Imagens e Reportagem: Leonardo Oliveira / Edição: Marcelo Carôllo
Respeitem Vitinho. Porque sair do Complexo do Alemão e ganhar o mundo é triunfo exclusivo dos vencedores. Para viver lá é preciso ser forte. Sair de lá, então, nem se fala. Subi o Alemão para rastrear a trilha feita pelo atacante dos primeiros passos até o Gre-Nal 411, neste domingo, na Arena. O morro está pacificado, mas até por ali. Usando um adjetivo típico do vocabulário carioca, há áreas sinistras.
Vitinho nasceu e cresceu na Nova Brasília, uma das favelas que fazem parte do Complexo do Alemão. Para você entender, o Complexo é uma cadeia de comunidades que se esparramam pelo morro, lado a lado, na zona norte do Rio. Ganhou esse nome porque, na década de 1920, as terras tinham como dono o polonês Leonard Kaczmarkiewicz. A Nova Brasília é uma das favelas mais proeminentes – assim como a Vila Cruzeiro, de onde saiu e para onde sempre volta Adriano Imperador. A fama do lugar desce o morro e se instala no asfalto. Na tarde de quarta-feira, o táxi que me levava da Zona Sul até o Alemão passou da entrada da favela. Paramos para pedir informações a dois sujeitos que conversavam fiado sob a sombra de uma árvore diante de uma borracharia.
– Onde fica a entrada da Nova Brasília?
– Você vai entrar lá? Leva o passaporte – disse um deles, com um leve sorriso.
– Lá a bala come, hein? Leva o colete – emendou o outro.
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Havia algum exagero nos alertas dos dois informantes. A Nova Brasília deixa de ser inóspita quando se sobe com um local. A entrada da favela se dá pela Itaoca, uma avenida de trânsito confuso e comércio tão borbulhante como desorganizado, com calçadas apinhadas de ambulantes e lojinhas de todo tipo. Vitinho se criou numa ladeira na parte de baixo da Nova Brasília, onde as fachadas das casas revestidas por piso azulejo emprestam um aspecto que destoa do restante da favela.
– Aqui, como posso te dizer... Aqui é a parte nobre da comunidade – explica João Augusto Barbosa, o Dão, o primeiro técnico de Vitinho e responsável por tocar há 27 anos o União, projeto social voltado para o futebol.
Vitinho morava numa rua paralela ao campo do União. Na verdade, apenas dormia na casa instalada no primeiro andar de um prédio que, no térreo, ainda hoje abriga um bar com mesa de sinuca, cerveja gelada e um balcão que convida para a conversa fiada. O resto do tempo, ele passava na escola ou no campo de areão, de laterais com dimensões de futebol de campo e profundidade com medidas de futebol sete, o que o deixa mais para quadrado do que para retangular. Dão conta que era comum o pai, Seu Rinaldo, ter de buscar o guri:
– O pai dele dizia: "Victor, vamos para casa, você tem de tomar banho, jantar e ir dormir". Aí, o Victor respondia: "Já vou, só deixa eu jogar mais um pouquinho".
Seu Rinaldo sempre concedia esse tempo extra. Até porque sempre acreditou no futebol como o melhor caminho para Vitinho. Filho de retirantes nordestinos, cresceu no Complexo do Alemão ao lado de uma família numerosa. Meia-direita de passe qualificado e chute preciso, era conhecido nos campos de várzea da região como Pará, uma contração de Paraíba. Os amigos contam que chegou a jogar no Everest, clube de Inhaúma, bairro vizinho ao Alemão, e que disputava as divisões menores do Carioca. Como o futebol não colocava dinheiro em casa, Rinaldo sustentava a família com o salário da construção civil. Mas via no filho potencial para ser o jogador de primeira linha que ele nunca foi.
Os amigos da família garantem que o sucesso de Vitinho está atrelado ao esforço de Rinaldo. Quando os pais se separaram, o atacante tinha por volta de 11 anos. O caçula, Vagner, dava os primeiros passos. O pai seguiu no Alemão com os dois filhos. A mãe voltou para Bonsucesso, bairro no sopé do morro onde se criou e tinha parentes. A essa altura, a vida de Vitinho já se dividia entre a Nova Brasília, onde morava e defendia o União, e Bonsucesso, onde estudava na Escola Municipal Pedro Lessa e jogava na escolinha da Associação Cohab Futebol Clube. Ainda estendia seus tentáculos até a vizinha Vila da Penha. Ali, o futebol era um pouco mais sério. Vitinho era atacante titular do time de futsal do Mello Tênis Clube. Formava uma dupla dos sonhos com Wellington, hoje titular do Fluminense e com passagem pelo Arsenal.
