Ao perguntar para crianças onde desejam trabalhar no futuro, é pouco provável que a resposta seja "em uma funerária" ou "em um cemitério". Ainda que incomuns e, em parte, carregadas de preconceitos, as profissões de tanatopraxista e sepultador – diretamente envolvidas com a morte – trazem muita realização e felicidade para Giovanna Neves, 24 anos, e Lindomar dos Santos Ribeiro, 58.
— Parece macabro, mas eu amo meu trabalho. Eu venho trabalhar empolgada. A melhor parte é quando a gente vai abrir ou encerrar um velório e o sentimento da família é de gratidão — relata Giovanna, que é responsável por preparar os corpos para a despedida.
Do fascínio da vida, que é o que me chamou atenção na biologia, há o enigma da morte.
GIOVANNA NEVES
Tanatopraxista
A tanatopraxista conta como funciona um dia normal na Funerária São Pedro, onde trabalha há sete meses. A função, que pode demorar entre uma e oito horas, envolve realizar a higienização do corpo, recuperar a aparência do falecido e utilizar técnicas de embalsamento e preservação para retardar o processo de decomposição. Em um carrinho parecido com o utilizado em salões de beleza, Giovanna mostra os produtos com os quais faz a maquiagem e o cabelo dos mortos, última parte do processo.
Para ela, frases comuns em velórios, como “parece que está dormindo” ou “está com semblante de paz”, são elogios. Ela explica que, como não conhece os falecidos, é sempre um desafio fazer com que a pessoa fique parecida com a imagem que os familiares guardam na mente. A maquiagem pode ficar pesada, ou, em casos dos muito vaidosos, leve demais.
Atualmente, não resta dúvidas de que Giovanna ama o que faz. Mas, no começo, a ideia soou meio estranha para a bióloga:
— Uma amiga ficou sabendo dessa vaga e disse que era a minha cara. Eu pensei “como assim trabalhar na funerária é a minha cara?”. Topei ir conhecer, em respeito a ela, e saí da entrevista dizendo que precisava ser contratada. Eu sempre digo que, do fascínio da vida, que é o que me chamou atenção na biologia, há o enigma da morte. Essa dúvida, sobre o que acontece depois da morte, é o que mais me chamou atenção para vir para cá.
Ela garante que não tem medo de ficar sozinha no laboratório de tanatopraxia, onde os corpos são preparados, com os mortos. Mas Giovanna lembra que o pai ficou receoso quando ela contou da nova profissão. A preocupação era de que o trabalho seria emocionalmente pesado.
Segundo Karina Kunieda Polido, psicóloga especialista em teoria, pesquisa e intervenções em luto, essa aflição é normal.
— Já trabalhei muitos anos dando treinamento e capacitação de acolhimento para pessoas que trabalham tanto em cemitérios quanto em funerárias. E a maior preocupação era em relação a o que as pessoas levam para casa do trabalho. Muito do que se cuida nesse sentido é para que não aconteça nenhum dos dois extremos, para não mobilizar demais e nem de menos.
A jovem tanatopraxista afirma que alguns casos são chocantes, mas entende que precisa separar os sentimentos para acolher as famílias enlutadas.
"Aprendi a gostar e gosto muito do que faço”
Depois do velório é quando Lindomar dos Santos Ribeiro costuma entrar em campo – literalmente. Há 14 anos atuando como sepultador no Cemitério Santa Casa, ele é responsável por preparar e realizar o enterro quando esta é a escolha dos familiares. Também há aqueles que preferem a cremação – quando o corpo é incinerado e transformado em cinzas.
— É a morte finalizando o ciclo da vida, então a gente precisa fazer essa parte. Precisa ter alguém para fazer, e justamente eu sou um desses, escolhido para fazer isso. Aprendi a gostar e gosto de fazer o que eu faço. Eu me ambientei no cemitério e faço o meu trabalho com boa vontade. Já estou quase me aposentando, mas não trocaria esse trabalho — confessa.
Em um dia cheio, o profissional sepulta até 10 corpos. Ele explica que os familiares podem escolher entre um sepultamento simples, no chão, no qual é necessário cavar, pelo menos, 2 metros de profundidade para colocar a urna (nome técnico do caixão); uma carneira, espaço onde costuma caber mais urnas e é coberto por uma laje ou pedra; ou uma gaveta, estrutura vertical presente nos cemitérios.
Quando a pessoa está dentro do ambiente, perde o medo de chegar perto.
LINDOMAR DOS SANTOS RIBEIRO
Sepultador
Hoje, já habituado com o fluxo do trabalho, Lindomar lembra de quando entrou no ramo. Foi chamado para um serviço de manutenção de túmulos no cemitério, como pedreiro. Com a saída de alguns colegas, foi convidado a cobrir uma das vagas de sepultador.
Ele conta que não sentiu medo ou desconforto já que, anos antes, um amigo que tinha perdido o irmão solicitou sua ajuda para abrir um túmulo em um cemitério do Interior.
— Meu primeiro contato com restos mortais foi ali. Depois, foi aqui. Esse episódio tinha me dado uma injeção para chegar aqui tranquilo. Quando a pessoa está dentro do ambiente, perde o medo de chegar perto. Mas sempre me perguntam se alguém já me pegou. Mas eu sei que quem morreu, morreu. Não vai pegar ninguém — conta, rindo.
Ele ressalta que o trabalho no cemitério e a religião – evangélica – o ajudam a encarar a morte de uma maneira leve. Lindomar afirma que não tem medo de encontrar com a morte e que, a hora que vier, será bem-vinda. Para ele, é apenas uma passagem desta vida para a outra.
Karina avalia positivamente esse sentimento:
— Essa é uma das vantagens de trabalhar na área e enfrentar a morte de uma forma mais natural. Ter essa consciência e essa clareza de que a morte chega para todo mundo, e nem sempre de uma forma programada. Quando a gente lida com isso, a gente se conscientiza e tem a oportunidade de se relacionar com a finitude de uma forma diferente. Talvez aproveitando mais, vivendo mais conscientemente — defende
Um agradecimento da família é a melhor recompensa pelo trabalho realizado, afirma. Lindomar entende que, às vezes, a emoção é tanta que os familiares não conseguem conversar com o sepultador após o fim da cerimônia. Mas, na maioria das vezes, ele é elogiado e agradecido.