Desde o fim da Olimpíada do Rio, a rotina de Eduardo de Rose, o médico de 73 anos que se tornou referência internacional do combate ao doping, é bem mais tranquila. Após gerenciar o controle de doping do Rio 2016, De Rose tem aproveitado a família em Porto Alegre. Deixou a Agência Mundial Antidoping (Wada), após 16 anos. Não escapa, porém, de inúmeras consultas de atletas que enviam e-mails com dúvidas. Querem saber se podem tomar esse ou aquele remédio. Ainda que não faça mais parte da mais importante entidade de controle de doping, o gaúcho tem atribuições em comissões médicas de entidades sul-americanas e pan-americanas. É um "papa" do antidoping no mundo.
Em novembro, De Rose recebeu ZH em sua casa e fez um balanço da trajetória que começou no Grêmio, quando era funcionário do clube e participou dos esforços para examinar os jogadores em um Gre-Nal.
A busca por um esporte mais limpo o levou ao Comitê Olímpico Internacional e o colocou na linha de frente, trabalhando em um total de 16 edições de Jogos Olímpicos (contando os de Inverno).
Nesta entrevista, o médico relembra as mais inusitadas tentativas de fraude que presenciou e reafirma sua confiança de que a tecnologia ajudou a fechar o cerco sobre quem usa substâncias proibidas. Com serenidade, minimiza as críticas da Wada aos controles de doping feitos no Rio. Em outubro, a agência publicou relatório em que apontou problemas de logística e falta de preparo das equipes, entre outras questões. De Rose lembra que os documentos da Wada referentes a Jogos Olímpicos sempre são carregados de questionamentos.
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O senhor tem uma extensa trajetória ligada ao controle antidoping. Quais eram as dificuldades do início, sem as tecnologias de hoje?
A história começou em um Gre-Nal nos anos 1970. Eu trabalhava no Grêmio, e houve um pedido para que houvesse exame antidoping no clássico. Não havia tecnologia no Brasil para fazer isso, mas já havia controle de doping no Uruguai. Fui lá para ver como se fazia. Trouxe as bases analíticas e de procedimentos, que eram muito primários. Logo em seguida, começou a haver uma discussão sobre doping no futebol brasileiro. Lembro que a gente falou com o presidente do CND (Conselho Nacional de Desportos), o brigadeiro Jerônimo (Bastos), e ele queria um dado objetivo sobre o doping no Brasil. Nós obtivemos em Curitiba. Fizemos um projeto de exame em pool. A gente colocava uma panela nos vestiários de clube de primeira divisão de Curitiba, todos os atletas urinavam ali e a gente examinava. Se não me engano, de 13 clubes, 12 mostraram o positivo. A gente não sabia quem, nem quantos. Mas havia ali a prova da existência de doping no futebol. Daí foi criada uma legislação. Desde 1972, o exame antidoping é feito no futebol e evoluiu para outras modalidades. Eu me envolvi desde o começo. Depois que saí do Grêmio, em 1978, isso virou um nicho da medicina do esporte. Fui para a Comissão Médica Pan-Americana. Fiz um trabalho em Caracas (nos Jogos Pan-Americanos de 1983) que foi uma chamada de atenção: ninguém achava que havia problema em Olimpíada, mas nós fizemos 19 controles positivos (quando o resultado acusa presença de substâncias proibidas) em Caracas. Esse trabalho levou o Comitê Olímpico a me chamar para a comissão médica do COI em 1984. Desde lá, em Los Angeles, até o Rio, em 2016, fiz 16 Olimpíadas, contando as de verão e inverno.
O senhor tem essa vasta experiência em Jogos Olímpicos. Como viu a organização da Olimpíada do Rio de Janeiro?
