Não vi Johan Cruyff jogar, mas conheço a história do esporte e sei da chama de futebol ofensivo que ele manteve acesa, contra todas as probabilidades, nas últimas décadas. Chama essa que cresceu e virou incêndio de grandes proporções nas mãos de seu pupilo Josep Guardiola.
Só com vídeos aqui e ali tive contato com as arrancadas de cabeça erguida, os passes precisos e os dribles desconcertantes. Minha memória, talvez tão afetiva quanto a das testemunhas do gênio em ação, é a do ex-jogador que permaneceu fiel a suas ideias de futebol e manteve, quase sozinho, focos de resistência ao pragmatismo que se espalhava pelo esporte depois de sua aposentadoria.
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Em Amsterdã, a força da lembrança do Ajax de Cruyff permitiu o Ajax de Van Gaal, um legítimo – ainda que não tão brilhante – sucessor em meio aos anos 1990 recheados de sistemas defensivos competentes, contra-ataques velozes e nada mais. Em Barcelona, a convicção de ser protagonista do jogo, ter a bola, trocar passes e envolver o adversário se manteve graças ao ícone que lá estava, sempre atuante a cobrar futebol ofensivo do clube, mesmo quando a insistência em atacar resultava em gororobas táticas como a comandada pelo mesmo Van Gaal no fim do século passado.
Cada vez que se manifestava, Cruyff deixava evidente certo desespero ao ver o caminho que o futebol tomava nos anos 1980 e 1990. Era um defensor apaixonado das ideias que colocou em prática quando jogador, as mesmas que guiaram o trabalho de técnico no inesquecível Barça, chamado de "Time dos Sonhos", campeão da Europa em 1992.
Ele não aceitava a concepção tão difundida de que o futebol bonito era o lado oposto do futebol competitivo. E nem poderia aceitar. Um dos principais méritos de sua Laranja Mecânica era justamente o de mostrar ao mundo uma forma de manter vivo o jogo ofensivo, sem prejuízo de resultados. Era preciso doar-se na marcação adiantada e movimentar-se com intensidade para escapar de sistemas defensivos turbinados pelos avanços da preparação física. Não era mais possível contar apenas com a qualidade técnica, mas isso não significava a morte do ataque em nome do contra-ataque.
Ainda assim, nas décadas seguintes, o mundo do futebol parece não ter entendido o recado de Cruyff, Michels e sua turma. Ainda bem que ele estava lá, vigilante, para apontar os desvios no caminho e confrontar os defensores de um pragmatismo vazio.
Foi essa resistência que permitiu a Guardiola, o volante talentoso que comandou no "Time dos Sonhos", liderar a retomada do futebol ofensivo como alternativa competitiva e vencedora. O Barça multicampeão entre 2008 e 2012 seguiu a linhagem da Laranja Mecânica, modernizou seus conceitos e provou que era possível vencer sem prejuízo da estética.
Ainda bem que Cruyff viveu para ver essa nova revolução. E ainda bem que sua luta permitiu, mesmo a quem não o viu brilhar em campo, desfrutar do seu legado.
* ZH Esportes