Milhões de famílias brasileiras se sacrificam para matricular os filhos em uma escola particular, acreditando que, assim, eles terão acesso a ensino de maior qualidade, a ambientes melhor estruturados e a professores mais qualificados e mais bem-remunerados. Um estudo recém divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), do Ministério da Educação, colocou pelo menos uma dessas presunções em dúvida.
Conforme o trabalho, que faz um levantamento inédito sobre a remuneração do magistério brasileiro, os docentes da rede privada seriam os mais mal pagos, com médias salariais inferiores às praticadas nas redes municipais, estaduais e federal. Para uma jornada semanal de 40 horas, um professor de colégio particular recebe por mês, em média, R$ 2.599,33. Na rede pública, a média sobe para R$ 3.335,06. Os números referem-se a 2014.
Leia mais:
Com professores mais bem pagos entre as capitais, Porto Alegre tem ensino mal avaliado em provas
93% dos alunos de 1º ano do Ensino Médio de escolas públicas estão abaixo do nível adequado em matemática
Conforme os dados do Inep, que cruzou informações da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e do Censo Escolar, o fenômeno repete-se no Rio Grande do Sul. A remuneração projetada para 40 horas na rede privada seria, de acordo com o estudo, de R$ 2.899,69. Ficaria abaixo da média das escolas públicas (R$ 3.597,54) e seria inferior até mesmo à das escolas estaduais (R$ 3.098,24), habitualmente consideradas referência em termos de salários baixos.
O fato de os professores de escolas particulares ganharem menos não surpreendeu especialistas acostumados com a realidade da educação brasileira. O sociólogo Simon Schwartzman, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), observa que há uma desigualdade enorme entre os estabelecimentos particulares, com alguns pagando muito mal seus professores. O ex-presidente do Inep Francisco Soares reforça essa percepção:
– A gente costuma associar a escola privada com as escolas de elite, mas é preciso entender que a escola privada é extremamente variada. Tem a escola privada de bairro, que deve estar cobrando mensalidade de R$ 600 ou R$ 700, o que é muito menos do que a prefeitura de Porto Alegre gasta com seu aluno – afirma.
Quem também não se mostrou surpreso foi Cássio Bessa, diretor do Sindicato dos Professores das Escolas Particulares (Sinpro/RS). Ele afirma que, a partir da Lei do Piso, que estabeleceu um patamar mínimo de remuneração para o magistério, os ganhos na rede pública deram um salto, principalmente em escolas municipais. Os profissionais da escola particular teriam ficado para trás.
– A sociedade desconhece essa realidade. No senso comum, acha-se que o professor da escola particular ganha bem, até porque as escolas são muito bem equipadas, atendem à classe média e alta. Algumas escolas de ponta até remuneram melhor, mas a média da categoria é aquilo que o levantamento do Inep mostra. São dados da Rais, que é o próprio empregador quem alimenta – afirma Bessa.
De acordo com números do Sinpro, 40% das escolas particulares gaúchas pagam o piso, que corresponde a R$ 15,68 por hora aula até o 5º ano do Ensino Fundamental (EF), passa para R$ 16,82 nos anos finais do EF e sobe para R$ 22,40 no Médio. Além do salário, Bessa diz que os professores de escolas particulares amargam desvantagens como falta de estabilidade, aposentadoria por fator previdenciário e necessidade de preparar aulas e fazer correções em horas que não são pagas.
– São muitas desvantagens em relação ao colega da rede pública. E estamos muito acostumados a ver colegas nossos, dos melhores colégios, pedirem demissão porque passaram em algum concurso municipal – considera.
Se o salários são baixos e os professores que têm condições de fazê-lo migram para redes públicas que pagam mais, por que, então, as escolas particulares costumam alcançar resultados superiores nas avaliações do ensino? Uma parte da resposta pode ter a ver com qualidade (não necessariamente dos professores):
– O professor da escola privada é o mesmo da escola pública, mas em um ambiente que funciona melhor. A escola particular tem melhor resultado por causa da regularidade, porque a aula acontece todo dia, o professor não falha e, nos casos extremos de pouco compromisso, pode ser excluído – afirma Francisco Soares.
