A polêmica ganhará contornos ainda mais explosivos neste domingo, quando ele entrar em campo contra o Vasco, no Estádio Mané Garrincha, com os dois recados que mandou imprimir nas chuteiras. No pé direito, "Fora Preconceito". No esquerdo, "Gentileza". Vai ser o assunto da rodada. Infelizmente. Parte da torcida do Corinthians reagiu com violência incompreensível ao post de seu atacante, durante a semana. Sheik, apelido recebido por Emerson graças ao longo tempo no futebol árabe, antes de tornar-se conhecido no Brasil, deu um selinho no sócio e amigo Isaac Azar.
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Sheik é heterossexual, mas não se valeu de sua opção como argumento de defesa contra a insanidade. Ponto para ele, pois aí ficaria parecendo recuo de alguém que fez algo errado. A foto nas redes sociais mostra os dois, ele e o sócio, com os narizes aproximados. Talvez se trate apenas de uma incompreensão cultural. Pode ser. Não sei. Em alguns países árabes, dois amigos tocarem os narizes têm o significado de um prosaico abraço ocidental. Mas isso não importa. O que importa é examinar dois aspectos que se tocam - um selinho - neste festival de exageros.
O primeiro é a reação intolerante ao gesto em si. O segundo é perceber o espanto das pessoas com a intolerância. Qual é a novidade do conservadorismo histórico do brasileiro, em todos os níveis?
Somos um país mestiço que ainda convive com episódios de racismo, explícitos ou não. As cotas nas universidades, por exemplo. Durante séculos, os negros sofreram com uma competição desigual com os brancos, já que a forma como a escravidão se deu no Brasil os jogou ao mundo sem ferramentas para disputar nada. A lógica das cotas é esta: enfim, uma pequena vantagem aos jovens estudantes negros, depois de mais de um século de desvantagem social e econômica. Mas querem acabar com as cotas. Um óbvio preconceito velado. Talvez até involuntário. Distorcendo, dá para dizer que é preconceito às avessas, que todos são igual, tirando tudo do contexto. Muitos inimigos das cotas devem, inclusive, estarem indignados com a reação ao selinho do Sheik.
Somos um povo muito conservador. Até nossa esquerda é muito conservadora. Quando o Muro de Berlim ruía, o socialismo real falido e avesso às liberdades individuais surgia como inspiração libertária no Brasil. Nossos candidatos, do começo ao fim do espectro ideológico, morrem de medo de falar em aborto durante a campanha eleitoral. Alguns não discutem sequer a questão de saúde pública, mesmo com mulheres, a maioria adolescentes, morrendo em partos clandestinos perpetrados por açougues humanos. Precisam dos votos de um eleitorado conservador, receptivo às orientações da Igreja Católica e de cultos evangélicos conservadores ao ponto de condenarem, agora vejam se tem cabimento, o uso da camisinha.
Uma boa medida de como o selinho do Sheik tem a ver com o nosso conservadorismo crônico é examinar os vizinhos. O Uruguai teve jornada de trabalho de oito horas antes dos EUA, voto feminino antes da França e divórcio 60 anos antes da Espanha. A avó do escritor Eduardo Galeano (ele tem 72 anos), divorciou-se quando o uruguaio ainda jogava bola nas ruas de Montevidéu. A Justiça, na democracia argentina, julgou e condenou à prisão agentes, oficiais e até presidentes da ditadura militar. Os chilenos tiraram Augusto Pinochet do poder no voto, em plebiscito. O Brasil, a muito custo, só agora ensaia um tímido debate através da Comissão da Verdade.
O presidente da comissão de Direitos Humanos do Congresso Nacional, Marco Feliciano, é homofóbico e racista. Está duplamente legitimado. Primeiro, pelo eleitor que votou nele. Depois, indiretamente, pelos eleitores dos deputados que praticaram o absurdo de torná-lo autoridade em Direitos Humanos do Congresso. Há mais exemplos da nossa demora em avançar, mas estes bastam. Tristemente natural, portanto, a reação dos corintianos ao gesto de Sheik. O futebol brasileiro é conservador por que o Brasil é conservador. Em tudo.