A minha percepção é de que havia muita dúvida sobre a realização do evento. As pesquisas não davam muita fé dos brasileiros. Mas, no meu ponto de vista, foi excepcional. É claro que houve coisas que não foram tão bem. Eu vim agora de Doha, da reunião da associação dos Comitês Olímpicos, e o Brasil foi muito elogiado. As avaliações do Comitê Olímpico Internacional foram muito boas. Em vários aspectos, superou Londres (2012). E a percepção do brasileiro mudou, de uma dúvida quanto à capacidade para a alegria da certeza de um evento bem realizado. Principalmente em duas coisas importantes: propiciar o máximo aos atletas e, sobretudo, a excepcional recepção do brasileiro às pessoas que vieram assistir.
Hoje estamos mais perto de um esporte limpo do que quando começou a luta contra o doping?
Em 1968, na Olimpíada do México, nós necessitávamos de 25 anos para fechar a porta de uma substância que aparecia. Por exemplo, a gente sabia que o anabólico esteroide estava sendo usado desde a II Guerra Mundial, e só foi detectado na Olimpíada de Montreal (em 1976). Hoje, quando se verifica a utilização de alguma coisa, o tempo necessário para fechar essa porta é de uma semana. O laboratório Balco, dos Estados Unidos, elaborou um anabólico esteroide de desenho, que significa que era usado somente para doping, não como medicamento. Não estava dentro daquilo que é controlado normalmente pelos laboratórios. E bastou uma semana para introduzir isso na lista de substâncias proibidas. Essas listas, hoje, incluem substâncias que estão em teste pela indústria farmacêutica. Em Toronto, no Pan de 2015, foram detectadas duas substâncias que não existiam no mercado, que estavam sendo desenvolvidos pela indústria farmacêutica.
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Como se controla uma substância que sequer chegou ao mercado?
Os laboratórios testam não só as substâncias que estão na lista. Quando uma substância começa a aparecer muito nos testes, já existe um estudo e um foco nessas substâncias. O meldonium, por exemplo, foi muito encontrado nos Jogos Europeus de 2015, realizados em Baku. A Wada (Agência Mundial Antidoping), então, tem a possibilidade de incluí-lo na lista. Além disso, a mídia social te permite um estudo sobre o que o atleta está usando. O Facebook é monitorado pela Wada para ver se mencionam alguma coisa, uma conversa entre os atletas. Existem sites na internet que ensinam como aplicar anabólicos. Tudo isso é controlado pelos dois lados. Tanto por quem procura alternativas para se dopar, que promove o uso da substância, quanto pelo antidoping, que controla. É uma luta em que nós sempre estamos atrás. O antidoping espera que apareça o doping, e isso implica que haja um tempo entre o uso do doping e sua detecção. O importante é que hoje esse tempo é extremamente curto. Hoje, a Wada tem convênios com a Interpol, que mantém, em Lyon, um escritório dedicado ao doping. As alfândegas têm convênios com a Wada e estudam a circulação de produtos dopantes entre os países. A indústria farmacêutica aponta substâncias que estão sendo estudadas e que podem, futuramente, ter utilização como doping. As fontes de informação do antidoping são muito extensas. É muito difícil de se ouvir que "eles estão usando alguma coisa que vocês não sabem". Hoje, o risco do antidoping está na fraude. Toda a estrutura humana tem uma permeabilidade. Alterar a coleta da urina, a urina coletada, a análise da urina...
Quais foram as tentativas de fraude que mais lhe surpreenderam?
