Edição: Marcelo Carôllo | Imagens: Anderson Fetter e Ricardo Duarte
Foi naquela tarde de sábado, 26 de novembro de 2005, que um jogo de futebol virou lenda. No calor do Recife, sob a pressão da enérgica torcida adversária, o Grêmio viveu um dos momentos mais dramáticos de sua história. Com o time desmantelado por quatro cartões vermelhos erguidos pelo árbitro Djalma Beltrami, os comandados de Mano Menezes foram do desespero à euforia em apenas 71 segundos. Uma eternidade para os gremistas que sofreram naquele embate com o Náutico, que valia o retorno à Série A do Brasileirão.
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Foram dois pênaltis desperdiçados pelos pernambucanos. O último, batido aos 59 minutos e 40 segundos da etapa final, precedeu a glória que viria pelos pés do menino Anderson, então com 17 anos. A consagração de Galatto começou assim que Ademar ajeitou a bola para bater a penalidade, já que nenhum outro jogador do Náutico teve coragem de executar a cobrança. Antes de ficar frente à frente com o lateral-esquerdo, o goleiro murmurou:
- Boa sorte. Que Deus te abençoe - desejou.
Ao correr para a marca da cal, Ademar chutou em meia altura. Galatto caiu para o lado esquerdo e esticou a perna direita, mandando a bola para a linha de fundo. Fez, aos 22 anos, a defesa mais importante de sua carreira. Alívio tricolor? Não para o goleiro. Atônitos com a defesa, o único a abraçar o arqueiro é Lucas Leiva, que recebe como resposta:
- É escanteio. Vai vir bola na área, ó - alertou o goleiro.
Foto: Ricardo Duarte/Agência RBS
O escanteio é cobrado, e Pereira afasta de cabeça. O 0 a 0 servia para subir o Grêmio de divisão como segundo colocado. Mas o destino reservava mais para o clube que veste azul, preto e branco. Faltava o toque de Anderson. Por ironia do destino, quando completa-se uma década de seu feito antológico, o garoto que chegou a ser tratado como sucessor de Ronaldinho veste agora a camisa do maior rival. No Inter, mais forte e com a experiência do futebol europeu, não lembra tanto o jovem de tranças esvoaçantes que entrou no decorrer da partida nos Aflitos.
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Após o escanteio, o canhoto dominou a bola e, na intermediária, tabelou com Marcelo Costa. Na esquerda de ataque, é derrubado por Batata. Sob os protestos de Mano Menezes, o árbitro expulsa o atleta do Náutico. Naquele momento, eram 10 contra sete. A lógica diria para ganhar tempo, segurar a bola por lá. Não é o que acontece. Ao perceber a bobeira do time pernambucano, Marcelo Costa cobra rapidamente para Anderson. E o garoto vai.
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Foto: Ricardo Duarte/Agência RBS
Vai tanto que, aos 60 minutos e 51 segundos, se vê diante do goleiro Rodolpho. Chegou a pensar em dribá-lo. Prefere o chute com o pé esquerdo. A bola viaja ao fundo gol, num desfecho inacreditável, que Zero Hora relembra através dos relatos de 10 personagens daquela tarde histórica:
Patrício, ex-lateral do Grêmio
"O momento que o ábitro marca o pênalti, eu estou de frente para a bola, e a bola bate no Nunes, mas nitidamente ele está se protegendo. E eu vi que não foi pênalti. no impulso de uma reção, de querer fazer alguma coisa, num gesto de torcedor, de proteger sua equipe, eu tomei essa atitude (empurrar o árbitro). Quando eu vi, um policial se atira em mim com o escudo e me dá com o joelho na barriga. Eu caí meio desacordado. Eu só lembro que o Cacalo me levantou e começou a me levar para o vestiário. E eu não queria. Era aquele tumulto, aquela briga toda"
Galatto, ex-goleiro do Grêmio
"Sempre escuto os mais experientes. O treinador de goleiros, o Chiquinho, durante todo o ano me passou tranquilidade e algumas situações que poderiam acontecer. Claro que a gente não imaginava aquilo, expulsão, dois pênaltis contra. Eu procurava me manter tranquilo. Mas cada minuto que passava algo acontecia. Torcedor invadindo, Polícia Militar no campo. Não tinha como ficar muito concentrado. Mas eu tinha que ficar atento. Eu sou um cara meio frio, consigo controlar. Me lembro que o Chiquinho me chamou, Mano também, a gente teve um diálogo no meio do tumulto. Mas meu jeito é esse, de ficar atento. Dentro de mim, eu sabia que tinha que defender aquele pênalti, eu não podia demonstrar para os outros que estava nervoso"
Marcelo Grohe, goleiro do Grêmio
"Eu lembro que o banco de reservas do Estádio dos Aflitos é colado na grade, então a gente recebia muitos xingamentos da torcida. Diziam: deu para vocês. Quando o Galatto pegou, a gente comemorou muito. Mas a gente sabia que tinham mais 10 minutos. Quando o Anderson recebe a falta, é praticamente bem em frente ao nosso banco, onde a gente estava. E a gente imaginou que ali tinha que segurar, porque o empate nos servia. Aí o Marcelo Costa toca para o Anderson, ele dribla, e quando faz o gol, é uma explosão total. O Mano entrou em campo, doutor entrou em campo, a gente entrou. Ali tivemos a certeza de que não escaparia das nossas mãos aquela vaga"
Cacalo, ex-presidente do Grêmio
"Começa aquela confusão toda, e eu estou na arquibancada e penso: Meu Deus do céu, o Grêmio está sozinho lá, só os atletas. Não tive dúvida, saí correndo da arquibancada. Não sei se eu poderia fazer algo para ajudar, mas a intenção era essa. Não podia deixar um clube do tamanho do Grêmio sozinho dentro do campo. O Coronel Élvio (Pires), que estava conosco, da segurança do Grêmio, veio atrás de mim, e eu pedi para ele cuidar minha retaguarda. O Patrício tinha levado uma voadora, e o Mano veio na minha direção e pediu para levar o Patrício. Não sei da onde tirei forças para colocar ele no ombro. Levei até a boca do túnel e voltei"
Marcelo Lipatin, ex-atacante do Grêmio
"No primeiro tempo, durante uma cobrança de escanteio para o Grêmio, naquele empurra-empurra na área, levei uma cotovelada do Ademar. Na hora, tive muita raiva. Ele tinha sido desleal comigo. Mas não revidei. Lembrei de um versículo da bíblia "a ira do homem não opera a justiça de Deus". Depois, no lance do segundo pênalti, vi que ele ia cobrar. O Mano recém tinha me tirado para colocar o Marcelo Oliveira. Depois que o Ademar cobrou para a defesa do Galatto, tive a certeza de que nenhuma dor física superaria a frustração dele por perder aquela cobrança."