O Mello é o típico clube de bairro classe média. Tem sua piscina, salão de baile com camarote climatizado para a direção e a quadra de futsal coberta e com piso de cimento pintado. Em frente à sua sede, ainda conta com duas quadras de futebol society. Sua fama de formador de talentos corre o Rio. Foi ali que Carlos Alberto Torres, o capitão do Tri, deu seus primeiros chutes. Não só ele. Alexandre Torres, Digão, zagueiro, Fellipe Bastos e Wallace Oliveira, hoje no Grêmio, também deram seus primeiros chutes ali.
O clube, porém, nunca foi de fazer frente aos grandes, como Flamengo, Fluminense, Vasco e mesmo o Grajaú Tênis e o Grajaú Country. Seu único título citadino veio em 2001, no sub-9, por obra de Vitinho e Wellington. A dupla, além de desequilibrar, tinha trajetória parecida. Wellington vinha do Morro da Fé, comunidade vizinha ao Mello. O ginásio lotava para ver os guris em ação. Wellington era o "Carequinha". Vitinho, o Asprilla. O apelido foi obra do técnico José Augusto Rodrigo Cabral Baptista, o Tio Zé. Ele se encantava com o estilo arisco e driblador do seu atacante. Via na ginga diante dos marcadores semelhanças com a do atacante colombiano que fazia gols pelo seu Fluminense.
– Ele vai me matar, mas paciência. O Victor não gosta muito do apelido. Quando estava no Botafogo, veio aqui nos visitar, e eu o chamei de Asprilla. Ele, meio sério, disse: "Asprilla, não, Tio Zé. Agora sou Vitinho."
Só que apelido bom é o que cola. E esse colou. No Mello, Asprilla era famoso entre os frequentadores. Tão famoso que, em dias de jogos, só se ouvia uma frase na arquibancada:
– Solta a bola, Asprilla.
Vitinho sempre foi fominha. Na quadra do Mello ou no areão do Alemão, soltar a bola era uma tortura. Certa vez, Dão, o técnico no União, parou o jogo. Colocou uma bola sob a camisa do seu atacante e passou-lhe outra para sua perna direita:
– Essa aqui fica para você, mas a outra, que está no seu pé, passa para os companheiros.
Tio Zé defende seu pupilo. Cria até uma teoria para explicar seu individualismo:
– O Mello nunca foi de chegar às finais. Sempre perdia para os grandes, às vezes com placar elástico. O Vitinho nunca deixava de jogar, mesmo perdendo de cinco ou seis. Essa dificuldade em querer resolver talvez o tenha feito ser um pouco fominha, prender um pouco mais a bola.
Vitinho sempre foi louco pela bola. Em dias de treino no Mello, saía da escola e ficava na casa de uma tia, em Bonsucesso, à espera da hora para ir ao clube. O que fazia de carona com o amigo Murilo. Márcia e Ivanildo, pais de Murilo, se divertem ao lembrar da angústia de Vitinho. Chegava duas horas antes do horário marcado e apressava a saída. Quando chegavam à esquina do clube, ele disparava numa corrida até a quadra. Se havia alguém chutando uma bola, ele entrava sem pedir licença.
No Alemão, não era diferente. Dão se recorda que, nas noites mais quentes de verão, os adultos, entre eles Seu Rinaldo, ficavam conversando sentados na arquibancada do campo. Às escuras, sozinho lá dentro, Vitinho batia bola sozinho. Não demorava para que um provocasse:
– Só chuta de direita...
O guri se inconformava. Ajeitava a bola e mandava de esquerda.
– Viu agora? Chutei de esquerda.
– Não vi, não, chuta de novo.
Assim, garante Dão, Vitinho se tornou ambidestro. Nos jogos na favela, despontava pelo chute preciso mesmo de média distância. Fazia sempre o mesmo movimento: se posicionava na esquerda, dominava a bola e partia para o meio, de onde mandava para o gol. Foi assim que ajudou o União a ganhar títulos nos torneios na Nova Brasília. Os jogos eram encardidos. Numa semifinal do sub-14, contra o grande rival da parte alta da favela e na casa deles, o União perdia até o final do jogo. Dão olhou para o banco e chamou Vitinho, então com 12 anos. Ele entrou e, em um dos primeiros lances, dominou na esquerda, cortou para o meio e empatou. O resultado classificou o time. Na final, Vitinho voltou à reserva. O time ganhou, mas ele chorou inconformado. Queria jogar.
