Faz pouco mais de dois meses que Carlos de Pena chegou ao Inter. Esse dado impressiona, já que fazia tempo que algum jogador relativamente desconhecido desembarcava em Porto Alegre, assumia papel fundamental na equipe, mudava o jeito de jogar e tivesse tamanha ascensão em campo. Em 40 dias, o meia que saiu da Ucrânia em meio à guerra virou peça-chave e será titular contra Flamengo sábado, 21h, no Beira-Rio, na 11ª rodada do Brasileirão.
Mas para quem conheceu o uruguaio de 30 anos, nada disso é surpresa. Trata-se de um atleta acima da média especialmente no aspecto intelectual. De Pena completou todo o período escolar e cursou dois cursos superiores.
Fala, além do espanhol, inglês e russo, ambos com fluência. Se garante no francês. E, ainda no interior paulista, concedeu a seguinte entrevista, cujas perguntas foram todas feitas em português.
Uma das razões de sua chegada ao Inter foi a guerra na Ucrânia. Li relatos dos momentos de horror que viveu lá. O que pode falar sobre isso?
Estava na pré-temporada, em fevereiro, na Turquia, e a situação na Ucrânia era ruim. Na capital estava tranquilo, mas quando chegamos a Kiev, piorou. Lembro do dia, 23 de fevereiro. Era o último treinamento, tinha preocupação com o que ia acontecer. Comentei com o técnico (o romeno Mircea Lucescu) e com o presidente (Ihor Surkis), que me disse que não aconteceria nada em Kiev, que ficasse tranquilo. Fui dormir, estava sozinho, minha família estava no Uruguai. Acordei às 4h com barulho de aviões e uma bomba que explodiu perto de onde morávamos.
Foi daí que se juntaram aos outros?
Saímos direto para um hotel, em bunker, com alguns jogadores do Shakhtar, Vitão estava junto. É uma situação que ninguém espera nem deseja viver. E contar isso me dá recordações negativas, já que continua a guerra, as pessoas estão sofrendo. Tivemos sorte em sair de lá.
Antes da guerra, como era a vida na Ucrânia?
A vida era boa. País tranquilo, seguro, há muito o que fazer, restaurantes, praças, locais para ir com a família. Tínhamos uma vida tranquila no condomínio onde morávamos, também outros jogadores do Shakhtar e do Dinamo. Minha mulher e meu filho estavam comigo. Tenho boas recordações. Esportivamente, fomos campeões, disputamos Liga dos Campeões. Sou muito grato à Ucrânia.
Tem um vídeo que mostra você falando russo em uma entrevista. Como foi para aprender?
É uma língua difícil, consegui fazer aula por seis, oito meses. Veio a pandemia, parei com as aulas. Mas consegui falar com os companheiros do clube. E cada vez que não entendia, perguntava. Aprendi palavras novas, a formar frases e consegui dar entrevista em russo.
Você gosta de estudar, aparentemente.
Na minha casa, se não estudasse, meus pais não me deixavam jogar (risos). Fiz ensino fundamental, o médio e dois anos de universidade, administração de empresas. Precisei sair quando fui vendido para a Inglaterra. Retomei quando voltei ao Uruguai. Ano passado, comecei a estudar Recursos Humanos, são quatro anos, mas quando cheguei no Brasil vi que era difícil demais por causa dos jogos. Quem sabe mais à frente posso tentar de novo. Gosto disso, também dos idiomas, aprendi inglês desde pequeno, depois russo, estou estudando português, já fiz francês. Precisamos manter a cabeça ocupada porque a carreira no futebol é curta e, quando termina, ainda tem 35, 40 anos e tem a vida inteira pela frente.
Por essa razão, imagina-se que Porto Alegre seja mais fácil para se adaptar.
Porto Alegre é muito mais fácil, a língua é fácil de aprender. Tem costumes parecidos com os do Uruguai, como mate, a carne, as pessoas, o clima é parecido. Sempre digo que as pessoas no Brasil são mais alegres, isso é bom para a família se adaptar. Todos estão felizes aqui. É perto de Montevidéu, tem um voo de uma hora, podemos receber visitas. Quando a pessoa fica longe do país, trata de deixar o mais parecido com casa. E eu me sinto em casa.
Você foi contratado, chegou, mal treinou, jogou e não saiu mais do time. Como fez para se adaptar tão rápido ao clube, além da cidade?
Quando consegui sair da guerra, fiquei um mês no Uruguai treinando com um personal trainer. Sabia que quando chegassem as oportunidades, deveria estar preparado. Quando Cacique ligou para mim, perguntou se eu poderia jogar em seguida. Respondi que sim. Ele me conhece: me teve como companheiro, como treinador e graças a Deus pude vir para o Inter. Mal cheguei e já fui para o Equador, atuei alguns minutos contra o 9 de Octubre. Depois fui titular contra o Atlético-MG. Duas semanas depois, Cacique saiu, mas chegou Mano, me deu confiança, trocou a posição. A adaptação foi boa, o pessoal do clube ajudou muito, e isso é importante, ainda mais para um estrangeiro.
