No dia 13 de maio, enquanto os professores estaduais decretavam greve em assembleia geral realizada no Gigantinho, em Porto Alegre, Fábio Rodrigues da Silva, 18 anos, encontrava-se do lado de fora do ginásio, reunido com centenas de estudantes que afluíram de várias partes do Rio Grande do Sul.
Presidente do grêmio estudantil da Escola Estadual de Ensino Médio São João Batista, de Novo Barreiro, Fábio viajara os 350 quilômetros até Porto Alegre, com um punhado de colegas, para comparecer a uma reunião plenária organizada pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes). Ele soubera do encontro por meio de pesquisas na internet e resolvera participar. A presidente nacional da Ubes, Camila Lanes, veio especialmente ao Estado para a plenária, e também estavam lá alunos responsáveis pelas primeiras ocupações de escolas no Rio Grande do Sul, ocorridas nos dois dias anteriores – naquele momento, eram apenas três ou quatro os colégios ocupados, todos na Capital.
– Era a assembleia do Cpers do lado de dentro e a da Ubes do lado de fora. Havia mais de mil estudantes, de Porto Alegre, Rio Grande, São Leopoldo. Voltamos de lá muito motivados, com a ideia de ocupar a escola – relata Fábio.
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Durante o fim de semana, no retorno a Novo Barreiro, a motivação de Fábio e dos colegas se traduziu em articulações. Na segunda-feira pela manhã, o grupo do grêmio reuniu-se com dois professores ligados ao Cpers, que também haviam participado da viagem a Porto Alegre, e deu início a um périplo por salas de aula, para manifestar sua adesão ao movimento deflagrado na Capital. A parti dali, o São João Batista, colégio perdido nos confins do RS, em uma cidade com menos de 4 mil habitantes, entrava no rol das escolas estaduais ocupadas. No mesmo dia e nos dias seguintes, iniciativas semelhantes pipocaram em diversas partes do território gaúcho. A Ubes já fala em 170 colégios sob controle estudantil. O secretário estadual da Educação, Vieira da Cunha, reconhece que são mais de cem.
– Depois de começar o nosso movimento, fomos a Constantina, a Palmeira das Missões, a Barra Funda, a Sarandi. Isso aumentou as ocupações. Há escolas que se espelharam em nós. Aprendemos em Porto Alegre e com pesquisas na internet, e agora ajudamos quem não sabe como fazer – conta Fábio, que tem apenas um ano de militância no movimento estudantil.
Iniciativa com alto grau de interiorização
O caso da escola de Novo Barreiro reúne elementos que ajudam a entender como o fenômeno das ocupações conseguiu, em poucos dias, penetrar em várias regiões gaúchas, alcançando até mesmo municípios pequenos e longínquos, sem grande histórico de mobilização. Uniram-se o descontentamento com a situação das escolas, a expertise ganha pela Ubes em outras partes do país e a articulação com a greve do Cpers, tudo isso confluindo para transformar o Rio Grande do Sul no principal foco de um levante nacional que já atingiu sete unidades da federação (também houve ocupações em São Paulo, no Rio, em Minas Gerais, no Paraná, em Goiás, no Mato Grosso e no Ceará). Conforme observadores e participantes, em terra gaúcha o movimento atingiu um grau raro de interiorização (apenas 25% das escolas engajadas, segundo dados da página Ocupa Tudo RS, são da Capital) e de adesão em termos absolutos ou proporcionais (só São Paulo teve mais escolas ocupadas, mas a rede estadual paulista é bem maior, com quase quatro vezes mais alunos do que a gaúcha).
– No Rio, foram 78 escolas ocupadas no auge. Em São Paulo, 230, principalmente na Região Metropolitana. Proporcionalmente, o Rio Grande do Sul é o que teve mais. Aqui o movimento estourou muito rápido – avalia Fabíola Loguercio, 19 anos, diretora de comunicação da Ubes.
De Porto Alegre, Fabíola mudou-se no ano passado para São Paulo, por causa do cargo na entidade estudantil, mas voltou à capital gaúcha nesta semana, sem data para ir embora, com a missão de oferecer apoio à mobilização dos estudantes. Ela já tem no currículo a participação nas ocupações ocorridas em São Paulo, no mês de novembro, e no Rio, em março. Sua missão é percorrer o Rio Grande do Sul, para ajudar as iniciativas locais.
