Uma nova era no mercado de trabalho é vislumbrada por especialistas, a partir da experiência brusca com a pandemia de coronavírus. Mais do que o fortalecimento do home office, quem acompanha as tendências aponta para a expansão de forma acelerada das profissões ligadas à tecnologia e para o reconhecimento de funções antes em processo de desvalorização. A covid-19 trouxe também mudanças profundas no comportamento dos profissionais.
Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Empreendedorismo e Inovação (Idear) da PUCRS, a doutora em Ciências da Educação Naira Libermann considera que a grande virada durante a pandemia foi a oportunidade do autoconhecimento, com o ser humano cada vez mais se questionando sobre como melhorar a própria experiência de vida no mundo, nos campos pessoal e profissional.
Naira salienta que apesar de estarem dentro de casa, as pessoas precisaram se "espalhar" - movimento que deverá seguir no pós-pandemia. Será cada vez mais necessário se tornar multidisciplinar, mesmo atuando numa área de conhecimento.
— Esta pandemia mostra que precisaremos fazer movimentos concêntricos e se abrindo, trabalhando em rede. A visão de empresa tradicional, com estruturas de prédios e carreiras lineares, vai desaparecer. O network não será mais somente entre colegas de trabalho, mas entre as pessoas que se identificam com a mesma causa e propósito, independentemente de onde elas estiverem no mundo — afirma.
O distanciamento social acabou democratizando o conhecimento, sugere Naira. Conteúdos antes compartilhados apenas nas chamadas bolhas foram expandidos em lives e palestras virtuais. As pessoas passaram a se dedicar ao outro, com discussões de temas complexos, passando pela produção musical e alcançando a solidariedade, por meio de doações. São movimentos que vieram para ficar no pós-pandemia, reflete a coordenadora do Idear.
E esta mudança no modo de vida, que acabou começando de forma repentina, exigirá ainda mais compreensão das pessoas. Por isso, Naira vê a ascendência das profissões ligadas à saúde física — técnicos de enfermagem, enfermeiros e médicos — e mental — psicólogos e psiquiatras, pensamento compartilhado pelo sociólogo Dario Caldas, fundador do escritório de tendências Observatório de Sinais, com sede em São Paulo. Ele destaca também os trabalhadores do setor de bem-estar em geral, devido ao aumento de casos relacionados às doenças do século – depressão e ansiedade.
O sociólogo comenta que as grandes empresas no mundo já discutem a oferta interna de serviços como meditação, ioga e outras terapias holísticas (práticas integrativas). Num trabalho de pesquisa de observação direta nas redes sociais, o próprio observatório constatou o aumento da abordagem holística em qualquer tema de discussão:
— Se fala na tendência muito forte dos millennials serem a geração do burnout (síndrome crônica ligada ao trabalho). E, por isso, estarão em alta profissões que vão do instrutor de meditação ao psicanalista, do profissional holístico ao psiquiatra.
Fundadora da Solucionare RH, a psicóloga Luciane Simões completa dizendo que as empresas estão se preocupando em como receber os colaboradores no retorno ao espaço compartilhado de trabalho. Ela acredita no aumento significativo de pessoas deprimidas e ansiosas nos próximos anos.
— Muitos não estão conseguindo produzir como antes, seguem estressados ou não querem voltar a um ambiente compartilhado. Será preciso muita calma no retorno — diz.
Mercado foi acelerado
Segundo os especialistas, a pandemia acelerou movimentos que estavam em curso. Profissões ligadas à sustentabilidade, por exemplo, ganharão ainda mais força. Naira ressalta que as empresas se deram conta, principalmente a partir da pandemia, da importância da economia regenerativa, onde se tira algo do ambiente e o devolve de forma regenerada. Na área da logística, motoboy e motorista se tornaram fundamentais desde o começo do distanciamento, devido ao aumento das entregas em domicílio e do transporte urbano. No estudo das 15 profissões emergentes no Brasil em 2020, elaborado pelo LinkedIn, em nível global, a partir de informações da própria rede social, motorista aparece em 10º lugar.