Além disso, a escola particular goza de uma grande vantagem, que é poder selecionar alunos melhores e receber estudantes de nível socioeconômico mais elevado, o que, por si só, já garante um bom resultado educacional, como mostram estudos sobre o chamado efeito-família (veja mais abaixo). Os pais que pagam por qualidade de ensino estão, com frequência, oferecendo ao estabelecimento algo valioso: qualidade de aluno.
Para Sinepe, dados do instituto não correspondem à realidade
O Sindicato do Ensino Privado do Estado (Sinepe/RS), entidade que representa as escolas particulares gaúchas, afirma que os dados do estudo divulgado pelo Inep não são confiáveis e não correspondem à realidade. Um dos questionamentos diz respeito à carga horária de trabalho utilizada pelo instituto para projetar as médias de remuneração.
– A gente sabe que o professor da rede pública tem contrato de 40 horas. Mas, na rede privada, os professores são contratados por hora-aula. O Inep disse que, pelo CPF do professor, localizou o salário na Rais. Só que eles não sabem o número de horas que esse professor trabalha. Na Rais só tem salário. Quero saber como calcularam o número de horas. É uma questão metodológica muito importante – diz Bruno Eizerik, presidente do Sinepe/RS.
Outro ponto questionado por Eizerik tem a ver com o fato de o Inep, no cálculo das médias gerais de remuneração, ter incluído também professores sem formação superior. O presidente do sindicato observa que, por lei, não seria possível empregar docentes não graduados e ressalta que eles inexistem nos colégios particulares do Rio Grande do Sul.
– Esses professores sem graduação nem poderiam estar aí, porque não podemos tê-los nas escolas. O Inep deve estar pegando creches, escolas infantis, alguma coisa que distorce o resultado final. Na escola privada que tem Educação Infantil, o professor precisa ter graduação. Se não tiver, não é professor.
Com esse argumento, Eizerik toma como referência, no estudo do Inep, apenas o dado referente a professores com formação superior. Levando em conta esse critério, a remuneração por 40 horas na escola particular (R$ 3.877,80) ultrapassa a da rede pública em geral (R$ 3.729,54) e a da rede estadual em particular (R$ 3.152,32).
– Mesmo que os dados não sejam confiáveis, quando a gente leva em conta os professores graduados, a rede privada gaúcha paga mais do que a rede pública. E, além de receber mais, o professor da escola privada tem uma série de benefícios que os professores da escola pública não têm: plano de saúde, desconto em pós-graduação, desconto para filhos – explica Eizerik.
Zero Hora questionou o Inep sobre os pontos levantados pelo Sinepe. Com relação à carga horária dos docentes, o instituto afirma que os dados são provenientes da própria Rais, acrescentando que "conforme o manual da Rais, divulgado pelo Ministério do Trabalho, na página 29, item B.5, (...) o empregador deve informar a carga-horária semanal do contrato de trabalho com o empregado". No que diz respeito à formação dos professores, o Inep informou que seu estudo inclui profissionais de todas as etapas da Educação Básica, incluindo a Educação Infantil. "Com relação à informação da formação dos professores, os dados são do Censo da Educação Básica, informado pelos próprios declarantes. Nos caso das escolas particulares, o diretor é responsável pela informação prestada ao Inep", observa o instituto.
Efeito família x efeito escola*
– A escolaridade dos pais, que é um indicador de nível socioeconômico, ajuda a prever o desempenho escolar do estudante, mostrou levantamento do pesquisador Simon Schwartzman.
– A escola também faz diferença: um aluno de escola estadual cujo pai tem pós-graduação terá desempenho melhor do que um colega com pai que não estudou, mas estará no mesmo patamar de um aluno de colégio privado cujo pai só foi até a 4ª série.
– Uma criança de nível socioeconômico baixo, que em geral tem um pai com baixa escolaridade, já partirá em desvantagem. Além disso, tenderá a estudar em uma escola estadual, de menos recursos, o que ampliará ainda mais a sua distância em relação ao aluno de nível socioeconômico elevado e escola privada.
*O levantamento do pesquisador Simon Schwartzman teve como base os resultados do Enem 2013, revelando que o desempenho dos estudantes está diretamente relacionado com a escolaridade dos pais, mas a qualidade da escola também conta pontos.