– O protagonismo não é da Ubes, é do estudante, que está de saco cheio. Mas temos diretores (da Ubes) tentando rodar todos esses municípios. Vamos fazer o movimento aumentar. As escolas vão ficar ocupadas até o governo dialogar – assegura Fabíola.
Onde não havia paralisação, alunos incentivaram adesão
A líder estudantil reconhece que não houve coincidência na eclosão simultânea das ocupações e da greve dos professores. Segundo ela, a plenária promovida pela Ubes no mesmo local e no mesmo dia que a assembleia do Cpers foi uma forma de garantir que a paralisação do magistério tivesse força e que o movimento dos alunos também encontrasse uma base.
– A plenária foi muito importante, porque, depois dela, as ocupações explodiram. A simultaneidade com a greve dos professores foi algo construído. Se a escola está ocupada, e o professor está em greve, isso significa que toda a comunidade está insatisfeita. E a presença do Cpers ajuda os alunos a se mobilizar, porque quando fazem uma ocupação, os estudantes são ameaçados, e os professores, através do Cpers, têm dado muito apoio, estão lá para proteger. Nós damos suporte à greve, eles dão suporte à ocupação – afirma.
Lucas Maróstica, integrante da União Nacional dos Estudantes (UNE) e militante do PCdoB, diz que o movimento dos estudantes e o dos alunos se retroalimentam. Ele afirma que havia escolas onde os professores não queriam greve, mas foram incentivados pelos alunos a aderir. E que houve locais onde foi a adesão dos docentes à paralisação que criou as condições para os estudantes realizarem a ocupação. Figura presente, nos últimos dias, em várias escolas ocupadas da Capital, Maróstica vê três fatores como responsáveis pela difusão do movimento:
– O primeiro é a tradição que existe no Rio Grande do Sul de a juventude se mobilizar. Depois tem a organização do Cpers. Em Guaporé, que é a minha cidade, por exemplo, foram os professores que ajudaram a organizar. Em terceiro lugar, tem a participação importante da Ubes, nas cidade maiores, o que deu o pontapé inicial às ocupações.
O envolvimento de partidos políticos tem sido notado em diferentes momentos. Grupos ligados ao PSOL, por exemplo, produziram uma cartilha que ensina como organizar uma ocupação. Parlamentares de diferentes partidos também têm percorrido os estabelecimentos tomados por estudantes. O próprio Maróstica envolveu-se em uma ação, na Escola Presidente Costa e Silva, em que ocorreu a troca simbólica do nome do colégio – em lugar da referência a um dos ditatores do regime militar, o colégio foi "rebatizado" como Edson Luís, para homenagear um estudante vítima da ditadura.
Mas Maróstica, assim como os estudantes engajados, refuta a ideia de que as ocupações sejam dirigidas ou estejam a serviço de agremiações políticas:
– Os partidos fazem parte. O PCdoB, por exemplo, tem a União da Juventude Socialista, que está na direção da UNE e da Ubes, então é natural que exista muita gente da organização, que é a maior do Brasil, nas escolas. Mas o movimento é difuso, sem centralidade.
No campo contrário ao movimento, estão muitos pais, alunos e professores favoráveis ao retorno da normalidade das atividades. A própria Federação das Associações e Círculos de Pais e Mestres tem manifestado seu descontentamento com as ocupações. A discordância já gerou uma série de conflitos – entre os que querem aula e os que não a permitem –, inclusive com intervenções da Brigada Militar. Em um dos episódios, na Escola Técnica Parobé, em Porto Alegre, alunos que teriam aulas foram impedidos por colegas de pegar as chaves da sala correspondente. Houve bate-boca e, no final, os ocupantes acabaram encerrando o movimento, hostilizados por outros alunos.
Coordenadora de projetos da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Maria Rehder tem acompanhado a onda de ocupações em diferentes Estados e também rejeita a concepção de que se trate de um fenômeno manipulado por movimentos sociais ou políticos. Para ela, é algo que nasce da própria escola.
