Se fosse brasileiro, Madiba torceria para o Vasco. As várias etnias da África do Sul libertadas do Apartheid deram outros apelidos carinhosos para um dos homens mais dignos de todos os tempos, mas eles não vêm ao caso agora. O fato é que, tivesse nascido no Brasil, Nelson Mandela não escaparia de levar a Cruz de Malta dos camisas negras no peito. Não há escudo no Brasil que tenha a luta contra o racismo tão presente na sua história como o do Vasco.
Os grandes clubes brasileiros nasceram elitistas. Tornaram-se populares depois, invadidos pelo crescimento de suas torcidas. Importado da Inglaterra, antes o futebol recebeu guarida nas escolas e clubes de ricos. Não seria diferente na mais importante cidade do país com suas agremiações de regatas, no começo do século passado.
O Vasco não foi o primeiro a escalar um jogador negro no Rio de Janeiro. Segundo historiadores, esta primazia é do Bangu, em 1905. Faz sentido. Era um time proletário, de operários da Fábrica de Tecidos Bangu. A presença de Francisco Carregal nos estádios assustava as famílias aristocratas dos adversários. Mas Carregal era um só, e o Bangu não ameaçava Flamengo, Fluminense e Botafogo, da Zona Sul.
Em 1917, o Flamengo até suportou Arthur Friendenreich, primeiro grande ídolo nacional, um mulato paulista que alisava o cabelo para ser mais aceito nos salões da elite. Então, do subúrbio, surge o futebol do Vasco da Gama.
Em 1923, o Vasco estreou na Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT), espécie de primeira divisão da época. Foi um assombro. Os camisas negras (nada a ver com a tropa de choque fascista homônima, de Mussolini), como ficou conhecido o escrete vascaíno, sem a faixa transversal branca no uniforme, nasce do garimpo de jogadores negros, brancos, mulatos e nordestinos, todos pobres e bons de bola, que se divertiam nos campinhos suburbanos. Os comerciantes portugueses os registravam como empregados. O futebol ainda era oficialmente amador, embora tal prática estivesse com os dias contados. O pagamento de cachês estava disseminado. Para completar, o técnico uruguaio Ramón Platero chegara ao Rio com uma novidade do Prata: a preparação física.
O Vasco foi campeão de 1923 com uma campanha arrasadora, virando jogos no segundo tempo: 11 vitórias, dois empates e uma derrota. Indignados, os enfeitados da Zona Sul partiram para o revide no tapetão. Criaram a Associação Metropolitana de Esportes Aquáticos (AMEA), apoiados por times menores.
As cláusulas do novo estatuto proibiam a inscrição de jogadores com profissão indefinida, analfabetos e clubes sem estádio. Ou seja: miravam o fim dos camisas negras. Foi aí que aconteceu uma atitude de rara coragem à epoca. Um gesto que bem poderia inspirar nossos cartolas de hoje, em silêncio ao lado de Marco Polo Del Nero e sua turma do Fifagate. O então presidente do Vasco, José Augusto Prestes, recusou-se a aderir à AMEA. Não se submeteu às regras de ocasião. Preferiu correr o risco de encerrar atividades no futebol. O que não aconteceu, é claro. O público queria mesmo era ver o Vasco jogar. O jeito foi aceitá-lo no ano seguinte.
Daí para a elite aceitar negros em seus clubes foi questão de tempo. Era isso ou seguir perdendo. A carta que entrou para a história como Manifesto Vascaíno, em 1924, terminava assim, referindo-se aos pobres do elenco que não se enquadravam no novo estatuto:
"São doze jogadores jovens, quase todos brasileiros, no começo de sua carreira, e o ato público que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles, com tanta galhardia, cobriram de glórias. Nestes termos, sentimos comunicar que desistimos de fazer parte da AMEA".
O futebol diz muito de quem somos. Quem ajuda a marcar é solidário em casa ou na escola. O fominha só vê a si mesmo. Não olha ao redor. A classificação parece só um somatório de pontos, mas as marcas do Brasil estão ali. É um prazer navegar por elas, mas é triste ver o Vasco, ainda que nada tenha a ver com a nossa Província de São Pedro, quase rebaixado para a segunda divisão pela terceira vez em oito anos. E, pior, nas mãos de Eurico Miranda, um déspota que nada tem a ver com a origem tão bonita do clube que dirige. Mandela é muito mais vascaíno do que ele.
*ZHESPORTES