Acomodando-se à mesa posta para o café da manhã no quintal de casa, no bairro Mont'Serrat, a educadora e pesquisadora Esther Pillar Grossi logo adianta que não pretende morrer aos 80 anos, idade que completa neste domingo, e sentencia como e quando irá despedir-se dessa vida:
– Não gosto dessa coisa de doença. Vou me deitar viva e acordar morta. E será com 115 anos, porque ainda tenho muita coisa pra fazer.
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Acompanhada de seu orientador de doutorado na Sorbonne, o pesquisador francês Gérard Vergnoaud, a fundadora do Grupo de Estudos Sobre Educação, Metodologia de Pesquisa e Ação (Geempa), ex-secretária de Educação do Porto Alegre (1989-1992) e ex-deputada federal (1995-2002) recebeu ZH para uma entrevista na última quarta-feira. Ela comentou sobre o momento político do país, a qualidade da educação brasileira – sobretudo quanto à alfabetização – e as celebrações de oito décadas de existência.
Nascida em Santa Maria, Esther tornou-se uma referência em educação, tanto pelo empenho em buscar soluções para a escola pública, quanto por pensamentos e teorias que desenvolveu, como a aplicação do pós-construtivismo na alfabetização de alunos com Síndrome de Down.
Nome histórico do PT, a ex-deputada deixou o partido ao surgirem as denúncias do mensalão e não pretende, por hora, voltar à política. Mergulhada em pesquisas sobre aprendizagem e formação de professores, Esther mantém um vigor de ideias que transcende o característico visual colorido dos cabelos e roupas, e segue muito requisitada por gestores de educação quando o assunto é alfabetizar. Tanto é que, a entrevista que concedeu a ZH foi interrompida por alguns instantes para que ela recebesse uma efusiva comitiva de educadores e alunos da Colômbia, recém-chegados a Porto Alegre especialmente para participar dos debates em comemoração aos 80 anos da educadora. Para o aniversário, nada de banquetes a convidados ilustres. Esther preferiu promover uma grande discussão sobre o que mais gosta de falar: educação.
Qual a sua grande frustração em relação à educação do país?
A decisão de que nas escolas públicas não se pode reprovar crianças no início do Ensino Fundamental. Com isso, elas teriam até o terceiro ano para se alfabetizar. Internacionalmente, sabe-se que uma criança se alfabetiza por volta dos sete anos. Inventar que uma criança não vai se alfabetizar no primeiro ano da escola significa dar a essa criança uma ideia negativa em relação a si mesma. Claro, se as professoras não têm compromisso de alfabetizar, descansam: a professora do primeiro ano não precisa alfabetizar, porque os alunos têm até o terceiro ano para serem alfabetizados. Os que não se alfabetizaram vão com aqueles que se alfabetizaram até o terceiro. No terceiro, aqueles que não se alfabetizaram no primeiro não vão se alfabetizar nunca.
Como a senhora avalia a educação no Brasil atualmente?
Péssima. A causa fundamental das dificuldades é um apartheid: escolas particulares tem um tranco, as públicas, outro. Nas escolas particulares, os professores não faltam. Se faltam, são postos para fora. Na escola pública, os professores faltam que é uma coisa incrível. A escola realmente não é o lugar de uma comunidade comprometida com aqueles alunos. E é um equívoco achar que a gente ensina explicando, que ensinar é dar matéria e depois dar uma nota. Aprender é um processo que cada um vive individualmente e, para o professor, ensinar é ir ao encontro desse processo. No Brasil, há 50 milhões de analfabetos que estiveram na escola. Anos atrás, havia falta de escolas. Agora, não: todo mundo pode ir.
Na última divulgação de dados da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), o RS aparece com desempenho abaixo dos outros Estados do Sul e mal em relação ao resto do país. A que a senhora credita a perda de destaque do Estado?
