Eu já tinha gastado a ponta dos dedos digitando, de todos os lugares de Milão, os números do celular de Lúcio. Ele era zagueiro da Internazionale. Que, em tese, enfrentaria o seu homônimo de Porto Alegre na final do Mundial de Clubes, em 2010.
Talvez ZH devesse ter me enviado para o Congo, mas não havia como suspeitar do Mazembe. Até porque, se não me engano, nem havia campeão da África ainda. O certo é que eu ligava e nada do Lúcio atender. Resolvi fazer campana no portão do CT, que é uma fortaleza afastada, intramuros.
Lá, ele me atenderia. Ao menos era essa a certeza de seu empresário, Sandro Becker. Nevava em Appiano Gentile, a 40 quilômetros de Milão. O cenário era bonito, mas temperaturas negativas, após certo tempo, tisnam as melhores e mais bem intencionadas impressões. Frio de rachar, portanto. Medonho. Um segundo de desatenção, enquanto fui me esquentar no carro e... zás! Lúcio zuniu de carro, com os vidros fechados. Não me viu. E agora?
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Já no aeroporto, a caminho do Brasil, derrotado – nada é pior para um repórter do que voltar à Redação de mãos abanando –, tentei uma última vez. Do orelhão, por desencargo de consciência. Tinha desativado o meu aparelho italiano.
– Que bom te ouvir. Estou tentando te ligar o dia todo!
– Ah, me desculpa. Perdão. Não sabia que era tu. Sabe, é que a gente não pode atender o celular no CT. Mas não pode mesmo, de jeito nenhum. São as regras – explicou-me Lúcio, educadamente.
Regras.
Lembrei deste episódio a propósito do papelão de Fred ao não aceitar críticas do técnico Levir Culpi. Ele é o capitão. Tinha de dar o exemplo do respeito à hierarquia, mas agiu como um guri mimado que reclama do pai e da mãe porque o eletrônico bugou. Prometeu não jogar mais pelo Fluminense, cujo contrato milionário não prevê titularidade vitalícia. Sem falar na deselegância com os companheiros que, em outros jogos, entram em seu lugar. Ele deixa claro sua irritação quando sai. Levir teve paciência de conversar com ele e tudo se resolveu. Mesmo que Fred tenha pendências com o clube, isso não lhe dá o direito de se julgar dono da instituição. O jogador tem o direito de reivindicá-las, mas sem chantagem.
Os dirigentes correram para contornar a birra, quando deveriam tão somente puni-lo. Por sorte, Levir teve a paciência de conversar com ele e tudo se resolveu. Mesmo que o clube tenha pendências com Fred, isso não lhe dá o direito de se achar dono da instituição. Que cobre os seus direitos, mas sem chantagem.
Não foi o único episódio recente do gênero. Walter, do Atlético-PR, abandonou o banco de reservas quando Paulo Autuori fez a terceira substituição e ele não foi uma delas. Mandou o jogo às favas e desceu para o vestiário fazendo gestos obscenos para a torcida. Walter teve problemas na infância. Merece algum desconto, mas tudo tem limite. Uma organizada publicou um vídeo no qual um dos líderes o ameaça, olhando para a câmera: “Ou você joga por amor ou por terror”.
A direção do Atlético-PR agiu bem. Puniu os dois, Walter e a facção barra-brava. O primeiro terá o salário cortado. Os pseudotorcedores não podem entrar no estádio com instrumento algum por tempo indeterminado.Talvez as regras tenham mudado em Appiano Gentile quanto à telefonia móvel. O mundo corre numa velocidade alarmante. Mas aqui vale a simbologia – sem generalizações, bem entendido.
O próprio Lúcio não tem nada de indisciplinado. O fato é que, lá fora, o jogador brasileiro respeita regras e hierarquia. Sabe que será punido se não cumpri-las. Aqui, volta e meia acontecem patacoadas como a de Fred. Neymar, por exemplo. É craque. Não estava no 7 a 1. Mas desde lá vem aprontando na Seleção, comportando-se como intocável. No Barcelona, regras. No Brasil, suspensões por reclamação, deixando o time na mão. Por que o comportamento diferente?
Os jogadores voltam ao Brasil e sabem que aqui dá para relaxar. Dá-se um jeito. É uma sucessão de erros. Do clube, que não paga e se submete. Do jogador, que se impõe nestes termos. Costumamos condenar só os dirigentes pelo atraso do nosso futebol. Não sem razão. A CBF está aí, com o presidente atual, o antecessor e o que veio antes deles sob investigação internacional, envolvidos até o pescoço em propinodutos. Mas os jogadores, idolatrados pela criançada, bem podiam dar exemplos melhores.
O Bom Senso FC é uma grande iniciativa, mas não engrena porque seus líderes são ex-jogadores ou jogadores em vias de se aposentar. Quantos da ativa, famosos, capazes de garantir repercusssão e apoio, realmente se engajam e têm coragem de enfrentar possíveis represálias? Poucos. Nenhum, talvez.
Não erguem a voz, a não ser para reclamar de substituição. Simulam faltas. Acham legal enganar o árbitro e, pior: a torcida os aplaude. Se aliam a barra-bravas, como o próprio Walter, que pediu desculpas e fez as pazes com seus algozes. Usam bonés e mantas de organizadas para fazer média com elas.
Nesse ponto, ao menos, Fred merece aplauso: ele tem confrontado a parcela mafiosa da torcida do Fluminense. Mas errou ao protagonizar o papelão da semana. Atitudes assim só consagram a imagem fútil que os brasileiros têm na Europa. Lá, ao menos, eles cumprem regras. Aqui, nem isso.
A reformulação do futebol brasileiro passa também pelo amadurecimento dos jogadores, parte crucial do espetáculo. Chega de só passar a mão na cabeça de nossos ídolos. Jovens mimados produzem adultos fracassados.
Os clubes europeus sabem disso.
Os nossos, ainda não.