
Este texto faz parte da cobertura da Copa do Mundo. A seção 'A Copa da minha vida' é publicada diariamente no caderno digital sobre o Mundial do Catar.
Eu nasci no distante ano de 1987. Naquele tempo, o presidente do Brasil não havia sido escolhido pela população, nossa camisa verde e amarela tinha apenas três estrelas e para ouvir a voz de um amigo que morava longe você precisava se dirigir a uma caixa retangular que ficava pendurada em uma parede ou dentro de uma estrutura parecida com uma grande orelha.
E, preciso contar aos mais jovens, não era assim tão simples para se fazer uma ligação. Antes de chegar à voz desejada, era preciso adquirir umas moedas pequenas que chamávamos de fichas, e cada uma delas correspondia a minutos que você teria direito para papear com a pessoa do outro lado da linha. Quando a caixa engolia a ficha, começava a contar o tempo. Nascia ali a expressão "caiu a ficha".
A minha ficha cairia anos depois, mas no distante ano em que eu nasci não era uma cena comum ver meninas que gostassem de futebol. Menos ainda que fossem incentivadas a tal. Meus primeiros brinquedos foram bonecas, panelinhas, ursinhos de pelúcia (que, aliás, eu amava). Meu irmão, três anos mais novo, ganhou bola, luva de goleiro e um aniversário temático do nosso time do coração. Era o que a época oferecia.
Lembro de uma entrevista concedida à Folha de S.Paulo pela craque Cristiane. Ao narrar sua infância, ela contou sobre as bonecas que recebia de presente quando criança, mas o que gostava mesmo era jogar bola. Então, como resolver? Aviso que as cenas que descreverei a seguir são fortes. A pequena Cris retirava a cabeça das bonecas e chutava como se bolas fossem. O resto da história vocês já sabem.
A menina se tornou uma das maiores jogadoras do mundo. É, até hoje, a maior artilheira do futebol feminino na história dos Jogos Olímpicos, com 14 gols. Foi também ela quem bateu o recorde de Cristiano Ronaldo como atleta mais velho a marcar três gols em Copas do Mundo. O feito dele foi na Rússia, em 2018, com 33 anos. A braba marcaria três vezes no Mundial da França, partida contra a Jamaica, em 2019, com 34.
Eu não cheguei a decapitar bonecas como a Cristiane. O talento com a bola ficou mesmo com meu irmão. Minha paixão se fez por assistir, analisar e vibrar com o futebol. Quando meus pais começaram a me perguntar o que eu gostaria de ganhar de presente, eu disse. Pedi a camisa do Inter, a camisa do goleiro, o calção branco. Era das poucas meninas que ia para a escola fardada. E bem feliz.
Conto tudo isso para chegar ao propósito deste texto, que é falar, afinal, sobre a Copa da minha vida. A primeira de que guardo lembrança é a de 1994, quando o país vibrou junto com Bebeto e Romário. Mas a conquista do Penta, em 2022, foi inesquecível. Porque ali já era aficionada pelo esporte. Todo mundo lembra, claro, de Ronaldo (gênio), Rivaldo, Kaká e Ronaldinho. Mas eu lembro de Kleberson, herói improvável, e como foi decisivo naquela seleção do Scolari. Como jogou bola o Kleberson naquela Copa! É dele o passe — numa arrancada fantástica pela direita — para que Ronaldo marcasse o segundo gol da final, no lance do famoso corta-luz do Rivaldo. O futebol é mesmo fantástico! Brasil pentacampeão!
Ok, ok. "Mas e a Copa da tua vida?" questiona o editor aflito, após tantos caracteres. Por tudo que escrevi no começo desta história, a Copa da minha vida acaba de começar. É a Copa em que Renata Silveira se torna a primeira mulher a narrar uma partida (de Copa) na TV aberta. Em que Ana Thaís Matos comenta os jogos do Brasil na Globo. Em que Alice Bastos Neves entra ao vivo no Jornal do Almoço diretamente do Grand Hamad Staduim, com Neymar e companhia bem ali, atrás dela. Que orgulho! Há um longo caminho pela frente, eu sei. Mas estamos avançando. E é sob esta perspectiva otimista, que vivo a Copa da minha vida, gestando meu primeiro filho. Com a esperança de que esse mundo em que homens e mulheres ocupam os mesmos espaços se torne cada vez mais real.
Enquanto escrevo esse texto, aliás, Gabriel chuta minha barriga e eu o coloco para ouvir a voz do papai dele, falando sobre a Seleção, ao lado do titio José Alberto Andrade, na Rádio Gaúcha. Meu filho será apaixonado por futebol como a mãe? Vai respirar esporte e trabalhar com futebol como o pai? Quem sabe. Estamos felizes e confiantes. Que venha o hexa. Que venha o Gabriel. Que venha um mundo melhor.