Vitória, Brígida, Cássio, Iracema, Natacha, Daniele e Francine são exemplos de superação. Jovens que conviveram com violência, uso de drogas e álcool, abusos sexuais e maus-tratos dentro das próprias casas, eles foram destituídos de suas famílias e enviados a abrigos, onde cresceram. Mas, contrariando as expectativas diante desse cenário desanimador, os sete deram a volta por cima e hoje frequentam salas de universidades.
Aliada à força de vontade desses jovens, uma parceria entre Ministério Público Estadual (MP) e Ministério Público do Trabalho (MPT) abriu caminho para o ingresso no Ensino Superior em duas universidades: Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP), em Porto Alegre, e Ulbra, em Canoas. A primeira firmou uma parceria com o MP, ofertando uma bolsa integral de estudos. No caso da segunda, isso foi possível por meio de um termo de cooperação interinstitucional, firmado em setembro de 2017, que permite ao MPT destinar bens e valores obtidos em ações judiciais a entidades indicadas pelo MP, a quem compete fiscalizar a aplicação dos repasses.
– Fomentar cursos de graduação é um modo de habilitar esses jovens em acolhimento para que possam ter uma formação profissional de sua escolha – explica a procuradora do trabalho no Rio Grande do Sul Patrícia de Mello Sanfelice, que firmou o acordo interinstitucional.
Defasagem escolar limita seleção de candidatos
À exceção de Vitória, que ingressou na única vaga disponível na FMP, todos os demais são alunos da Ulbra e estão cursando o primeiro semestre. A universidade da Região Metropolitana disponibilizou verba de R$ 2 milhões para o projeto,
referente a uma multa trabalhista que o MPT acordou reverter em bolsas de graduação integrais para acolhidos. Ainda resta em aberto cerca de R$ 1,5 milhão, mas a dificuldade de preenchimento de vagas com este recurso reside na defasagem escolar dos jovens residentes em abrigos.
Promotora da Infância e da Juventude de Porto Alegre, Cinara Vianna Dutra Braga foi a responsável pela assinatura do convênio com o MPT. Segundo ela, cerca de mil crianças e adolescentes estão em situação de acolhimento institucional na Capital. Desse total, cerca de 400 têm entre 14 e 18 anos – o que os tornaria aptos a concorrer a uma bolsa. Mas os critérios de elegibilidade incluem, ainda, ter feito o Enem e obtido pelo menos 450 pontos no exame. E é aí que a defasagem se apresenta como um entrave que acarretou em uma seleção bem inferior ao número de alunos desejado.
– Buscamos estudantes onde a Ulbra tem sede: Canoas, Gravataí, Guaíba e Porto Alegre. Infelizmente, só conseguimos selecionar sete – lamenta Cinara, que defende este tipo de acordo como modo de oportunizar a jovens com menos condições pleitear uma vaga na universidade: – Via de regra, o que se vê é que eles não estão preparados para competir com os demais alunos que possuem estrutura familiar. Então, não conseguem passar nas vagas de universidades públicas e também não têm condições financeiras de pagar a faculdade privada.
São jovens que foram abandonados por seus familiares ou vítimas de violência e ficaram um longo período em acolhimento institucional. Quando completam 18 anos, têm que sair. Se a sociedade não abrir as portas, o crime vai abrir.
CINARA VIANNA DUTRA BRAGA
Promotora da Infância e da Juventude de Porto Alegre
Ela ainda destaca o protagonismo da educação no futuro desses alunos:
– São jovens que foram abandonados por seus familiares ou vítimas de violência e ficaram um longo período em acolhimento institucional. Quando completam 18 anos, têm que sair. Se a sociedade não abrir as portas, o crime vai abrir.
– Nós temos um grande número de crianças no acolhimento, órfãos e sem possibilidades. Nós temos que trabalhar para dar oportunidade a elas. E a articulação com a sociedade civil, com as faculdades, é uma dessas possibilidades – reforça o procurador-geral de Justiça, Fabiano Dallazen.
"Saíamos, pedíamos comida e tudo isso que uma criança sem mãe faz"
Brígida Maria Rui Basciki, 18 anos, foi uma criança que cresceu com responsabilidades de adulto, em razão da ausência da mãe, que bebia, usava drogas e passava longos períodos fora de casa:
– Ela saía, muitas vezes de manhã, e voltava no outro dia. Passava muito tempo bebendo e se drogando. Quando voltava pra casa, se atirava na cama e ficava. Eu tinha cinco anos e, com meu irmão mais velho, cuidava dos mais novos. Saíamos, pedíamos comida e todo esse negócio que uma criança que não tem uma mãe presente faz.
