Quando saiu da reserva indígena onde vivia para cursar Direito na Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul (Unijuí) na década de 1990, Susana Kaingang foi surpreendida ao entrar na sala de aula. Aos 19 anos, encarou, no quadro-negro, uma frase que destilava o preconceito de colegas: “Agora, índio quer ser gente”.
Não se abateu pela tristeza: decidiu baixar a cabeça para estudar e provar que estavam todos errados. Nesta sexta-feira (30), quase três décadas depois, Susana se torna a primeira indígena doutora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A marca histórica ocorre quase 90 anos após a instituição ser criada.
— A maneira de mostrar que estavam errados foi estudar. Se achavam que a gente era burro, eu ia mostrar que a gente é capaz. Indígenas nunca foram sujeitos de pesquisa, sempre foram objetos pesquisados. Nossa posição na universidade é de reverter esses papéis — diz Susana, hoje com 48 anos, em conversa com GZH antes da defesa do doutorado.
É grande sua obstinação com estudo. Após tornar-se advogada, Susana cursou mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e um segundo mestrado em Educação pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Os anos de estudo transparecem em sua oratória desenvolta e repleta de referências acadêmicas.
Agora, tornou-se doutora em Educação com a tese “Tra(n)çando caminhos: a história de vida de Andila Kaingang”. A pesquisa analisa o ensino de indígenas pela trajetória da mãe, uma educadora e militante pela educação kaingang, de reconhecimento nacional.
Na banca examinadora, estavam professores da universidade federal e o pesquisador Bruno Kaingang, o primeiro doutor indígena masculino da UFRGS, também em Educação, que recebeu o título há três anos. Hoje, entre 12.686 estudantes de pós-graduação da UFRGS, nove são indígenas
— Ao ingressar na universidade, o indígena fala em demarcar o território com nossa cultura e diversidade. O acadêmico indígena traz a visão de sua história, de sua cultura e de seus valores. A história dos povos indígenas é contada pelos olhos do colonizador. A tese pretende trazer uma ruptura com a produção de conhecimentos de outra forma, à luz dos povos indígenas e da oralidade — diz Susana.
A nova doutora em Educação vem de uma família de intelectuais. Os pais, servidores aposentados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), criaram as cinco filhas para estudarem. Formaram duas advogadas, uma jornalista, uma artista e uma médica e enfermeira. A mãe, Andila Kaingang, é uma conhecida militante pela educação e pelo direito à terra do povo kaingang.
— A sociedade não indígena pensa o indígena como se fosse aquela pessoa de cocar na Amazônia, que vive na floresta. É uma visão colonialista. Tem que quebrar essa visão. Gosto da frase do Marcos Terena: “Posso ser quem você é, sem deixar de ser quem sou” — observa a pesquisadora.
Susana cursou o doutorado com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A advogada também atua como assessora jurídica na Organização Indígena Instituto Kaingang, em Ronda Alta.
Ela ingressou na universidade mediante ações afirmativas: conseguiu bolsa para custear o curso de Direito na Unijuí paga pela Funai e pelo Ministério da Educação (MEC) e depois ascendeu ao mestrado e ao doutorado em Educação com cota para indígenas.
A nova doutora viveu em terras indígenas de diferentes regiões do país – segundo conta, habitava até 2021 a Terra Indígena Serrinha (localizada nos municípios de Ronda Alta, Três Palmeiras, Constantino e Engenho Velho), antes de ter sido expulsa, com outras dezenas de famílias, após denunciarem arrendamento no local. Hoje, vive em Chapecó com o marido, um filho de 27 anos e uma filha de 10.
A advogada observa que há pouco conhecimento acadêmico sobre os kaingang, tribo que tradicionalmente vive no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, Paraná e São Paulo.
Do estágio-docente na disciplina de Filosofia da Educação, onde ensinou filosofia dos povos indígenas, Susana desenvolveu a ambição de tornar-se professora universitária, enquanto equilibra a atuação no Instituto Kaingang.
— Se a história oficial não traz a história dos povos indígenas, nós vamos trazer — diz, resoluta.
Marido de Susana há 27 anos, o bancário Lendres Nagy, 49, se alegra com a trajetória da esposa:
— Ela é uma mulher forte, decidida, inteligente e esforçada. Estou orgulhoso — diz.
Os antigos colegas do curso de Direito de Susana, imersos no preconceito, seguirão para sempre contrariados. Após quatro horas de defesa oral perante a banca, Susana Kaingang foi aprovada com louvor e tornou-se doutora em Educação.