descontentamento. Como ele não tinha carteira de trabalho assinada pela Chape, a família relata não ter recebido nenhuma indenização.
– Ele era terceirizado, mas estava sempre no clube. Todos sabem disso – comenta Graciela.
Para as mulheres de jogadores, o problema financeiro foi minimizado por conta de dois seguros. Um, relativo a uma seguradora contratada pela Chapecoense, garantiu 28 salários a todas, de acordo com o valor que constava nas carteiras dos atletas.
O outro é o seguro da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que resultou no pagamento de 12 salários, totalizando 40. O cálculo desse montante, porém, é contestado. Ao menos seis viúvas foram à Justiça pedir que a indenização leve em conta toda a remuneração recebida pelos maridos, incluindo valores relativos a direitos de imagem e a premiações. O advogado Fernando Martinez, que as representa, estima que esses valores sejam equivalentes a cerca de 50% do que os jogadores recebiam. Elas ainda pedem danos morais e lucro cessante, referente à expectativa de vida profissional interrompida pelo acidente.
– Faço questão de ressaltar que meu marido não tinha preço. Ele tinha valor. Os valores de seguro e indenizações são incomparáveis à perda dele. Foram pagos seguros e há processos correndo. Eu contratei advogado para ficar responsável por isso. Estou concentrada na parte emocional. A gente tinha despesas, custos. Recebemos um seguro que supre 40 meses. E depois? Meu marido não viveria 40 meses. Ele tinha expectativa de vida no futebol de mais 10 anos – diz Bárbara Monteiro, mulher do meia-atacante Ananias e uma das reclamantes no processo.
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Versões contraditórias sobre dívidas e indenizações
Rosângela Loureiro, viúva do meio-campista Cléber Santana, é outra que não poupa críticas à Chapecoense. Afirma que o clube pagava metade do aluguel do apartamento da família em Chapecó e prometeu seguir arcando com as despesas após o acidente. Rosângela, porém, diz ter sido surpreendida três meses depois com uma ordem de despejo por conta de mensalidades atrasadas. A dívida foi quitada, mas a Chape já não era mais fiadora do aluguel. O imbróglio fez com que Rosângela decidisse deixar a cidade para retornar a Recife, sua terra natal. Ela deve se mudar em julho. A Chapecoense nega a versão. Diz que pagou o aluguel por cinco meses após o acidente e que nunca prometeu bancar o apartamento da família de Cléber Santana.
O clube diz não ser insensível aos protestos das viúvas, mas os considera infundados e enumera os esforços no sentido de amparar as famílias.
– Nós compreendemos essa postura. A morte é algo traumático e cada um reage a sua maneira. Acredito que as reclamações são, muitas vezes, injustas. Nós fizemos tudo que era possível, começando com o velório, o transporte dos corpos. Contratamos aviões, fizemos a logística. Estamos dando acompanhamento psicológico para as crianças. Pagamos hospitais na Colômbia para os sobreviventes – diz o vice-presidente do clube, Ivan Tozzo. – Uma das reclamações, a demora para a entrega dos pertences das vítimas, nós resolvemos agora em Medellín. Pagamos para trazer os objetos que estavam no aeroporto. Agora, estarão em Chapecó, e as famílias podem vir buscar.
A Chape também ressalta o esforço para, com familiares de vítimas, buscar indenizações junto à companhia aérea LaMia. Houve uma proposta de acordo feita pela seguradora, mas o departamento jurídico do clube aguarda a conclusão das investigações na Colômbia para guiar a argumentação que irá adotar no processo.
Viúva do presidente do clube, Sandro Pallaoro, Vanusa resume o embate:
– São questões complicadas. Temos de nos colocar no lugar de quem está administrando o clube, até porque sempre estivemos desse lado. Eu procuro fazer isso. É difícil, são muitas vítimas. O Sandro e os outros dirigentes que estavam no avião tinham ideias muito parecidas. Pensavam, talvez, um pouco diferente dos que estão no clube hoje. Também entendo as viúvas. Reconheço que elas têm sua razão.
A rotina das mulheres dos mortos influi diretamente em como encaram o luto. Quem tem atividades profissionais costuma falar dos últimos seis meses de maneira mais tranquila. Só que a vida nômade do futebol impede que elas firmem carreiras. As famílias devem estar prontas para levar a mala em direção ao próximo clube do marido.
Fica estabelecida, dessa maneira, uma estrutura familiar em que a mulher acaba dedicando-se integralmente ao companheiro. Quando ele sai de cena, ela perde o chão.
Além da perda emocional, a viúva enfrenta a tarefa de assumir decisões importantes que antes cabiam a ele. Os fatores se somam, tornando a saudade quase insuportável.
– No momento em que eu perco o Ananias, minha vida fica completamente sem sentido. A viuvez tem uma particularidade que outros lutos não têm, que é o de morrer uma parte de você, mas você continuar viva. Eu olho para dentro de mim e vejo o tamanho do vazio que existe – explica Bárbara, que retornou a Salvador, sua terra natal, logo após o acidente.
Hoje, ela vive em função do filho Enzo, cinco anos. Procura estabelecer uma rotina para o pequeno enquanto atravessa uma montanha-russa emocional. Tem dias melhores, em que suporta a rotina sem tantos percalços, mas também enfrenta crises de choro. Enfermeira formada, diz não ter condição, pelo menos agora, de voltar ao mercado profissional. Não consegue fazer planos. Para amenizar a dor, além da terapia, Bárbara recorre a um grupo de WhatsApp que criou. O Unidas por Amor reúne viúvas de jogadores e funcionários da Chape. Pedidos de ajuda nos piores momentos são constantes, ao que as "parceiras" de dor respondem compartilhando experiências.
Em Porto Alegre, Daielli da Silva descreve um cenário semelhante. A mulher do jogador Matheus Biteco, com quem namorou desde a adolescência, também não reúne forças para trabalhar. Por enquanto, vive da renda das indenizações e segue com a sensação de que o marido voltará da viagem à Colômbia a qualquer momento:
– Naquelas últimas semanas, entre a disputa das fases finais da Copa Sul-Americana e os jogos do Brasileirão, ele estava muito longe de casa. Isso aumentou essa sensação.
Daielli tem o apoio dos pais para tomar conta do filho Miguel, um sorridente bebê de nove meses. A prima, Stephani, também ajuda. Mulher do atacante Yuri Mamute, que jogou com Biteco no Grêmio, ela vai com frequência ao apartamento de Daielli na zona sul da capital gaúcha, acompanhada do filho Joaquim, dois anos. Outro visitante de praxe é Guilherme Biteco, irmão de Matheus que hoje atua no Paraná Clube. Ele deita no tapete da sala em brincadeiras animadas com Miguel e, por alguns instantes, tudo parece normal. Mas vem a noite, e Matheus ainda não retornou. E Daielli digere um pouco mais, a cada dia, a informação que recebeu há seis meses.
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*ZHESPORTES