No campo digital, empresas de pequeno a grande porte, que não valorizavam a questão tecnológica, perceberam a importância cada vez maior dos profissionais ligados à área. Os experts em tendências ressaltam que o planejamento estratégico passará a ser baseado em inteligência de negócios, de mercado e de dados. E isso exigirá colaboradores cada vez mais mergulhados na questão digital.
— Uma profissão que já estava em alta antes da pandemia e será ainda mais valorizada é a do designer digital. Principalmente, aquele que tiver especialização em user experience. A necessidade de resolver a integração físico-digital em qualquer tipo de negócio exige este perfil — explica o sociólogo.
A psicóloga Luciane também destaca o profissional de segurança cibernética, que pode atuar em diferentes funções ligadas à proteção contra ameaças no mundo virtual.
Iniciativa e flexibilidade cognitiva
Para os especialistas, profissionais com a mente aberta para o novo, iniciativa e flexibilidade cognitiva terão mais destaque no mercado de trabalho que se avizinha. Luciane é taxativa: não sobreviverão os inteligentes, mas o que conseguirem mudar e se reinventar.
Professora da escola de negócios da PUCRS e sócia-diretora da CRTL4Time, empresa de software de gestão de pessoas, Loraine Müller tem opinião parecida, reforçando que profissionais experientes, os chamados seniores, serão fundamentais na retomada, por terem maturidade emocional, mas não haverá espaço aos profissionais que não admitem mudanças.
— Se a pessoa só conhece martelo, todo o problema para ela será prego. Então, terá que aprender a usar uma chave de fenda. E a chave terá que ser acionada hidraulicamente — exemplifica a professora.
Depois da crise, Caldas aposta na recontratação de parte das pessoas que foram demitidas e indica aos profissionais que perderam seus empregos neste período a retomada de forma online. Compartilhar a própria experiência a distância em workshops e treinamentos podem ser uma alternativa. O sociólogo enfatiza o crescimento pela oferta e procura de cursos online. Com a pandemia, as pessoas se tornaram mais abertas a ampliarem os conhecimentos por meio do mundo virtual, buscando complementos para a formação e, até, mentorias.
Mudança de profissão depois dos 40
Ao contratar três técnicas em enfermagem que não exerciam a profissão e ouvi-las falando sobre as próprias experiências, a então coordenadora de equipe de um escritório de advocacia Monique Benin Ponzi vislumbrou a possibilidade de uma carreira distante da área administrativa, na qual estava há 20 anos e já não se via mais desafiada.
Interessada em saber sobre a função, conversou com outros profissionais e pesquisou os cursos mais procurados em Porto Alegre. Disposta a ajudar ao próximo de alguma forma, tomou a decisão: seria técnica em enfermagem. Inicialmente, foi desencorajada pela família, mas não hesitou. Pediu demissão do trabalho e se inscreveu no curso mais disputado de Porto Alegre. Parte do pagamento foi com o dinheiro até então reservado para uma cirurgia plástica.
Antes da formatura, em dezembro de 2015, Monique estagiou numa clínica e acabou contratada. Ficou nove meses na função, quando decidiu sair porque começou a atuar novamente na área administrativa.
— Queria "assistência beira leito", como chamamos. Comecei a enviar currículos e logo fui chamada para trabalhar no CTI de um hospital de Porto Alegre. Depois de nove meses, consegui uma vaga em outro, onde estou até hoje atuando no CTI — comemora.
Hoje, aos 46 anos, garante jamais ter se arrependido de mudar de área e ficou surpresa ao saber que os especialistas indicam a profissão de técnico em enfermagem como promissora no pós-pandemia. Monique pensa em cursar Enfermagem para, um dia, dar aulas numa universidade.
Para quem pretende mudar de área, Monique ensina:
— A pessoa não pode ter medo de mudar. É preciso se preparar financeiramente para a transição, estudar muito e fazer todos os cursos que aparecerem. Numa seleção, isso fará a diferença. Também é importante nunca fechar as portas das empresas em que trabalhou e, principalmente, não buscar apenas a recompensa financeira, mas também a pessoal.
Do mundo corporativo para as práticas integrativas
Durante 25 anos, Eliane Pedebos atuou no ambiente corporativo, na área comercial e na gestão de pessoas. Ao mesmo tempo, para acalmar a correria do cotidiano e manter o equilíbrio emocional, ela praticava como hobbies teatro, dança, artes plásticas e design de interiores.
