Tem mala de dinheiro, traição, chantagem e até fila para receber propina. Quando baixar a poeira do Fifagate, talvez alguma editora perceba o potencial das 280 páginas do documento que denuncia os envolvidos. Dali, tira-se um best-seller.
A leitura é fácil não apenas pelos relatos do suborno que chegou a Marin, da quantidade de dinheiro que circulou, ou da descrição minuciosa sobre como e quando os pagamentos pingavam na conta dos dirigentes. Os procuradores vão além: mostram intrigas, rasteiras, diálogos tensos entre corruptos e corruptores, reprimendas dos envolvidos a quem percebia a sujeira e ameaçava denunciá-la.
ZH teve acesso ao relatório entregue à Justiça americana e colheu cinco histórias que revelam os bastidores da lama do futebol mundial. Veja a seguir como ocorreu a corrupção, de acordo com as autoridades americanas..
1) Os votos da Copa 2010 vão a leilão
Levava quem pagasse mais. Um milhão de dólares já estavam garantidos: um representante da candidatura de Marrocos - cujo governo sonhava em sediar a Copa do Mundo - havia oferecido a quantia para Jack Warner em troca do seu voto.
Faltava pouco para o congresso da Fifa, que em maio de 2004 apontaria a sede da Copa de 2010. Seriam só 24 votantes, entre eles Jack Warner e o camarada de trapaças Chuck Blazer. O suborno marroquino era, digamos, satisfatório - a verdade é que US$ 1 milhão, para aqueles dois, não eram lá grande coisa.
Aqui, um parêntese.
A dupla já tinha viajado para Marrocos 12 anos antes, em 1992. Na época, depois de uma conversa com autoridades de lá - não se sabe bem o que lhes foi prometido -, toparam apoiar o país no congresso da Fifa que elegeria a sede de 1998. Mas ganhou a França. Decidiram, então, abrir negociações com outra nação africana: a África do Sul.
Não demorou para uma maleta de dinheiro, entupida com maços gordos de US$ 10 mil, aterrissar em frente a Jack Warner em Trinidad e Tobago.
Quem lhe trazia era o próprio filho - que, a mando de Warner, fora buscar a dinheirama em um quarto de hotel em Paris, onde um representante da candidatura da África do Sul, ávido por receber a Copa de 2006, o esperava com a maleta. Negócio fechado. Mas a Alemanha venceria a disputa.
Fecha parêntese.
"A África do Sul agora está oferecendo US$ 10 milhões..."
Jack Warner para Chuck Blazer, informando quem pagava mais pelo voto na sede da Copa de 2010
Às vésperas do congresso de 2004 - que decidiria a sede do Mundial de 2010 - e com US$ 1 milhão garantidos por Marrocos, Jack Warner chamou o comparsa Chuck Blazer:
- A África do Sul agora está oferecendo US$ 10 milhões...
O plano era o seguinte: o governo sul-africano liberaria a verba para a União Caribenha de Futebol (CFU) como um "apoio à diáspora africana". E o líder maior da CFU, o próprio Jack Warner, faria com o dinheiro o que bem entendesse. Tudo certo: a África do Sul tomou os votos de Marrocos. E ganhou o pleito para sediar a Copa de 2010. Mas...
Quatro anos se passaram, e nada de o governo transferir a bolada - não é tão simples justificar um repasse de US$ 10 milhões em dinheiro público. A saída foi a própria Fifa descontar esse valor do montante que investiria na África do Sul para a organização da Copa. E depositar os US$ 10 milhões na conta da CFU.
E quem fez esse depósito? Conforme o New York Times revelou na segunda-feira passada, foi Jérôme Valcke, secretário-geral da Fifa e braço-direito do presidente Joseph Blatter. Na terça-feira, Blatter caiu.
Entenda os fatores que pressionaram Blatter a deixar a presidência da Fifa
2) O chefão paraguaio exige sua parte
Tinha algo mal ali: por que logo o presidente recusava-se a assinar o contrato?
Era para ser um grande dia aquele 23 de janeiro de 1991 para o brasileiro José Hawilla: em uma cerimônia na sede da Conmebol, em Assunção, no Paraguai, ele assinava o acordo que lhe renderia os direitos de marketing e transmissão de TV das próximas três edições da Copa América. Um negócio da China. Dois executivos da Conmebol rubricaram o contrato também, mas o presidente da entidade, Nicolás Leoz, se fez de salame.