Antônio Carlos Verardi, superintendente
"Sinceramente, foi a maior emoção da minha vida em cinquenta e tantos anos de Grêmio. Mas não não gostaria de reviver. Era uma tragédia anunciada que, felizmente, se tranformou numa alegria imensa. Não há como descrever o alívio. Não sabia que tinha tantas lágrimas para chorar. Foi um mar de lágrimas. Lembro da minha tensão na hora do pênalti. Fiquei sozinho na área reservada ao Grêmio, todos os demais desceram para o campo. E eu ali, olhando para as paredes, pensando em como o clube iria enfrentar o futuro, mais um ano na segunda divisão. Mas há uma cena que eu jamais vou esquecer. Quando o jogo terminou, um casal de torcedores do Náutico, com seus três filhos, que estava próximo de mim, simplesmente me aplaudiu. Apesar de toda a frustração pela derrota, eles tiveram esse gesto de nobreza."
Paulo Pelaipe, ex-dirigente do Grêmio
"Na hora do pênalti, peguei meu rosário, que sempre carrego comigo, e saí porta afora do vestiário. Logo já tinha o portão de saída. Naquele momento não tinha nenhum torcedor do Náutico ali. E eu saio pensando o que seria do Grêmio, o que aconteceria. Caminhei uma quadra e meia. Para minha surpresa, não teve nenhum barulho. E eu vejo pessoas saindo do estádio, pergunto o que aconteceu e descubro que o Galatto defendeu. Aí eu saí correndo, entro no vestiário, e quando estou entrando correndo, vem o Renato Moreira e o Zélio Hocsman, completamente brancos, e gritam gol. E eu pergunto se tomamos um gol. E não. Era gol do Anderson. O Zélio me abraçava e chorava"
Pereira, ex-zagueiro do Grêmio
"O clube vivia uma situação frágil. O presidente havia nos dito que não sabia o que seria do Grêmio no ano seguinte se não voltasse à Série A. E quando aconteceu aquele lance do pênalti, tudo isso veio na minha cabeça. Nosso time tinha uma responsabilidade enorme. A direção estava naquela pressão para tirar o time de campo, mas o Mano disse para a gente ter calma e esfriar a cabeça. Quando acabou a confusão, o Domingos ainda ficava andando de um lado para o outro, falando sozinho. O árbitro estava com a bola na mão, ele deu um tapa para tirá-la e foi expulso. Virei e falei para ele "o que você fez?". Ele respondeu "não aguento isso". Depois, desceu para o vestiário e quebrou tudo. Mas também foi um dos que mais comemoraram nossa vitória."
Peninha, jornalista, escritor e torcedor gremista
"Eu assisti num underground, um apartamento subterrâneo, num subsolo, em São Paulo. Só tinha uma janelinha. E quando eu vi, eu estava no subsolo mesmo, o subsolo da minha mente. Eu estou deitado no chão, e minha ex-mulher diz que o Galatto ia pegar o pênalti, e que o Grêmio ia fazer um gol. Bastava eu rezar para Oxum. Eu olhei para ela, só que eu estava morto no chão. Se eu não estivesse morto eu matava ela (risos). Porque tu pode até achar, fica torcendo, mas não verbaliza que vai pegar o pênalti. Mas foi o que aconteceu. E eu virei, até hoje, devoto de Oxum. Aconteceu aquilo tudo, e eu quase quebrei a casa"
Luís Henrique Benfica, repórter de Zero Hora
"Ainda hoje é possível lembrar da tensão que envolveu o jogo. O Grêmio, que havia se concentrado em uma praia distante 39 quilômetros de Recife, só sentiu o verdadeiro clima da partida ao chegar aos Aflitos. A entrada no estádio já foi complicada. O ônibus foi cercado por torcedores e trancou no portão, que demorou demais a ser aberto. O sol de 35°C batia direto sobre o teto do vestiário e o suor escorria no rosto dos jogadores. Além disso, o cheiro forte de tinta era insuportável _ as paredes recém haviam sido pintadas. O nervosismo aflorava. Expulso, o zagueiro Domingos inconformou-se e destruiu o banheiro do vestiário a socos e pontapés. A paz só veio depois do jogo. Antes hostilizada, a delegação saiu sob aplausos dos Aflitos. Ninguém dormiu de sábado para domingo, mesmo que o voo fosse cedo. A madrugada foi de comemorações, com os jogadores se jogando na piscina. O Grêmio estava salvo."
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