– São Paulo, onde ocorreram as primeiras ocupações, foi a inspiração. Significou a descoberta de uma nova estratégia de mobilização, que se adaptou às particularidades de cada Estado. No Rio Grande do Sul, a inovação foi a chegada aos pequenos municípios. Algumas esferas têm tentado desconstruir o movimento, dizendo que há interesses partidários por trás, mas os estudantes estão se esforçando para mostrar que são autônomos, e por isso procuram se dissociar de partidos.
Maria Rehder vê como embrião das ocupações as grandes manifestações de rua que ocorreram no país em 2013 e que tiveram na educação uma de suas principais pautas.
– Foi 2013 que deu coragem aos estudantes para se exporem e que tirou a inibição deles – acredita.
Ajuda do Cpers aos estudantes por meio de comitês de solidariedade
Para garantir suporte à mobilização dos estudantes, o Cpers montou comitês de solidariedade às ocupações em cada um de seus núcleos regionais. Há ainda um comitê estadual, sediado em Porto Alegre. Os integrantes dessas estruturas têm visitado as escolas e proporcionado auxílio aos alunos.
Um dos membros do comitê estadual é a professora Ida Irma Bettmer, tesoureira-geral do sindicato. Ela afirma que, antes da assembleia que definiu a greve dos professores, o Cpers realizou um dossiê sobre as demandas da rede estadual e, a partir daí, buscou o envolvimento de pais e alunos.
– Os alunos conseguiram fazer uma leitura da precariedade em sua escola. E se eles estão ali, é porque os pais permitem, porque os pais aprovam. Os alunos ocupam, e os professores mais engajados na luta não os deixam os sozinhos. Os professores apoiam, no sentido de orientar sobre a importância de cuidar da escola, de controlar quem entra, na questão do apoio jurídico e em campanhas de arrecadação de alimentos e cobertores – detalha Ida.
Diretora do núcleo do Cpers em Rio Grande, Andréa Nunes da Rosa conta que notou duas ausências no ônibus que trouxe professores da região participar da assembleia da categoria no Gigantinho: o diretor e o vice do grêmio de um colégio estadual. Em Porto Alegre, ficou sabendo que eles haviam permanecido em Rio Grande para mobilizar uma ocupação.
– Pensei: "Gente, como é que isso já chegou em Rio Grande". As primeiras escolas que aderiram tinham grêmio estudantil, mas nossa surpresa foi que várias ocupações começaram em escolas sem grêmio, porque poucas têm. Viram Porto Alegre fazendo, foram atrás de informações e procuraram na própria escola professores que pudessem ajudar. Acredito que, vendo que estávamos com indicativo de greve, os alunos aproveitaram para fazer o movimento deles também, porque as duas coisas juntas se transformam em algo muito maior.
Segundo Andréa, Rio Grande tem hoje 10 escolas ocupadas, todas as aulas com presença de professores representantes do Cpers – que funcionam como elos entre o sindicato e os alunos:
– No núcleo, formamos o comando de greve, e alguns colegas do comando estão focados no apoio, indo às escolas, vendo do que precisam.
O apoio da Ubes e da Uges
Depois da experiência iniciada em São Paulo, a Ubes havia planejado para o começo de abril, em combinação com grêmios estudantis, o início da onda de ocupações no Rio Grande do Sul. A data foi adiada e, no fim, a primeira escola a ficar sob controle dos alunos – o Colégio Emílio Massot, da Capital – mantinha distância da entidade. Mas as organizações estudantis, e os grêmios ligados a elas, desempenharam um papel central na propagação do movimento, principalmente nas cidades maiores, como Porto Alegre, Caxias do Sul e Passo Fundo, onde as entidades têm presença mais forte.
Contato feito por WhatsApp em municípios menores
Além da Ubes diretamente, também cumpriu uma função importante a sua filiada no Rio Grande do Sul, a União Gaúcha dos Estudantes Secundaristas (Uges). Na última terça-feira, o presidente da entidade, Marcos Adriano Prestes, saiu de casa durante a madrugada e só retornou tarde da noite, depois de percorrer municípios do Interior como Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Farroupilha, Veranópolis e Nova Santa Rita.