Terminada a solenidade, Leoz chamou o empresário em uma sala.
- Olha, Hawilla... - começou ele. - Você vai fazer um dinheirão com esse contrato. Não acho justo que eu não ganhe nada.
Recado claro. Horas depois, Hawilla já havia transferido centenas de milhares de dólares (não há confirmação do valor) para o dirigente paraguaio. Que assinou o documento, mas seguiu na cola do empresário. Pouco antes de cada edição da Copa América, Leoz pedia mais dinheiro, e assim Hawilla conseguia sempre renovar o contrato, sem dar chance para a concorrência. Em 2011, a propina de Leoz superava os milhões.
"Você vai fazer um dinheirão com esse contrato. Não acho justo que eu não ganhe nada"
Nicolás Leoz exige propina de José Hawilla
Nesses 20 anos, entre 91 e 2011, mais gente cresceu o olho. Dirigentes graúdos do futebol sul-americano perceberam que o empresário fazia de tudo para manter sua mina de ouro.
- Quem sabe US$ 1 milhão? - propôs a José Hawilla o presidente da Federação Venezuelana de Futebol, Rafael Esquivel, em 2007, ano em que a Copa América ocorreria em seu país.
Levou. No mesmo ano, cobrou mais US$ 700 mil. Levou também. E, quatro anos mais tarde, em reunião na Argentina, pediu US$ 1 milhão de novo. Hawilla topou tudo, até porque esperava que Esquivel o apoiasse em uma disputa com empresários argentinos que cobiçavam os direitos das próximas edições do torneio.
Ledo engano, como você verá no próximo texto.
3) Propina para toda a América
Um sucesso, aquela coletiva de imprensa: Jeffrey Webb e Eugenio Figueredo recém haviam anunciado uma edição extraordinária da Copa América para 2016 - dessa vez reunindo seleções de todas as Américas, de Norte a Sul, para celebrar o centenário do torneio. Os repórteres foram generosos, perguntas fáceis, talvez não soubessem da quadrilha que tomava o auditório.
Lado a lado na plateia, estava o quarteto de sócios que abocanhara os direitos de marketing e transmissão do evento. Era 1º de maio de 2014, uma manhã de sol em Miami, e os quatro engravatados se dirigiram a uma sala menor quando a conferência acabou. Alejandro Burzaco, lá pelas tantas, pesou o clima:
- Se isso acabar mal, vocês sabem, vamos todos presos.
Os outros três - José Hawilla, Hugo Jinkis e o filho Mariano Jinkis - se retesaram nas cadeiras, mas seguiram discutindo o esquema de propinas. Além de Jeffrey Webb e Eugenio Figueredo (que minutos antes haviam anunciado com pompa a Copa América Centenário), um bando de dirigentes da Fifa, da Conmebol e da Concacaf já embolsava milhões repassados pelo quarteto.
A distribuição de suborno ganhou esse engorde em 2013, quando o empresário brasileiro José Hawilla, o todo-poderoso dono dos direitos da Copa América, foi alvo de um motim para derrubá-lo. Ou ele se aliava a um trio de argentinos que prometia propinas maiores a líderes da Conmebol - um dos líderes da revolta foi Rafael Esquivel, da Federação Venezuelana, que recebera de Hawilla "apenas" US$ 2,7 milhões nos últimos anos -, ou nunca mais teria seu contrato renovado.
Paciência, Hawilla topou. Para cada edição da Copa América em 2015, 2019 e 2023, os quatro sócios dariam US$ 20 milhões em propinas - outros US$ 20 milhões seriam distribuídos na assinatura do contrato. O brasileiro José Maria Marin, por exemplo, embolsaria sempre US$ 3 milhões na partilha.
"Se isso acabar mal, vocês sabem, vamos todos presos"
Alejandro Burzaco alerta seus sócios sobre os perigos do esquema
No alegre dia do anúncio da edição extraordinária da Copa América, prevista para 2016, os quatro sócios debatiam a distribuição do suborno referente ao novo torneio: mais US$ 30 milhões para a turma toda. Como bem alertou o profético Alejandro Burzaco, se a coisa desse errada... ocorreria o que ocorreu.