Por essas razões, ela e os irmãos foram enviados a um abrigo, onde, então, puderam ser crianças como outras quaisquer. As dificuldades enfrentadas por Brígida despertaram nela o desejo de construir uma carreira por meio da qual ela possa fazer diferença na vida de quem vive o mesmo drama.
Hoje, ela vive com a família que a adotou e cursa Psicologia na Ulbra:
– Quero poder fazer alguma coisa em relação a crianças e adolescentes que passaram por situações parecidas com a minha.
"Agora, estou correndo atrás da minha vida"
Natacha Regina Costa, 18 anos, foi para um abrigo depois que o padrasto, por quem foi criada, morreu, e sua mãe foi destituída perante a lei. Nunca chegou a ser adotada e, neste ano, ao completar a maioridade, teve de deixar a casa lar onde cresceu.
– Eu fiquei pipocando de abrigo em abrigo até fazer 18 anos. Agora, estou correndo atrás da minha vida – conta a jovem, que mora com amigos e está matriculada em Direito da Ulbra.
– Sempre quis fazer Direito. Sempre foi meu grande sonho – diz ela.
"Meu propósito é me tornar uma grande juíza"
Vitória da Silva Guimarães, 18 anos, foi parar em um abrigo de Porto Alegre aos 12, com os irmãos. A violência era rotina onde vivia. O pai já tinha morrido quando a mãe foi assassinada, dia do qual ela recorda com muita dor:
– Minha mãe tinha saído de madrugada. Eu queria ir junto, mas ela não deixou e disse: “Fica esperando a mãe chegar que a gente dorme juntas”. Esperei por um tempo, mas não aguentei e acabei dormindo. Quando acordei, minha tia estava chorando, e minha mãe, no chão, baleada. Minha tia achou melhor eu ir para o abrigo porque o cara que matou a minha mãe morava no mesmo lugar que a gente.
O passado foi e ainda é o combustível para Vitória tocar a vida em frente. Atualmente, mora na casa de uma tia e cursa Direito na FMP. Fazer justiça é o que ela deseja com a formação que almeja concluir:
– Vou lutar pelos direitos da sociedade. Meu propósito é me tornar uma grande juíza – diz, esperançosa, a estudante.
"Passamos muitas dificuldades, até fome"
Francine da Silva Fonseca, 20 anos, foi para o abrigo aos sete anos, com os três irmãos, e lembra dos dias difíceis antes do acolhimento.
– Nossa mãe era drogada e nos abandonou. O nosso pai estava preso. Passamos muitas dificuldades, até fome – conta.
Francine está matriculada no curso de Enfermagem da Ulbra. Decidiu pelo curso após passar um período de convívio com enfermeiros em um hospital onde o irmão estava internado, em razão de um acidente:
– Passei a ter admiração por essa profissão.
"Nós que saímos de abrigo servimos de espelho"
Foi aos nove anos que Cássio Steinbach, hoje com 18, entrou para um abrigo. Ele vivia em um local dominado pela criminalidade, passou a infância vendo “a gurizada” fazer escolhas equivocadas e admite que também foi tentado a ir pelo mesmo caminho, mas não cedeu:
– Quando a gente chega numa certa idade, sabe o que é certo e errado.
Funcionários de uma creche do bairro onde morava acionaram o conselho tutelar porque os pais do menino – que são usuários de drogas – não tinham condições de criá-lo. Assim, Cássio foi enviado ao abrigo onde cresceu.
Hoje, ele mora em uma casa em frente à instituição que o acolheu e promete retribuir os cuidados que recebeu no local depois que se formar em Administração na Ulbra.
– Espero poder, um dia, ajudar eles também, da mesma maneira como eles me ajudaram. Porque foi uma oportunidade. Nós que saímos do abrigo estamos servindo de espelho para a grande maioria das crianças e adolescentes que ainda vivem no abrigo.
“Eu achava que não ia ser nada, pois olhava para trás e via tudo destruído”
Danielle Silva de Souza, 19 anos, foi acolhida aos sete, junto a seis irmãos, depois de um processo que apurou negligência e abandono por parte da família após a morte do pai, alcoólatra e usuário de drogas, que foi assassinado.
– Quando meu pai morreu, minha mãe estava grávida. Depois do parto, a criança ficou alguns dias internada no hospital, e minha mãe foi curtir a vida dela. Nós ficamos durante três dias trancados em casa, sem comida, sem nada. Eu era a mais velha, tinha cinco anos e tentava fazer o possível, mas não sabia fazer nada.
