O jogo entre as equipes feminina sub-13 de futsal do Pelotas e masculina da Escola JR Futsal, pela Liga Zona Sul de Futsal, transcorria sem percalços até os quatro minutos do primeiro tempo. A partir deste momento, as meninas do Pelotas começaram a ser agredidas verbalmente pela torcida nas arquibancadas. O motivo dos xingamentos misóginos: eram meninas jogando futsal contra meninos.
Os insultos que partiram de torcedores na tarde do dia 3 de novembro abalaram as adolescentes, viraram caso de polícia e motivaram debates na Assembleia Legislativa.
Os ataques verbais que intimidavam as garotas, porém, não foram suficientes para interromper a partida. De acordo com Gabriela Salvador, coordenadora da equipe do Pelotas, a bola só parou de rolar quando torcedores jogaram água na quadra. Mas a interrupção durou pouco. Bastou a quadra ser seca para o jogo reiniciar.
Dos quatro árbitros envolvidos na partida, apenas um argumentou que o confronto deveria ser paralisado. Na consulta aos coordenadores, foi orientado dar continuidade à disputa, com o argumento de que “isso é do jogo, era normal”.
Conforme Gabriela, as meninas, que estão habituadas a jogar contra meninos, passaram a chorar.
A criança tem que entrar na quadra para se divertir. Quem está no lado de fora tem que motivar e acolher. Não tem que humilhar e violentar. A intolerância tem que ficar fora do ginásio.
GABRIELA SALVADOR
Coordenadora da equipe do Pelotas
— Perguntei no intervalo se queriam sair da quadra. Já não importava o resultado. Elas me falaram que queriam jogar, era direito delas de jogar. Jogaram até o final e perderam por 2 a 1. Muitas já não quiseram jogar na semana seguinte. Estamos em um trabalho de conversar, com uma rede de apoio, como o Conselho Tutelar. Precisamos fazer um trabalho de conscientizar que jogo de criança não pode ter essa violência. A criança tem que entrar na quadra para se divertir. Quem está no lado de fora tem que motivar e acolher. Não tem que humilhar e violentar. A intolerância tem que ficar fora do ginásio — destacou Gabriela em contato com a reportagem de Zero Hora.
Impactos nas meninas
Além do choro durante a partida, a violência praticada durante a final do futsal também trouxe impactos para as adolescentes após o jogo. Segundo Clara Rodrigues, a filha, de 12 anos, passou de três a quatro dias chorando no quarto, sem querer ir para escola.
— Isso não é algo normal, não é frescura. Elas foram agredidas moralmente e emocionalmente. O que eu vi como mãe, jamais imaginei passar com a minha filha. Ela não se calou e foi forte, lutando por ela e pelas meninas da equipe. Ficou com o psicológico abalado, não queria voltar a jogar — recorda a mãe.
Elas foram agredidas moralmente e emocionalmente. O que eu vi como mãe, jamais imaginei passar com a minha filha
CLARA RODRIGUES
Mãe de uma das meninas
Gabriela e três meninas do time estiveram na Assembleia Legislativa, na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos. O assunto entrou em debate por solicitação da deputada Luciana Genro (PSOL), que é autora de lei aprovada pela Assembleia Legislativa, denominada Vini Jr, que trata dos casos de agressões machistas, misóginas e homofóbicas nos jogos esportivos de todas as modalidades.
A comissão irá acompanhar as diligências policiais e encaminhar ofício à equipe de arbitragem do jogo, através da empresa Brechane Arbitragem, promotora do evento, à Liga Zona Sul de Futsal, e à Guarda Municipal.
Na Assembleia, uma das meninas, de 12 anos, foi ouvida pela comissão.
"No domingo, dia 3/11, foi o dia que eu esperei ansiosamente por uns bons meses porque era um marco histórico na minha vida. Entrei em quadra tensa, mas feliz. Infelizmente, ao longo do jogo, não continuei assim. Quando vi a torcida adversária xingando minhas colegas de "vagabundinhas" e nos mandando ir lavar louça, jogando água em nós, confesso que foi um choque. As meninas ficaram abaladas assim como eu, pois pense em jogar com o medo de alguém fazer algo contra nós, é horrível. Foi um choque ver que existe pessoas ruins ao ponto de ameaçar meninas de 12,13 anos".
Foi um choque ver que existe pessoas ruins ao ponto de ameaçar meninas de 12,13 anos
MENINA QUE ESTAVA EM QUADRA
Trecho do depoimento em comissão da Assembleia
Em outro trecho, ela fala como se sentiu após a partida:
"Depois de toda aquela tensão do jogo, fui para casa e me isolei pelo resto do dia. Me peguei pensando se aquele era realmente meu lugar. Logo eu, que nasci, cresci dentro de quadra, sou apaixonada pelo esporte e dou minha vida dentro de quadra. Pensei se não era melhor desistir. Isso me abalou tanto que não consegui ir para a aula na segunda. Só de lembrar, meus olhos lacrimejavam. E eu desabava. Felizmente, consegui entender que o que eles mais queriam era isso, pois eles não conseguiam entender que mulher pode estar onde ela quiser. Mesmo assim, queremos justiça, pelas meninas que pensaram em desistir, pelas meninas que choraram vendo tudo aquilo, por todas mulheres que sofre machismo todos os dias, queremos justiça".
Queremos justiça, pelas meninas que pensaram em desistir, pelas meninas que choraram vendo tudo aquilo, por todas mulheres que sofre machismo todos os dias, queremos justiça.
MENINA QUE ESTAVA EM QUADRA
Trecho do depoimento em comissão da Assembleia
A reação da menina é esperada. Matheus Vasconcelos, psicólogo esportivo e vice-presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (ABRAPESP), explica que esse tipo violência pode gerar insegurança:
— Isso pode ocasionar o abandono esportivo precoce. O impacto pode ser a diminuição da autoestima, uma imagem mais negativa. A gente está falando de uma violência que é crime acima de tudo. Uma violência contra adolescentes e contra a sociedade de maneira geral.
Isso pode ocasionar o abandono esportivo precoce. O impacto pode ser a diminuição da autoestima, uma imagem mais negativa.
MATHEUS VASCONCELOS
Ppsicólogo esportivo
O pós, ainda que traumático, é fundamental para que a pessoa queira retornar ao esporte e se recupere do choque da violência psicológica. O desafio é dar todo o suporte depois desse evento traumático.
— Existe um tempo que precisa ser respeitado. Não sabemos a profundidade dessa dor. Até para elas é complicado entender o que passaram. Sempre falo para os pais, conversem como se estivessem contando histórias. Para algumas pessoas, vai virar mais coragem de seguir tentando, outras de querer estudar outras áreas e outras largarem. Não podemos deixar essas meninas desassistidas — completa o psicólogo.
Investigações
Posteriormente, a equipe Princesas do Sul registrou Boletim de Ocorrência na Polícia Civil de Pelotas, que abriu inquérito. Questionada pela reportagem, a polícia não detalhou sobre quantidade de envolvidos e se alguém já foi ouvido.