Tudo no Catar gira em torno da tradição. Existe uma lei no país, por exemplo, que obriga todas as moradias a serem pintadas em tons amarelo ou bege, nada pode ser diferente — a menos que você tenha um arranha-céu no centro de Doha, prédios gigantescos que tratam de trazer vida a noite catari. A determinação das cores é para remeter à essência do pequeno emirado: o deserto. Essas casas, em sua maioria, são espaçosas. Possuem mais de três quartos, garagens para mais de três carros e exuberantes jardins. Tudo para comportar as grandes famílias.
Tradicionalmente, uma família catari tem, em média, três filhos. E todos, não deixam seu lar sem antes casar. É mais fácil encontrar um agulha no palheiro do que um local que more sozinho. Essa estatística pertence aos estrangeiros que têm residência no Catar.
— A família é parte importante da nossa existência — conta, rodeada por seus dois filhos, a encabulada catari de 32 anos que pediu para sua identidade não ser revelada. Vestida de preto dos pés a cabeça, apenas com os olhos de fora, a jovem é o retrato das mulheres no país: tímida, sempre acompanhado e utilizando os trajes típicos das cataris de nascimento.
Até o final de 2018, o "estoque residencial" do Catar era de 300,9 mil moradias. Ou seja, haverá, no total, mais de 500 mil casas sobrando quando Lusail — a nova cidade do Catar, planejada para a Copa do Mundo de 2022 — estiver finalizada. Os dados são do relatório publicado pela consultoria ValuStrat. Em comparação, o Brasil tem mais de 200 milhões de habitantes e um déficit habitacional de 6,1 milhões de casas, segundo pesquisa da Fundação João Pinheiro.
— Por enquanto, parece uma cidade fantasma. A gente vê que as construções estão prontas, mas não há ninguém morando. Eu fico pensando de onde eles vão tirar essa população — questiona o catari Abdullah Mohammed Al-Hajri, dono de uma das centenas de bancas que compõe o antigo Souq Waqif, "Mercado Público catari" e destino preferido dos turistas na capital do país.
O planejamento informal, ainda não apresentado oficialmente pelo governo, é de que convites serão feitos para migração de habitantes ao país a partir de 2020 — e principalmente, a Lusail. Além das 250 mil moradias, a cidade terá uma oferta de 170 mil empregos. Ocupá-los é um desafio que terá o governo.
— A Copa é só um pontapé inicial para criar infraestrutura. Eles (o governo) possuem dinheiro, mas não gastam sem pensar no futuro. Para Lusail, há um desejo de desenvolver uma economia baseada no conhecimento, longe da dependência dos recursos naturais do petróleo e do gás. A nova cidade será um ponto central para isso, como uma espécie de centro de pesquisa e desenvolvimento — declara o jornalista freelancer Abdul Addasi.
Projetada pela Qatari Diar, construtora da família real, Lusail apoia-se no tripé "mobilidade, sustentabilidade e tecnologia".
Em termos de transporte, a cidade oferecerá VLT (conectado ao metrô de Doha, também em construção), ônibus, ciclovias, táxi aquático e rotas para pedestres, além de estacionamentos subterrâneos para encorajar a população a trocar o carro pelo trem.
O primeiro trecho do VLT, que, segundo o projeto original, terá ao todo 33 quilômetros de extensão, foi inaugurado ainda em 2018, quatro anos antes da Copa e dois antes de toda a cidade ser finalizada.
Outro ponto que agrega na questão da mobilidade é o conceito de vizinhança, que reúne em cada distrito da cidade serviços básicos, como escolas, mesquitas e comércios. A ideia é reduzir a necessidade de deslocamento ao máximo e, com isso, diminuir a emissão de gases poluentes dos carros.
— Eles têm muito dinheiro, mas o mais surpreendente é a organização. Por mais que esbanjem, pensam em como cada situação pode ser útil para a população no final das contas. Se vai ajudar, eles não economizam mesmo — analisa o jogador brasileiro Wagner Santos, ex-Fluminense e que atualmente está no Al Khor, do Catar.
*A repórter viajou a convite da Federação de Futebol do Catar.