Em 1º de maio de 1943, Getúlio Vargas subiu à varanda da Esplanada do Castelo, a sede presidencial da então capital federal, o Rio de Janeiro, para discursar à nação brasileira. “Trabalhadores do Brasil: estamos em guerra!”, sentenciou, segundo o discurso transcrito pelo extinto jornal carioca Correio da Manhã (1901-1974). Ele se referia à mobilização brasileira para combater o Eixo nazifascista na 2ª Guerra Mundial, mas também exaltou a sua própria política trabalhista.
Na época, a data já marcava o Dia do Trabalhador no Brasil. Aos cerca de 100 mil trabalhadores reunidos na Esplanada e aos milhares de brasileiros que ouviam pelas ondas do rádio, Vargas disse pretender “unificar o país” e “estabelecer bases para a justiça social” por meio de sua legislação — afastando a luta de classes e sem desencadear conflitos ideológicos, segundo ele mesmo.
Vargas então anunciou a revisão final da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), decreto-lei instituído naquele mesmo dia e vigente desde então. São 80 anos da legislação trabalhista que se tornou sinônimo de trabalho formal.
— O projeto dele (Vargas) era corporativista, no sentido de que a sociedade seria um corpo coordenado e que o Estado é seu cérebro. Os trabalhadores são uma parte importante desse corpo social e devem ser integrados à sociedade, porém sob controle — explica a historiadora Clarice Speranza, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Speranza ressalta que o movimento operário foi muito ativo ao longo da Primeira República (1889-1930) e garantiu a instituição de direitos trabalhistas, como a indenização por acidente de trabalho — em 1919 — e férias sem desconto no salário, em 1925. Na época, a instituição desses direitos seguiu uma onda global, com o objetivo de acalmar os ânimos do movimento sindical, de forte influência comunista.
— Toda a legislação trabalhista europeia é uma reação ao que aconteceu na Rússia, onde a exploração era tão grande que levou à revolução (comunista, em 1917), e a Europa reage com uma legislação social-democrata. A versão reformista, de dar concessões para que o radicalismo não tome conta, prevaleceu diante da revolucionária nestes países — afirma o desembargador Francisco Rossal de Araújo, presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região Trabalhista (TRT-4) e professor de Direito do Trabalho da UFRGS.
Diferença entre CLT e Carta del Lavoro
Apesar de já existirem leis trabalhistas dispersas antes do Estado Novo, não era incomum patrões desrespeitarem essas normas – o que gerava atrito com sindicatos e empregados. A CLT de Vargas, por isso, visou uma “consolidação” literal dessa legislação, explica Speranza. Por muito tempo, a legislação chegou a ser tratada como uma cópia da Carta del Lavoro, regramento trabalhista italiano de 1927 promulgado pelo ditador Benito Mussolini. Essa interpretação, segundo a historiadora, é incorreta, porque a carta fascista envolve um arcabouço legal menor e mais flexível.
— Logo que inicia o governo Vargas nos anos 30, os sindicatos estão reivindicando o cumprimento das leis trabalhistas, dizendo que apoiaram sua ascensão e que querem que o governo cobre dos empresários a chance de se poder tirar férias, lei que já existia e não era cumprida, assim como outras. A intenção da CLT é consolidá-las e envolve esse projeto de incorporação controlada dos trabalhadores, sob uma ideia de harmonia de classes — diz Speranza.
Consciência simbólica de direitos
A historiadora também pontua que a CLT foi gestada dentro de uma simbologia de “expectativa de direitos” dos trabalhadores, que batalhavam por verem cumpridas as normas, que não eram seguidas por seus patrões.
— Tem um brasilianista (acadêmico estrangeiro que pesquisa o Brasil) que fala que surge uma consciência simbólica de direito: de que para você ser um trabalhador, você tem direitos. Ela é importante para a construção da identidade do trabalhador brasileiro, que até os anos 60, 70, tem a CLT como um tipo de bíblia. Meus direitos são esses e isso me faz um trabalhador, então o fato dela não ser cumprida gera uma expectativa e a transforma em um campo de luta — afirma.
Por isso, a legislação sobreviveu à primeira Era Vargas e foi atualizada nas décadas seguintes. O descanso semanal remunerado foi estabelecido em 1949; o 13º salário, em 1962; o FGTS, em 1966.
— A CLT de hoje não é a dos anos 40. Ela é depurada, interpretada e modificada. Qual o papel fundamental dela? Dizer que o trabalho não é uma simples mercadoria, mas deve ser visto que quem vende seu trabalho é um ser humano, muito mais que uma relação econômica, mas de dignidade, respeito e decência. A CLT é um parâmetro: aqui tá o mínimo, e abaixo disso não podemos ir — afirma Rossal de Araújo.
Reforma trabalhista de 2017
A maior alteração realizada na CLT foi a lei Nº 13.467, de 2017, conhecida como “reforma trabalhista”, durante o governo Michel Temer. A lei aprovou uma série de mudanças, como a criação do trabalho intermitente, que regularizou o trabalho esporádico, por exemplo, o de garçons e cozinheiros que trabalham em um restaurante apenas aos finais de semana. Além disso, a reforma também extinguiu o imposto sindical e tornou a contribuição opcional, o que enfraqueceu os sindicatos, que inclusive deixaram de poder homologar rescisões.
— A CLT surgiu em um Brasil pouco industrializado, mais rural, só com 20% da população no meio urbano, em que a hipossuficiência do trabalhador era mais presente. Em seu nascedouro, ela precisava ser extremamente protecionista porque não existia ainda uma tutela dos direitos dos trabalhadores, mas o mundo do trabalho mudou — diz o empresário Alexandre Furlan, presidente da Comissão de Relações de Trabalho da Confederação Nacional da Indústria (CNI), uma das entidades que apoiou a reforma.
O magistrado Francisco Rossal de Araújo ressalta que a nova legislação reduziu o inventário de ações trabalhistas.
— É uma reforma que vai em um sentido contrário, objetivamente retira direitos, mas traz coisas interessantes de regular o teletrabalho. Tem seus altos e baixos. Ela dá um golpe muito forte nos sindicatos ao tirar a obrigatoriedade da contribuição sindical e dificulta o acesso à Justiça trabalhista. Tivemos uma redução de 20% nos processos na Justiça do Trabalho — afirma Rossal de Araújo.
Na avaliação de Furlan, que discorda que a reforma tenha precarizado direitos, o mais importante dos ajustes da reforma foi a valorização dos acordos coletivos entre empregadores e empregados — o chamado “negociado sobre o legislado”. Com isso, pontos como férias, jornadas de trabalho e banco de horas foram flexibilizados. Agora, por exemplo, é possível que funcionários tenham suas férias divididas em até três períodos de 10 dias no lugar de 30 corridos.
— A CLT, em um determinado momento, ficou como de tamanho único para tratar igualmente os desiguais. Em um Brasil gigante, heterogêneo, não dá para comparar o metalúrgico do ABC paulista com o da Paraíba, ou o comerciário da Vieira Souto (avenida carioca) com o do Amapá. Isso levou à reforma trabalhista, que chamo de modernização das leis do trabalho, para uma adequação da CLT ao mundo do trabalho, e não o contrário. Não se trata de supressão de direito. A reforma flexibilizou formas de concessão dos direitos do trabalhador — explica Furlan.