A avó, que vivia na casa ao lado e tinha problemas de saúde, percebeu que as crianças estavam sozinhas e chamou o conselho tutelar. Agora, Danielle, que mora com uma amiga, diz que está tentando reescrever a sua história:
– De fato, eu achava que eu não ia ser nada, pois olhava para trás e via tudo destruído. Falei pra mim que eu não queria isso, que eu queria viver uma vida diferente. Que eu não queria a mesma vida que eu vivi na minha infância sofrida.
Sobre a maior vitória já conquistada, ela é taxativa: estar viva. Mas celebra ainda ter concluído o Ensino Médio e, agora, conseguir entrar na universidade:
– Tentei três vezes, estudei muito para entrar na UFRGS, mas não consegui. Muitas pessoas me motivaram a seguir, e eu não desisti.
No ano passado, fiz o Enem pela última vez, e aí me falaram, na ONG, que tinham conseguido uma bolsa pra mim. Fiquei muito feliz. Estou fazendo faculdade e não acredito até hoje que consegui.
A escolha pelo curso de Direito foi também para buscar respostas a perguntas do passado:
– Para mim, sempre foi muito difícil entender o que é justo, referente a minha vida. Porque eu me sentia muito injustiçada. Escolhi Direito para entender até onde posso ir. Eu posso entender o que, de fato, é a Justiça. Uma vez, ouvi a frase: “Quanto maior o nosso sacrifício, melhor o nosso resultado”.
"Quero ajudar outras crianças"
Iracema Maria Araújo Goulart tinha sete anos quando os pais se separaram. Ela e duas das suas três irmãs foram morar com a mãe, enquanto a terceira ficou com o pai. Iracema conviveu com um padrasto violento e abusador, que agredia não apenas a mãe, mas também ela e suas irmãs.
– Eu tinha receio de que ele fosse capaz de fazer qualquer coisa, até de matar todas nós. Fui contar isso somente quando eu fui para o abrigo, porque eu tinha medo dele – revela Iracema.
Para piorar, as condições de moradia da família eram as piores possíveis:
– Passamos até fome. Quando a gente tinha água, não tinha luz. Quando a gente tinha luz, não tinha água. Chegamos a dormir em caminhão. A gente pedia nas padarias, pedia nas casas.
Hoje, Iracema está com 18 anos e mora com o namorado. O sofrimento da infância e da adolescência a fez sonhar alto. E um de seus sonhos foi realizado com o ingresso na universidade para cursar Psicologia. A escolha tem relação direta com o seu passado difícil:
– Quero ajudar outras crianças, mas também outras pessoas da minha família, por exemplo, que eu sei que estão em uma situação bem complicada.
Estudantes recebem acompanhamento psicológico
Além da inclusão no Ensino Superior, por meio de outro convênio, este firmado com a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), o Ministério Público oferece atendimento psicológico a estes estudantes. Doutora em psicologia clínica, professora e pesquisadora na Unisinos, Vera Regina Ramires justifica a necessidade deste acompanhamento:
– Esses jovens enfrentaram situações adversas, e o seu desenvolvimento psicológico, social e cognitivo muitas vezes fica vulnerável. Dificuldades emocionais e de aprendizagem se refletem no desempenho escolar e, mais tarde, no desempenho acadêmico.
Cinara faz coro:
– São vítimas de abandono, de maus-tratos e de violência física, psíquica e sexual. Todos eles demandam acompanhamento psicológico para que tenham a possibilidade de aproveitar as oportunidades que vão surgir a partir desta entrada na universidade.
SAIBA MAIS
-Outras instituições podem ser parceiras do MP e procurar a promotoria da infância para firmar convênios.
-Os alunos egressos do acolhimento que neste ano estiverem completando o Ensino Médio podem se inscrever para ganhar as bolsas. As casas de acolhimento sabem quem são eles e têm contato direto com a promotoria para indicações.
-São critérios para que as bolsas sejam concedidas: que o jovem seja egresso de acolhimento institucional, que ainda esteja acolhido ou tenha passado no mínimo um ano em abrigos, que tenha no máximo 24 anos e que tenha obtido no mínimo 450 pontos na prova do Enem.
-Os alunos contemplados assinam um termo de ciência e responsabilidade para ter conhecimento sobre as regras de manutenção das bolsas. Entre elas, estão aproveitamento semestral de 75% e tempo suplementar de 30% para a conclusão do curso.
Ouça a reportagem na íntegra