Ana Carolina Christofari (*)
Nos dias 23 e 24 de agosto, ocorreu uma audiência pública no Supremo Tribunal Federal convocada para discutir o Decreto 10502/2020, que está suspenso. Falaram representantes de organizações da sociedade civil, representantes dos ministérios, deputados, professores, psicólogos, advogados... Percebeu-se que o termo inclusão tem sido usado de inúmeras maneiras. Tanto para defender a escolarização de todas as pessoas na escola de ensino comum, laica, de qualidade, como defender a escolarização de pessoas com deficiência em espaços segregados, em escolas ou classes especiais. Então, entendo que precisamos falar de inclusão.
Como professora de Educação Básica durante quase 10 anos (na rede municipal de Porto Alegre) e atualmente no Ensino Superior, venho estudando e pesquisando desde 2001 a escolarização de pessoas com deficiência no Brasil. Historicamente, elas foram exterminadas, menosprezadas, invisibilizadas e ficaram à margem do processo de escolarização. O marco da educação especial no Brasil data da metade do século 19 com a criação do Instituto dos Meninos Cegos, em 1854, e do Instituto dos Surdos-Mudos, em 1857. Essas instituições eram inspiradas na experiência europeia com um viés terapêutico em uma perspectiva médico-biologista. A deficiência era o foco da intervenção cujo objetivo era moldar os indivíduos para que pudessem, de alguma forma, serem produtivos. As práticas baseadas em uma perspectiva médica não tinham nenhuma relação com o objetivo de construir caminhos pedagógicos de ensino e aprendizagem dos conhecimentos históricos e científicos produzidos pela humanidade. As pessoas com deficiência eram vistas como uma espécie de fardo social.
Nos anos 1980, assistimos ao início da resistência à visão assistencialista que considera as limitações das pessoas com deficiência como sendo efeito da própria deficiência e a causa das barreiras para sua participação social. A partir dos anos 1990, enfatiza-se a luta para que todas as pessoas tenham o direito a construírem os conhecimentos acadêmicos na escola comum, com os suportes necessários àqueles que precisam de um apoio específico, ou seja, com a necessidade de investimentos públicos para que a qualidade do ensino e da aprendizagem possa se efetivar.
Por que a deficiência incomoda tanto? Por que ela atrapalha a escola? Porque coloca em xeque todos os problemas históricos de falta de investimento público, de organização curricular que não acolhe a diversidade humana e, sobretudo, de um projeto de sociedade que visa à formação humana de sujeitos dóceis e úteis.
A perspectiva da educação inclusiva se afasta do viés médico-clínico que enfatiza a deficiência como limitadora e definidora de modos de viver. Assim, o processo de inclusão escolar tem como fundamento a defesa de que todos aprendem, de que a aprendizagem escolar deve ocorrer em uma escola comum onde todos estudantes se reconheçam como indivíduos ativos e participativos do processo de ensino e de aprendizagem. A deficiência deixa de ser o foco e as potencialidades passam a ser consideradas elementos fundamentais na construção de estratégias pedagógicas que sejam acessíveis a todos.
Não há inclusão em espaços segregados, em escolas específicas para cada tipo de deficiência. Teríamos que construir um tipo de escola para cada tipo de pessoa? Isso é discriminatório. Não podemos hierarquizar modos de ser e estar no mundo definindo quem pode ou não estar na escola de ensino comum, não podemos discriminar definindo quem se beneficia ou não da escola comum, pois TODOS SE BENEFICIAM ao conviver com seus pares e com a multiplicidade de modos de ser e estar no mundo.
É na escola comum que resistimos à discriminação, ao preconceito, ao capacitismo. Desqualificar a escola pública de ensino comum para fortalecer a defesa de escolas especiais é compactuar com o desmanche da educação. É impedir o exercício da cidadania, da participação social, do empoderamento de todas as pessoas sem discriminação de raça, religião, gênero, deficiência. Defender a escola especial é desconsiderar o nosso contexto histórico que homogeneíza, rotula, segrega, estigmatiza, tomando certos atributos como justificativa para excluir todos que estão fora dos padrões estabelecidos. A escola comum tem, sim, grandes desafios, mas, considerando que temos um congelamento de gastos na educação por 20 anos, seria no mínimo ingênuo considerar que as escolas não têm condições de receber todos porque os professores não tem formação, porque não têm estrutura física adequada, porque não estão preparadas para trabalhar com pessoas com deficiência e, por isso, essas pessoas devem sair da escola comum e irem para um espaço excludente onde supostamente teriam mais qualidade de ensino.
Por que a deficiência incomoda tanto? Por que ela atrapalha a escola? Porque coloca em xeque todos os problemas históricos de falta de investimento público, de organização curricular que não acolhe a diversidade humana e, sobretudo, de um projeto de sociedade que visa à formação humana de sujeitos dóceis e úteis. Defender escola e classe especial é colocar vendas para não aprofundarmos o debate sobre o descaso que temos com a Educação em nosso país.
Fui professora de muitas crianças e jovens com deficiência tanto na escola pública de educação básica como no Ensino Superior. Tive essa oportunidade como professora, nunca como estudante. Não tive colegas nem amigos com deficiência. Espero poder encontrar pessoas com deficiência nos mais diferentes segmentos da sociedade, nas diferentes profissões e atuações, empoderadas, legitimadas, exercitando seus direitos e deveres como cidadãs. E elas mesmas tendo condições de decidirem os caminhos de suas vidas, defenderem e lutarem por aquilo que desejam.
(*) Doutora em Educação e professora do CED/UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) na área de Educação Especial