O fato de o RS ter baixado o desempenho comparativamente a outros deve-se, em primeiro lugar, às avaliações, que não são adequadas ao que se sabe de melhor sobre aprendizagem. A gente avalia justamente memorização de conteúdos, não a construção desses conteúdos. Em segundo lugar, o mais e o menos têm uma diferença muito pequena entre si. Os que estão melhores mostram alunos que acertam pouco mais do que 50% das perguntas. Então, estar melhor não quer dizer estar bem. Não é uma vergonha que o RS tenha baixado índices, porque tudo está ruim, e essa avaliação não é fidedigna.
A senhora foi candidata a vice-presidente do Cpers. Como avalia a postura atual do sindicato?
Pena que eu não ganhei, né? (risos). Uma categoria precisa batalhar pelos seus direitos levando em conta seu papel social. O papel social dos professores é ensinar, mas eles não estão ensinando os alunos. Os professores consideram como conquistas coisas que são muito prejudiciais a sua função social. Nas primeiras séries, o melhor é um único professor durante cinco dias na semana. A criança precisa ter referência para aprender. Os sindicatos lutam para que o professor tenha um terço do horário de aula para preparar a aula. É um absurdo. Os alunos de primeiro ano, às vezes, veem várias pessoas entrando na sala de aula, é péssimo. A ideia do sindicato é que tudo é questão de vontade política. Mas você acha que o Estado não paga melhor porque não quer? Há empecilhos de financeiros.
É fundamental ter conhecimento de sala de aula para ser um bom gestor em educação?
Se for para a parte administrativa, não precisa ter. Mas tem de ter consciência de que precisa ouvir quem tem.
A senhora foi deputada federal pelo PT. Como avalia o Congresso atual e a situação política do país?
Vivemos a consagração da diferença de classes. Os problemas da alfabetização são só para os pobres. Os ricos têm todos os direitos, que têm de ser considerados. Os pobres ficam para lá, não são da mesma categoria. Foi assim em 1964. A mídia poderosa, os empresários, a Igreja Católica – agora, os evangélicos –, não vão dar chance. Mesmo que o Lula tenha feito muita cagada, os ricaços não engolem um operário como melhor presidente do Brasil. Quem pode negar que ele tirou milhões da fome, da pobreza absoluta? Viajei com estudantes do Ciência sem Fronteiras, com uma menina do interior de Santa Rosa, que tinha ido estudar na Austrália. Isso é o que mais irrita os conservadores. Pobre comendo ainda vá, mas vai estudar? Aí o perigo é terrível.
A senhora pretende se candidatar a algum cargo político?
Se eu ouvisse a voz das ruas (risos). As pessoas me param, dizem, até dos ônibus: "votamos de novo na senhora". A ideia é de que é preciso ter gente séria na política, não é gente aí votando pela cunhada, pelo filho, não sei por quem. Creio que na área em que estou tenho muito a fazer. Sou um soldado, não de partido, mas da militância. Vamos ter de fazer das tripas coração para recuperar a esperança política no Brasil. Não tem projeto concreto (de candidatura) nenhum, mas vamos fazer sábado um diálogo político pelo meu aniversário (a programação de aniversário será de hoje a domingo, com debates, show e passeios). É preciso fazer algo, não adianta ficar criticando sem atuação. Acho que o que eu estou fazendo, alfabetizando crianças, já é algo.
A Esther dos oito, no sentido simbólico da juventude, é melhor do que a dos 80? Ou está melhor agora?
Muito melhor agora. Minha ideia é de que esse meu aniversário não seja só uma festa para comemorar os meus 80 anos. Será um reinício. Tenho três filhos criados, todos boa gente. Tenho três netos, então, já sei dessa experiência fantástica de ser avó que mostra que a gente vai se continuar, não só biologicamente, mas cognitivamente, pelos alunos, pelos colegas. Já plantei muitas árvores e escrevi muitos livros. Então, eu não estou mais naquele período de ansiedade, do "será que vai dar certo", "será que não vai dar". Ao mesmo tempo, sei que tenho muito a fazer. Não posso morrer. Não vou morrer mesmo. Não vou morrer sem ver as crianças pobres do Brasil se alfabetizando. Isso é um crime, uma barbárie, uma injustiça. Todas as crianças podem aprender.