O professor Sergius Gonzaga comenta as leituras obrigatórias da UFRGS nesta seção. Hoje, a obra escolhida é O Centauro no Jardim, escrito em 1980 por Moacyr Scliar.
A importância da obra
Histórica: a narrativa enquadra-se numa das principais tendências da ficção brasileira das décadas de 1970 e 1980 que é a de focalizar a existência concreta de diversos grupos de imigrantes e de seus descendentes no processo de adaptação à realidade local. Na obra de Scliar, enfatiza-se a comunidade judaica, oscilante entre os valores da tradição, do pensamento utópico e da busca de adequação ao sistema socioeconômico.
Estética: O Centauro no Jardim constrói-se dentro das coordenadas do chamado realismo fantástico, um realismo marcado por situações absurdas e surreais, em que os personagens sentem-se perdidos em labirintos enigmáticos. Estes acontecimentos improváveis apresentam uma dimensão alegórica, um sentido figurado. O modelo de Scliar é a obra de Franz Kafka. Porém, lembre que há um traço peculiar na obra do escritor gaúcho: o seu fino senso de humor.
O que observar
Repare nos vários aspectos simbólicos que a figura do centauro adquire no romance:
Guedali, o protagonista, é um judeu, quer dizer, um integrante de um grupo étnico/cultural perseguido no transcurso da História e que, com frequência, desenvolve sentimentos de inadaptação e de estranhamento em relação à realidade. O Guedali-centauro traz a marca da diferença, ele é o outro, o eterno exilado, o solitário, o estrangeiro em qualquer parte.
Guedali-centauro é também o sujeito que, a princípio, não se subordina à existência corriqueira nem à ordem burguesa. Sua natureza fisicamente monstruosa é a metáfora de sua rebeldia, de sua insatisfação com a realidade como ela é. Portanto, perder a parte equina significa aderir aos valores capitalistas.
Ele igualmente representa o ser mitológico que libera, sem a censura da civilização, seus instintos mais primitivos e sensuais. Não esquecer que o centauro, na tradição mítica, simboliza a duplicidade da condição humana: um lado sublime e um lado bestial.
Dica do professor Sergius
Atente que o romance apresenta uma dupla possibilidade de leitura. Ou aceitamos a história narrada pelo próprio protagonista: sua origem, sua dimensão meio animal e meio humana, seus amores com Lolah (mulher-leoa), suas cirurgias no Marrocos, e seu lento retorno à forma humana - paralela a sua integração vitoriosa no mundo dos negócios. Ou concordamos com sua esposa, Tita, que, no último capítulo, contradiz toda a versão fantástica do marido, revelando que um tumor cerebral teria gerado nele essas esdrúxulas fantasias
Mas, o aparente triunfo dos princípios lógicos e verossímeis da realidade não garante a verdade da versão de Tita. Na última sequência do romance, para instaurar a dúvida no leitor, Guedali volta a afirmar sua condição de centauro, assumindo o desejo erótico por uma moça que conversa com Tita, "como um centauro no jardim, pronto a pular o muro, em busca da liberdade."