“Genô, obrigado por ter ajudado a me tornar o homem que sou.”
A dedicatória na folha de rosto do livro de 313 páginas faz a professora encher os olhos de lágrimas. O ex-aluno saudoso abraça a mestra. Ela logo engancha o braço esquerdo no dele e saem a caminhar pelo piso de ladrilho xadrez, preto e branco, do corredor do primeiro andar do tradicional Colégio Rosário, em Porto Alegre.
— Aqui ficava a minha sala, a 202 — lembra o homem de 40 anos e o mesmo sorriso bobo do guri tímido do segundo ano do antigo segundo grau (hoje Ensino Médio) em 1994.
— Lembra do Bar do Antônio? — questiona Genô.
— Sim, muitos pacotes de pastelina comprei ali — responde o homem.
E seguem os dois, professora e ex-aluno, em direção ao fundo do corredor, onde as escadas recebem, ao final de tardes, o reflexo colorido dos detalhes dos vidros azuis. O homem pisou ali pela última vez em 1995. Genô, hoje com 93 anos, ficou. Segue na ativa. Neste ano, completa 50 anos de Rosário.
Como faz com cada ex-aluno que regressa para matar a saudade ou presenteá-la com alguma lembrança, a professora cumpre o tema de casa. Se não lembra do nome do ex-estudante, busca nos arquivos o Ecos Rosarienses, livro que registra, em fotos e textos, alunos e atividades do ano letivo.
— Como hoje ele é falante, não é? — surpreende-se Genô, dirigindo-se à atual secretária da escola, Karen Klein, referindo-se ao aluno tímido, que, aos 16 anos, preferia acomodar-se colado à parede da sala de aula, escondia-se na hora de apresentar trabalhos e fugia da famosa Gincana Rosariense, que ainda hoje mobiliza a comunidade escolar.
Em seguida, a professora repassa o corpo docente atual e do passado.
— Lembra da Bactéria? — pergunta, referindo-se ao apelido da professora de Biologia.
— Claro. E o Basso? — ele questiona, em alusão a outro professor.
Gil, Giba, Favilla e tantos outros. Quando Genô entra na sala dos professores, situada no mesmo local onde ingressou pela primeira vez, os colegas são só sorrisos, gentilezas e carinho. Nem sempre foi assim, como veremos adiante. Antes, vamos às origens dessa professora tão singular, que ajudou a formar magistrados, políticos, jornalistas e tantos outros.
Genô chama-se Genoveva Guidolin, a décima filha de José Guidolin e Catharina Vivan, descendentes de italianos que chegaram ao Rio Grande do Sul no final do século 19. A família se fixou na localidade de Capoeiros, interior de Nova Prata.
— Havia apenas uma rua, uma venda, onde se comprava comida, roupa, tudo na mesma loja — lembra ela.
Por volta dos 10 anos, Genô viveu os tempos da II Guerra Mundial. Estava longe da Europa, mas sentia por aqui os efeitos do fascismo que sequestrara a terra de seus antepassados. O governo do presidente Getúlio Vargas flertava com o de Benito Mussolini. O Brasil, por pouco, não entraria no conflito do lado errado da História. Quando o jogo virou, e o país apoiou os aliados contra o nazifascismo, descendentes de alemães e italianos no Estado sofreram perseguições. Lojas chegaram a ser vandalizadas na Capital. No interior de Nova Prata, José, o pai, orientava Genô:
— Tu não deves falar italiano na escola.
A menina assentiu. Mas havia um problema: ela não falava português.
— Eu passava o dia na escola, e ficava feito uma múmia. Diziam que, se falasse italiano, a polícia prendia a gente – conta Genô, ainda hoje com o sotaque italiano bastante carregado.
A família era pobre. José, agricultor, plantava trigo, milho, aipim e criava gado. A mãe, a dona de casa Catharina, morreu cedo, quando Genô tinha 14 anos. Na escola, a menina não foi avisada da doença da mãe. Até hoje, lamenta não ter dado um último beijo:
— Fiquei chateada porque ninguém foi me buscar para ver minha mãe. Só a vi quando ela já tinha falecido. Cobrei muito dos meus irmãos. “Puxa, nenhum de vocês? Poderiam pegar até um cavalo para me buscar”. Genô sabia montar. E o que mais? Do que uma menina do interior de Nova Prata brincava à época nos anos 1930?
— Brincar? Eu gostava era de mandar — diverte-se, identificando na infância uma das qualidades da futura orientadora educacional. — As crianças que conviviam comigo, eu mandava nelas.
Não havia como continuar os estudos em Nova Prata. Genô deixou a casa dos pais para não voltar. Fez o Juvenato em Garibaldi. Aos 15 anos, ingressou na Congregação Irmãs de São José de Chambéry, seguindo os passos de uma irmã mais velha, que era freira.