Aí você chega, indicado por um treinador, muda de vida, de país e duas semanas depois ele sai. Chegou a temer pelo futuro?
Quando ele saiu, fiquei em dúvida do que aconteceria comigo, porque vim para cá graças a ele, e agradeço muito por isso. Mas sempre falo que se fizermos bem nos jogos e treinos, as oportunidades vão aparecer. Mano chegou, enfrentamos o Fluminense e ele disse que me colocaria em uma posição mais por dentro, não como extrema, e o time foi bem, ganhamos e ajudou a seguir jogando, com a dinâmica que o técnico espera. Fizemos partidas boas na Colômbia e em casa, mesmo que tenhamos deixado pontos, como contra Corinthians. Aqui no Brasil tem jogos a cada três dias, então estamos sempre descansando ou em campo, há pouco tempo para treinar. Estou feliz, em um grande clube, e aproveitando muito.
Qual é a posição do De Pena em campo?
Comecei jogando na posição que atuo agora quando criança. Aos 17 anos, um treinador me disse para mudar para extrema. Joguei duas temporadas no Nacional-URU de extrema e fui vendido para a Inglaterra (Middlesbrough). Lá e na Espanha (Oviedo), segui como extrema. Na Ucrânia joguei de meia, e em algumas partidas fui até lateral, quando estávamos perdendo e precisávamos cruzar para a área. Mas acho que minha posição natural é esta que ocupo agora. Porém, é importante dar ao treinador mais opções, deixar claro para ele que pode contar comigo onde precisar para poder trocar dentro do mesmo jogo.
Quais são as vantagens e desvantagens de cada uma?
Pelo meio é mais fácil jogar, enxerga melhor o campo. Na extrema, tem limitação maior, sempre com alguém chegando por trás, é mais difícil armar o jogo. Me sinto confortável. Temos jogadores de ótima qualidade nesse setor, como Edenilson, Alan Patrick, mais à frente Wanderson. É fácil quando alguém recebe a bola e tem muitas opções para passar. Estamos nos entendendo bem.
Sabemos os objetivos do Inter. Mas e os seus, individuais, quais são? Pretende voltar para a Europa, ou a experiência foi traumática? Ir para a seleção?
Meu primeiro objetivo é o próximo jogo. Mas claro que temos planos a longo prazo, sonhos para realizar, não vou mentir. Mas estou focado 100% no Inter. Realmente penso que temos potencial para conquistar título. Todos os jogos do Brasileirão são muito difíceis, em 2022 está sendo mais ainda. É uma competição parelha, não tem quem não perca ponto. Vai ser assim até o final, e penso que o Inter pode estar nas primeiras posições. Mas precisamos ser fortes jogo a jogo.
E tem a Sul-Americana.
Na Sul-Americana qualquer equipe das oitavas pode ganhar. As brasileiras são muito fortes, os uruguaios, argentinos. E temos um adversário muito duro pela frente, o Colo-Colo não vai ser nada fácil. Mas podemos chegar longe. Vou sonhar com esse título. Conquistar com o Inter seria um sonho.
Diego Alonso chegou, mudou a seleção uruguaia.
A seleção é um sonho que todos os uruguaios têm. A única maneira possível de ser convocado é jogando bem pelo clube. Estou em uma liga competitiva, mais competitiva do que a Ucrânia. Isso permite que o treinador (Diego Alonso) me veja mais vezes e se em algum momento chega a convocação será porque fiz bem.
Tem 26 jogadores uruguaios melhores do que o De Pena?
Tem jogadores muito bons na seleção. Especialmente no meio-campo. Atletas que estão nas maiores equipes da Europa. E também no resto da América do Sul, Brasil, Argentina. Fora também no México. É o técnico que decide. Diego Alonso está indo muito bem, desde que chegou o Uruguai não perdeu nenhuma vez. A oportunidade vai aparecer se o jogador fizer sua parte. Na Ucrânia, talvez ele me visse nas partidas da Liga dos Campeões, mas normalmente são poucas. A liga não é tão competitiva como a brasileira, a argentina ou a mexicana. O futebol muda rápido e quando menos se espera pode chegar ao local em que mais deseja.
Além de ver futebol, o que mais faz em Porto Alegre?
Gosto de estar com minha família, com meus amigos. Sou simples, desfruto das pequenas coisas. Meus amigos vêm me visitar, como já vieram meus pais, meus sogros. Gosto de jantar com minha mulher e com meu filho, de fazer um churrasco com os amigos, companheiros de times. Não tenho nenhuma paixão maior do que o futebol e compartilhar momentos com família e amigos.
Imagino que a guerra tenha deixado isso ainda mais claro.
As pequenas coisas são as que menos valorizamos, mas percebemos que são as mais importantes. Quando estava na Ucrânia e só conseguia pensar em como em sair de lá, o que mais desejava era voltar, ver meu filho caminhar, encontrar minha mulher, dar um abraço nos meus pais. Essas são as coisas mais lindas da vida e muitas vezes deixamos de lado por coisas materiais ou pelo que pensamos que tenha mais importância, mas não é.