– Ao mesmo tempo em que eu visitava escolas e grêmios na Serra, um outro diretor da Uges percorria a região sul do Estado. Temos uma executiva com 15 membros, e mais uns 60, 70 diretores (da Uges) no Interior. A partir do momento das ocupações, tentamos espalhar esse pessoas, ir onde nos solicitam, para ajudar na organização, para não sair tudo errado – explica Marcos.
Como não é possível estar em todos os locais, diz o presidente da Uges, o contato com municípios menores – ele cita Ametista do Sul, Erval Grande e Palmitinho – é feito pelo WhatsApp. Marcos reconhece que a greve dos professores – e o corresponde apoio do Cpers, muito mais capilarizado, foi crucial no espraiamento das ocupações.
– Em escolas onde temos dificuldade de chegar, os professores estão ajudando. Reconhecemos o peso que o Cpers tem na mobilização – afirma.
Cenário diferente no Interior
Em várias escolas do interior gaúcho, os responsáveis pelas ocupações afirmam que seu engajamento deu-se de forma espontânea, sem articulação com entidades estudantis ou partidos políticos. Apesar disso, as pautas coincidem: envolvem uma denúncia do sucateamento do colégio, um ataque à política de parcelamento dos salários dos professores e causas mais gerais, como o projeto de lei 44, interpretado como uma tentativa de "privatizar o ensino".
Representante do grêmio do Colégio Estadual Diva Costa Fachin, o primeiro a ser ocupado em Cachoeira do Sul, Isabel Kieser, 17 anos, cita como gatilho para o movimento na escola o noticiário:
– Estava dando na TV que tinha ocupações. Formamos um comitê, conversamos com a diretora, que nos apoiou, e falamos para os alunos. Foi assim que começou a ocupação. Como temos professores em greve no colégio, eles apoiaram. Nossa luta é porque querem privatizar a escola pública. A gente quer fazer concurso, Enem, entrar em faculdade. Se terceirizarem o professor, qualquer um vai poder dar aulas.
Em Carazinho, também foi a informação de que havia colégios ocupados em outros municípios que desencadeou a iniciativa na Escola Ernesta Nunes. Segundo um dos líderes, Marcelo Zanetti, 17 anos, já haviam ocorrido algumas reuniões sobre a falta de verbas no estabelecimento e sobre o parcelamento de salários. A adesão à greve do magistério, no entanto, foi baixa: só quatro docentes teriam se engajado.
– A mobilização foi dos alunos. Vimos o que estava acontecendo nos grandes centros e foi um grande estímulo. Não tínhamos nenhuma articulação fora de Carazinho, foi bem autônomo. Quem nos deu uma orientada foi o Cpers, depois da nossa iniciativa. Nossa pauta é local, mas apoiamos reivindicações mais amplas. Somos apartidários,, queremos a melhoria da educação.
A autonomia da escola de Carazinho se traduz em peculiaridades. A ocupação ocorre das 7h às 22h, período em que é realizada uma série de atividades, mas não impede que professores e alunos que não aderiram tenham aulas normais. Os participantes do movimento também tomaram a iniciativa de encaminhar bilhetes para os pais, que precisam autorizar os filhos a participar.
Na Escola Dr. Hildebrando Westphalen, de Cruz Alta, ocupada desde o dia 17, os alunos também dizem que não houve articulação com entidades estudantis – e que mesmo o apoio por parte dos professores é limitado. A única relação estabelecida foi com outros colégios do próprio município. Bruna Mulinari, uma das organizadoras, diz que o estopim foram as reportagens sobre escolas ocupadas.
– Nossas reivindicações são a fiação, que é muito antiga, merenda e ventilador nas salas. E estamos com verbas atrasadas. Temos pais que são a favor da educação e que estão ajudando. Mas também tem pais a favor de aula, que estamos barrando.
No Instituto Estadual Seno Frederico Ludwig, em Novo Hamburgo, os estudantes começaram a ocupação no dia 18. Ary de Abreu, presidente do grêmio, diz que a ocupação partiu deles mesmos, sem orientação de ninguém, e que os estudantes não mantêm qualquer filiação partidária.
– A educação é uma luta nossa, dos alunos. Não aceitamos nada de quem não for aluno também.