Ficar de fora desestabilizava o guri. Fosse por imposição do técnico ou da vida. Tio Zé se recorda da primeira vez que Vitinho iria enfrentar um dos grandes fora do Mello. Havia convocado Vitinho e colocado seu nome na lista do ônibus que levaria a delegação até a Gávea. Veio o domingo, ele não apareceu. No treino seguinte, Vitinho surgiu com o pai. Seu Rinaldo, a humildade em pessoa, explicou com sua fala pausada e baixa o motivo da ausência do filho.
– Seu Rinaldo, poxa, todo mundo esperando o Vitinho para o jogo – reagiu o técnico.
– Tio Zé, não deu para o Victor vir, não. Ele foi me ajudar a virar a laje, um servente faltou, e o Victor foi trabalhar comigo.
– O senhor vai guardar essa história e verá, lá na frente, como valeu a pena ele virar a laje com o senhor – emocionou-se Tio Zé.
Histórias como essa mostravam a simplicidade de Vitinho e de sua família e fizeram com que cativassem a todos no Mello. Não só isso, sensibilizava a determinação do guri em ser jogador. Com oito, nove anos, saía do Mello tarde da noite de carona com Ivanildo e Márcia ou com Tio Zé até o Shopping Carioca, onde pegava uma van até o Alemão. Os motoristas, todos moradores da região, já o conheciam e o desembarcavam na entrada da favela.
– A gente ficava com o coração apertado, era uma criança. E tinha de subir o morro. Mas o pai nos aconselhava a não levá-lo até lá, por ser perigoso para quem era de fora – conta o técnico.
Essa determinação foi decisiva ao final da trajetória no Mello, aos 13 anos. Seu Rinaldo estava no supermercado Pão de Açúcar quando viu o cartaz chamando para a Copa Sendas, uma competição feita pelo recém-criado clube do conglomerado de Abílio Diniz. O pai, é claro, inscreveu o guri. Pouco importava que o CT do Sendas, hoje Audax Rio, fosse em São João do Meriti, na Baixada Fluminense. Vitinho foi aprovado entre milhares de guris observados.
Michel Cravo, gerente executivo do clube, conta que, desde os primeiros treinos, Vitinho dava mostras de ser diferenciado. Os grandes do Rio colocavam o olho nele, mas nada o tirava do Sendas. Mesmo que gastasse duas horas para ir ao treino e mais duas para voltar, além de meia hora de caminhada. Vitinho tinha 15 anos quando em um jogo reencontrou Tio Zé, na época supervisor do Olaria.
– Vitinho, todos os clubes grandes querem você – reagiu o mestre.
– Aqui ganho cesta básica, o Sendas paga escola, almoço e ainda ajudo meu pai e minha mãe. Não posso ir para um time grande. Tenho de ficar aqui. Quando tiver que ir para um grande, vou – respondeu Vitinho, com a tranquilidade habitual.
Só que no ano seguinte, não teve escapatória. Cravo e o presidente do Botafogo à época, Maurício Assumpção, eram colegas em um MBA em Gestão e Marketing Esportivo. Por coincidência, se encontraram nas arquibancadas do CT do Sendas. Decidiram ver juntos a semifinal de turno do Estadual Juvenil de 2010 entre os dois times. Ao final do jogo, Assumpção avisou:
– Eu quero esse atacante.
Semanas depois, Vitinho desembarcou no Botafogo. Ganhou duas vezes o Estadual de Juniores, numa delas com gol sobre o Flamengo na final, e a mudança do Complexo do Alemão. Em 2013, viu sua vida mudar radicalmente. Foi campeão carioca no primeiro semestre e virou pai. Thayane, a namorada dos tempos de Nova Brasília, ganhou a pequena Manuela. No final de agosto, foi vendido por R$ 31 milhões ao CSKA. Por aquelas coincidências da vida, o Gre-Nal 411 se apresenta para ele também com transformações em sua vida. No final de julho, Thayane ganhou a gauchinha Maria Luísa. Em campo, Vitinho voltou ao time a mil e tem decidido a favor do Inter. Os últimos nove pontos saíram dos seus pés. Por tudo isso, e pela sua história de vida em apenas 23 anos, eu insisto: respeitem Vitinho.
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