Certo dia, ao ler a frase de Mahatma Gandhi "Felicidade é quando o que você pensa, o que você diz e o que faz estão em harmonia", teve um sinal de alerta: ela tinha uma carreira de sucesso, mas existia um desequilíbrio entre seu pensar, sentir, falar e agir. Apesar dos resultados excelentes, incomodava-se com a correria, com a competição, com a pressão e, até mesmo, com a forma que o sistema exigia.
— Decidi, então, mudar. Não só na minha atuação profissional mas, principalmente, no que eu entregaria com o meu servir, a minha contribuição para esta jornada — revela.
Eliane conta que a adaptação foi suave e planejada. Para isso, investiu anos em estudos e foi transformando o próprio modo de vida. Nos primeiros cinco anos, conciliou a atuação nas práticas integrativas com o trabalho no meio corporativo. Há três, dedica-se exclusivamente ao trabalho como terapeuta reikiana, instrutora de meditação, deeksha giver e orientadora comportamental.
— A impermanência é uma das leis universais, somos seres em movimento, sendo assim, precisamos estar atentos e alinhados ao fluxo da vida. Manter-se atualizado é fundamental, ainda mais em tempos em que a ciência está se aproximando, explicando e comprovando os benefícios das práticas integrativas.
Para Eliane, que está com 47 anos de aprendizados e bênçãos como diz, o apontamento dos especialistas sobre a tendência de valorização dos profissionais ligados ao universo holístico não foi surpresa.
— Este período de privações e reflexões trouxe à tona muitas emoções desconhecidas e descontroladas, mas também deu tempo e oportunidades para nos conhecermos melhor, olhar para nós mesmos, para o outro e para o mundo de forma mais ampla, mais amorosa e gentil. Isso tudo está auxiliando para que sejamos mais comprometidos com nossas transformações e na busca de autoconhecimento, bem-estar e paz interior — finaliza.
Do mochilão para uma nova área
No começo de 2000, Diego de Souza Gnoatto já trabalhava em TI e cursava a faculdade de Ciências da Informação. Disposto a sempre aprender mais, ele não se sentia desafiado na profissão. Num ímpeto, colocou uma mochila nas costas e decidiu que percorreria o mundo em busca de conhecimento.
Nos dois anos seguintes, viveu na Austrália, porque queria aprender inglês. Lá, acabou se especializando como programador e desenvolvedor, obtendo os primeiros clientes na área. Depois, passou por Europa, Índia e Tailândia por conta do trabalho. Foram seis anos e 14 países percorridos até decidir voltar ao Brasil ao perceber que o mercado digital ainda estava se expandindo no país. Ele passou a trabalhar como designer digital autônomo e nunca mais parou.
— Nunca parei de estudar porque esta área se movimenta muito rápido e quem não está atualizado acaba ficando para trás — diz.
Diego nunca pensou em abrir uma empresa com mais funcionários, mas garante que poderia pois a procura pelo trabalho de design digital aumenta a cada ano. E acrescenta que, nos últimos meses, precisou negar trabalhos porque não conseguia mais dar conta de tantos pedidos. Hoje, aos 39 anos, desenvolve websites, e-commerces e aplicativos para celulares.
Para quem pretende atuar na área, Diego é enfático:
— Comece pelo básico, aprendendo as linguagens de HTML, JavaScript e CSS. São programas fundamentais para o desenvolvedor porque estão presentes em qualquer página da web.
No Fórum Econômico Mundial 2020, realizado em janeiro, os especialistas elencaram 10 competências fundamentais para o futuro de um profissional. São elas, na ordem de importância:
- Resolução de problemas complexos
- Pensamento crítico
- Criatividade
- Gerenciamento de pessoas
- Coordenação com os outros (atuar de forma compartilhada)
- Inteligência emocional
- Discernimento e tomada de decisão
- Orientação de serviço (reconhecer as necessidades do cliente ou usuário antes que elas ocorram)
- Negociação
- Flexibilidade cognitiva (disposição para aprender)