Entenda os principais pontos da investigação que prendeu caciques do futebol mundial
4) O dedo-duro enfurece Warner
Jack Warner estava furioso: um deles o havia dedurado.
- Tem gente aqui achando que é santinho! Quem acha que é santinho que abra uma igreja, meus amigos. Nosso negócio é o nosso negócio - ralhou o presidente da Concacaf em um salão do luxuoso hotel Hyatt Regency, em Port of Spain, capital de Trinidad e Tobago.
Todos se entreolharam. Havia ali uns 20 representantes de federações caribenhas que, no dia anterior, tinham levado uma boa grana. Só que um deles abriu o bico: contou a picaretagem para Chuck Blazer - braço-direito de Warner na Concacaf -, que ficara em Nova York, apartado do esquema.
"Quem acha que é santinho que abra uma igreja, meus amigos"
Jack Warner se irrita com quem dedurou a compra de votos
Voltemos um dia. Dez de maio de 2011.
Quem discursava naquele mesmo salão do hotel tobaguiano era Mohammed Bin Hammam, figurão do Catar que concorria à presidência da Fifa. Ele sabia das dificuldades para vencer Joseph Blatter na eleição marcada para julho, por isso pedira para Jack Warner reunir a turma do Caribe. Queria o voto de todos.
Como tudo tem seu preço, Bin Hammam já havia depositado US$ 363,5 mil na conta da União Caribenha de Futebol. Mas o que motivou o dedo-duro viria depois. Terminado o pronunciamento de Bin Hammam, Warner avisou a todos:
- Tem um presente para vocês na sala de conferências.
Oba, foram todos para lá. Na porta, um funcionário da União Caribenha orientava que entrassem um por vez. Cada um que entrava recebia um envelope com o nome de sua federação. A instrução era abri-lo ali mesmo e, ao sair da sala, não comentar com ninguém sobre o conteúdo. E que conteúdo: US$ 40 mil.
No dia seguinte, antes de passar o pito em todo mundo por causa do alcaguete, Jack Warner avisou que o presentinho era de Bin Hamman. Sem presente e alijado do pacto, Chuck Blazer botou a boca no trombone: denunciou Warner e o figurão do Catar ao Comitê de Ética da Fifa. Os dois foram expulsos da entidade.
5) Os filhos trombadinhas de Jack
Um funcionário da agência de ingressos da Fifa foi claro com Daryan Warner, o primogênito do chefão Jack. Se ele estivesse associado a um parceiro que a entidade não aprovava, não teria direito a receber entradas para a Copa do Mundo de 2006.
O nome citado era justamente o do comparsa de Daryan. Se juntaram com planos de revender os bilhetes - acrescendo um ágio estratosférico, claro. Queriam enriquecer às custas de fãs sedentos por lugares no Mundial da Alemanha. E agora?
E agora, nada. Daryan aprendeu em casa como mentir sem pestanejar. Fez-se de desentendido e negou qualquer relação com o desafeto da Fifa. O plano deu certo. Ou quase.
A Fifa desconfiou, contratou uma firma de auditoria e investigou. Daryan tentou sustentar a mentira, entregou documentos falsos para comprovar que não era ligado ao sócio, mas não convenceu: o primogênito de Jack foi banido, não poderia comprar ingressos para a Copa seguinte, na África do Sul. A punição, porém, não o freou: pediu ao pai e ao irmão, ambos executivos da Fifa, que conseguissem os bilhetes. Jack e Daryll usaram de seus cargos para alcançar as entradas ao parente golpista.
Enquanto o primogênito fazia das suas, Daryll construía uma farsa para obter um financiamento de US$ 690 mil e comprar um imóvel em Miami. O pai deve ter se orgulhado do festival de mentiras no formulário em que o filho pedia o parcelamento do valor: residência falsa, emprego que não tinha, renda incompatível com a realidade e bens que não existiam. Mais: Daryll deu ao banco um número de telefone para checar as informações, e combinou com um comparsa para que se passasse como seu chefe e confirmasse a história.
De financiamento aprovado, faltavam os US$ 300 mil da entrada. Daryll pediu tempo para fechar o negócio, já que precisava juntar o dinheiro. Finalmente, voltou com dois cheques. Um deles, no valor de US$ 100 mil, veio da conta do Centro de Excelência da Concacaf, direto dos cofres da entidade chefiada pelo pai Jack.
* ZH Esportes