Na Olimpíada de Atenas, em 2004, foram excluídos dois atletas húngaros de arremesso de peso. Eles criaram um instrumento para fraudar a coleta da urina, que é um momento crítico. Encheram um balão de urina limpa e o inseriram no ânus. Passaram um cateter por baixo do pênis e do períneo e, quando urinavam, apertavam as nádegas para eliminar essa urina que tinham no ânus. São atletas muito grandes, com as pernas muito grandes, e fica difícil verificar algo assim. Nessa oportunidade, já havia uma denúncia, então, na hora de eles entrarem, houve a substituição da equipe de coleta por um pessoal mais experiente. Os atletas se deram conta de que já fora detectado o problema, um deles se negou, voltou para a Hungria fugindo do controle, mas lá foi controlado e deu positivo. Os húngaros perderam ali duas medalhas de ouro. Existe, também, à venda na internet, pênis para fazer exame de urina. Há, inclusive, seis opções de cores, para contemplar diferentes tons de pele. Esse pênis tem um cateter que vai até um reservatório de urina. Se tu (o fiscal) não baixares as calças e apenas abrires na frente, o atleta puxa um pênis que não é o seu. Isso, na prática, eu não vi, porque a técnica ensina que o atleta tem de baixar as calças para fazer a coleta, justamente para evitar esse tipo de fraude. Mas são extremos, exageros. As técnicas de tomadas de amostra têm melhorado tanto que é difícil que os atletas tentem algo assim. Nos últimos casos de fraude, aparentemente houve alguma troca de urina no laboratório ou manipulação, como o que a Wada diz que ocorreu em Moscou nos Jogos de Inverno de Sochi (em 2014).
A Wada faz testes surpresa, fora dos ambientes de competição, para flagrar atletas que se doparam em períodos de preparação. Qual foi a importância dessa medida?
Foi fundamental. Isso foi criado depois dos Jogos de Seul, em 1988, quando tínhamos uma impressão muito clara de que havia atletas dopados que não foram detectados. A gente imaginou que o atleta usava isso durante o treinamento para chegar a um determinado nível, e, depois, parava. Pelas técnicas de controle daquela época, se o atleta parasse de usar 15 dias antes da Olimpíada, já não detectava mais. Logo após os Jogos de 1988, foi criado esse trabalho de fazer o controle durante todo o tempo. O atleta de alto nível tem de avisar onde está, praticamente diariamente, para que possa fazer o teste de surpresa. Se ele não estiver presente onde disse que está em três oportunidades, é considerado dopado.
Temos visto, com alguma frequência, testes positivos em amostras de Olimpíadas passadas. As amostras coletadas há quatro, oito anos, são retestadas com as novas tecnologias e se descobrem mais casos de doping. Até que ponto isso significa que os resultados de hoje serão colocados em questão daqui a oito, 10 anos?
Há um estatuto de validade de reanálise, que hoje é de 10 anos, antes era de oito. O COI reavalia. Pequim e Londres sofreram essa reanálise. As amostras são colhidas já com a previsão de que serão mantidas em Lausanne, na Suíça, durante 10 anos. O número de positivos que encontramos em Pequim aumentou seis meses depois, e aumentou violentamente sete anos depois. As técnicas de controle vão sendo aprimoradas e, cada vez mais, detectam quantidades menores. Essa é uma evolução natural da ciência. Eu diria que, a cada cinco anos, reverte-se tudo que se faz em antidoping. Daqui a nove anos, certamente teremos um reteste muito grande de amostras do Rio de Janeiro. Não é impossível que apareçam mais positivos da Olimpíada do Rio (pelo menos seis atletas foram flagrados nos Jogos).
Ainda antes da Olimpíada, houve o escândalo envolvendo o doping de atletas russos, que supostamente era incentivado pelo governo da Rússia. As revelações de um doping sistêmico surpreenderam o senhor?
Não, porque em todo o país com um sistema em que todos estão filiados a apenas uma área, é o governo que comanda tudo, a possibilidade de algo assim ocorrer é grande. No Rio 2016, por exemplo, eram três entidades independentes trabalhando: o laboratório, a ABCD (Agência Brasileira de Controle de Doping) e o Rio 2016.
Há quem diga que o doping é generalizado no esporte de alto nível. É ceticismo exagerado?
