Uma das principais especialistas em educação de jovens e adultos do país, Maria Clara Di Pierro defende que a superação do analfabetismo passa pelo combate à desigualdade social.
A professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) também critica as políticas de alfabetização, que, segundo ela, são sempre "emergenciais" e "improvisadas". Coautora do livro O Preconceito Contra o Analfabeto (Cortez Editora, 2007), ela lamenta e condena a discriminação contra pessoas que não sabem ler e escrever.
Por que é importante investir na alfabetização de jovens e adultos?
É um direito básico de cidadania. Vivemos em sociedade que é letrada, grafocêntrica, e o domínio dessa tecnologia é um fator de poder, uma condicionante de participação cultural, econômica e política. Ainda temos um grande contingente de pessoas que tiveram esse direito violado. Não partilho das visões que consideram o analfabeto uma pessoas despreparada para a vida cultural, política e econômica. De qualquer maneira, é um fator de desigualdade social importante.
A senhora costuma afirmar que não há uma cultura do direito à educação. Por quê?
A gente não construiu ainda uma cultura de direito à educação ao longo da vida. Nos últimos 30 anos, construímos a cultura do direito à educação na infância e a ideia da obrigatoriedade. Até os anos 1980, havia uma naturalização da criança fora da escola. Hoje, há uma intolerância social em relação a isso, porque se difundiu essa noção de direito. E mesmo adultos e famílias com baixa escolaridade demandam escola para as crianças. No entanto, a cultura da educação na idade adulta ainda está por ser construída. As pessoas cujo direito foi violado não se veem dessa forma. Elas sempre se autoatribuem essa condição de exclusão, se autoimputam essa responsabilidade e não cobram do poder público.
Por que é difícil mobilizar adultos para estudar?
Há várias abordagens. Na linha da economia da educação, sempre se pensa na educação como investimento. Então, à medida que você investe na infância, a expectativa de um retorno econômico é maior. À medida que você tem a idade adulta ou a velhice, supostamente essa equação econômica vai ficando menos vantajosa. Isso quando você pensa de uma maneira estritamente econômica. Há questões também motivacionais e que estão associadas a fatores de ordem cultural. Na vida adulta, a escola está sempre disputando espaço com outras esferas que são urgentes: as responsabilidades familiares e do trabalho, a obtenção da renda e outras dimensões das práticas sociais, que vão da religiosidade à participação política e fruição do lazer. E tem a questão de que na idade adulta você não pode imputar obrigatoriedade. A frequência-escola é uma escolha do sujeito. Portanto, está muito pendente de que essa escola seja adequada e aceitável pelo sujeito. Também há estudos sociológicos que mencionam um fenômeno de postergação para a geração futura de expectativas educacionais não realizadas.
A taxa de analfabetismo vem caindo nos últimos anos, mas o Brasil não consegue cumprir metas internacionais e é o oitavo país em número de analfabetos. O que explica esse atraso?
Há fatores históricos e que se combinam com razões de ordem demográfica. Esse "estoque" de analfabetos absolutos, de 13 milhões de pessoas, está muito concentrado na população idosa. Esse contingente precisaria de uma abordagem bastante específica. Você teria que associar a outras políticas ligadas ao envelhecimento, tanto econômicas, como de lazer e cultura. Você não pode fazer uma oferta de escola que reproduz a escola da criança para uma população que tem outras necessidades e possibilidades. Há um problema de inadequação. Os modelos dos programas de educação de adultos que temos hoje são muito escolarizados, parametrados pelo modelo escolar de criança e adolescente, e não atendem às características e necessidades dos mais idosos. Por outro lado, aumentou a longevidade.
Quais as consequências para o país?
São muitas. Sempre penso nessas pessoas como aquelas que tiveram um direito violado e que qualquer aspiração republicana e de participação econômica, social, cultural e política é afetada. Não acho que o analfabeto não seja capaz de exercer essa cidadania, mas, numa sociedade grafocêntrica, ele vai ser sempre discriminado, e o acesso dele à informação e aos bens culturais vai ser sempre limitado e inclusive o acesso ao trabalho e à vida burocrática. Acho que é um enorme prejuízo, tanto do ponto de vista político e cultural como do ponto de vista econômico. Obviamente, as possibilidades que essas pessoas têm de desenvolver seu potencial são restritas em termos de trabalho, principalmente em momentos de desemprego.
A senhora é coautora do livro O Preconceito Contra o Analfabeto. Como essa discriminação se manifesta no dia a dia das pessoas?
São vistos como uma mancha social. A pessoa é percebida como alguém inadequado, que não responde às exigências sociais, que não tem as habilidades mínimas para desempenhar o jogo social. E os analfabetos também se percebem assim. Nesse livro, há pessoas que dizem coisas como: "Parece que está escrito na testa". Essa discriminação está frequentemente associada a outras formas de preconceito, como étnico-racial. É um complexo de fatores que se superpõem. Uma das coisas que aparecem com muita frequência nos depoimentos é essa falta de autonomia para circulação no meio urbano, para se comunicar, e as dificuldades para responder aos desafios da vida democrática, como tirar um documento. Ele sempre tem essa sensação de inadequação, porque tudo é mediado pela língua escrita. O sujeito vive essa experiência com muito sofrimento, mas, em geral, ele se autoimputa, dizendo que não aproveitou as oportunidades. Ele não tem uma visão crítica, pois personaliza e não tem a dimensão social do problema.
É possível erradicar o analfabetismo no país?
Acho a expressão erradicação inadequada, porque ela está muito associada a uma enfermidade, como se fosse um vírus que a gente pudesse criar uma vacina e imunizar todo mundo. O que acontece é que o analfabetismo é só um sintoma de processos de exclusão mais amplos, quer dizer, de um trabalhador rural, que é explorado desde a infância, da discriminação da mulher, que é impedida de ir à escola e fica confinada no trabalho doméstico. São outros processos, que têm a ver com exclusão socioeconômica, de gênero e de raça. Eu não acredito em um remédio estritamente educativo. Nenhum país do mundo chegou à universalização da escola e a uma difusão da alfabetização sem também proporcionar certos níveis de democratização econômica e de bem-estar social. Não tenho essa ilusão da erradicação, pois acho que os problemas são muito mais complexos. A gente tem um desafio muito grande, de combater a desigualdade social profunda que temos no nosso país e que está na raiz dessa problemática. Também acho que tem que respeitar as culturas orais e dar-lhes o devido valor, minimizando o preconceito e a discriminação em relação ao analfabetismo. Não acho que a gente vá assistir o fim desse fenômeno se não atacar as raízes mais profundas.