Não é assim. Mesmo com esse número alto de exames positivos de Londres e Pequim, se confrontar isso com os exames feitos, vai ser mais ou menos 1% dos controles. A média geral fica entre 0,8% e 1,1%. Varia de acordo com o esporte. O levantamento de peso é o de maior média de exames positivos entre os esportes olímpicos. O remo, o de menor. A Wada sabe o percentual de cada modalidade, o que orienta sobre onde procurar mais. Certamente se faz mais controle em atletismo do que em remo, judô ou tênis de mesa.
A Wada se manifestou recentemente apontando erros no controle antidoping da Olimpíada do Rio. Como o senhor viu essa manifestação?
Esse relatório impactou muito porque ninguém sabia que a Wada fazia esse tipo de relatório. Mas, se observarmos os relatórios da Wada dos Jogos anteriores, esse criticismo aparece sempre. É praticamente impossível atender tantos esportes sem acontecer um problema. Tem de ter uma equipe muito grande e bem preparada. Claro que o Brasil não pode ser comparado com, por exemplo, Estados Unidos, Coreia do Sul, Japão ou China, que já fizeram vários controles em Olimpíadas, que têm uma agência antidoping muito antiga e estruturada. No Brasil, tudo é novidade. Nossa agência é de quatro anos atrás. Penso que, realmente, houve problemas, não na execução, mas na preparação e montagem. Como execução, penso que chegamos aos números que o COI nos pediu. Não tivemos reclamações de Federações Internacionais, de Comitês Olímpicos. Eles veem o produto final. A Wada observa muito o antes, a forma. Algumas das críticas são válidas e, sobretudo, mostram a capacidade do brasileiro de improvisar na execução do controle, que foi o que nos salvou. O que os brasileiros e sul-americanos fizeram foi de uma superação incrível, a ponto de que algumas dessas coisas apontadas pela Wada não impactaram no controle. Como eu te disse, eu vim de Doha agora, e a Olimpíada foi extremamente elogiada.
Recentemente, veículos de imprensa noticiaram que sua saída da Wada foi motivada pelos erros apontados pela agência durante a Olimpíada. Essa informação procede?
Eu saí da Wada em 2014, terminou meu mandato no Conselho de Fundação. Aí, houve uma solicitação da NOC, que é a associação de comitês olímpicos, para que eu ficasse no Comitê Executivo por mais dois anos para alcançar a Olimpíada do Rio. Eu troquei do Conselho de Fundação e fui indicado ao Comitê Executivo em dois mandatos, porque eles são de apenas um ano. Fiz um ano e foi prorrogado por mais um, para fechar 2016. Já estava previsto que, depois do segundo mandato, eu sairia. Não houve nada, não houve expulsão, o que não existe na Wada. Simplesmente, houve um fim de mandato.
Como o senhor vê a gestão do esporte brasileiro, que costuma ser bastante criticada?
Confesso que não sei lhe responder. Não tenho formação de organização esportiva. Claro que, se comparar o esporte brasileiro com o europeu, há uma diferença no grau de profissionalismo. Mas vejo excelentes presidentes de organizações esportivas que são amadores e trabalham muito bem. E vejo alguns que não trabalham tão bem.
Como o senhor acompanhou os desdobramentos da crise política no Brasil?
Sou um profissional e entendo que seja referência em alguns assuntos, mas não sou referência nenhuma para avaliar politicamente. Tenho meu viés, minha ideologia. Mas não serve para mim para criticar ou avaliar publicamente os governos. O Brasil passou por um momento difícil e segue passando, vai continuar com essas delações novas da Odebrecht. Mas acredito que seja correto passar por esse tipo de processo, acho que purifica um pouco essa área. Penso que é correto que o governo federal se preocupe em controlar suas despesas, que o governo estadual se preocupe em pagar somente o que tem condições de pagar. Não sou dessas pessoas que entendem que invadir uma escola é uma maneira interessante de reclamar, existem outras formas de se fazer uma reclamação. Mas, como eu disse, essa minha opinião pessoal. São minhas ideias.