— Bah! — entusiasma-se Genô — Eu queria ser orientadora, queria mostrar o caminho para os outros.
Não parou mais de peregrinar pelo Estado: foi para Caxias do Sul fazer o Ginásio e, depois, Pelotas. Na cidade do sul do Estado, conquistou o primeiro lugar no exame de suficiência, seleção para quem desejava cursar o bacharelado. Ingressou na Faculdade Católica de Filosofia de Pelotas.
— Eu me achei deste tamanho — exagera ela nos gestos.
Na época, quando vestia o hábito, a religiosa trocava o nome. Genô passou a ser conhecida como Leopoldina. Quando saiu de Pelotas, voltou a ser Genoveva, e isso a envolveu em um fato curioso: em uma festa de aniversário do Colégio Rosário, seu nome não estava na lista, pois constava “Irmã Leopoldina”.
Após a formatura em Geografia e História, buscou pós-graduação como Orientadora de Educação e Ensino na PUCRS, em Porto Alegre. Em 1969, a congregação Marista queria transformar as escolas da rede, até então separadas por sexo, em colégios mistos. A direção do Rosário procurava uma professora.
— A gente gostaria muito de que tu fosses lecionar lá — ouviu Genô do diretor do colégio.
— Juntou a fome com a vontade de comer — ela ri. — Eles precisavam de uma mulher, e eu, de trabalho – explica.
Assim, teve início a história de 50 anos entre o Rosário e Genô, que lecionava História e Geografia. Foi no primeiro dia que a professora, única mulher, enfrentou o preconceito de um corpo docente masculino.
— Bom dia — ela disse, ao chegar à sala dos professores. Silêncio. Os homens, alguns formados na Sorbonne, vestiam terno e gravata. Eles se gabavam, segundo Genô.
— Estudei em Paris — dizia um.
— Eu sou da UFRGS — afirmava outro.
— Eu sou da PUCRS — declarava um terceiro.
Genô imaginou: “E eu, de uma faculdade, que nem era universidade, a primeira do interior do Estado”.
— Me senti desse “tamainho” — conta.
O diretor que havia convidado Genô para trabalhar na escola, vendo a cena do primeiro dia, questionou:
— Como estás te sentindo?
— Bem mal, mas tem de enfrentar, né? — resignou-se a professora iniciante.
Aos poucos, a “mandona” de Nova Prata foi ganhando espaço naquilo que mais o professor tem de saber fazer: passar conhecimento, orientar os alunos, apontar caminhos. Isso Genô dominava. Seu palco era a sala de aula.
— Fui aos pouquinhos. E ganhei. Eu sabia dar aula – comemora.
Certo dia, um professor observou da porta de sua sala de aula os estudantes de Genô quietos, atentos nas lições que ela passava no quadro.
— O que tu fazes para eles ficarem quietos? — questionou.
Um dos segredos da professora era tocar na emoção dos alunos. Certo dia, queria explicar as conquistas napoleônicas que marcaram a expansão do império após a consolidação da Revolução Francesa. Genô inventou: havia de ser uma aula épica. Pediu a um aluno que buscasse a eletrola e levou um disco de Tchaikovsky. Em seguida, mandou os alunos fecharem os olhos. Ordenou:
— Escutem bem. Ouçam os cascos dos cavalos batendo no solo. É a retirada napoleônica. Imaginem o desespero de Napoleão Bonaparte, o homem que se considerava o dono do mundo. Quando ele olhou para trás, não tinha mais ninguém em seu exército.
— Conquistei a gurizada — celebra.
Encerrada a música, ela concluiu:
— O resto, vocês leem nos livros para ver o que Napoleão fez.
Outro dia, coube a Genô a disciplina de Moral e Cívica. Eram tempos de ditadura militar. Primeiro dia de aula:
— Só peço que prestem atenção nessa aula. Nas outras, se quiserem gazear, tudo bem. Mas essa é especial. Quem assistir, não precisa vir mais, combinado? Alguém quer sair porque não vai colaborar comigo?
Os alunos arregalaram os olhos. Ninguém se levantou. Ela então escreveu no quadro: “Aula de Moral e Cívica”.
E puxou uma flecha com o giz, explicando a avaliação: “Cinco pontos pela atenção em aula”.
— Vocês sabem o que é prestar atenção em aula? — questionou, já emendando a resposta: — É participar e colaborar. Vocês sabem o que é participar? Não é abrir a boca para dizer meia dúzia de besteiras. Até aqui é metade da nota. Você pode passar de ano só fazendo isso. Dos outros cinco pontos, dois são um trabalho, e três, uma provinha. Deu certo, ela vibra hoje.
Depois de dar aulas de Geografia, História e Moral e Cívica (de 1969 a 1980), Genô foi orientadora educacional de 1974 a 2006 e, nos últimos anos, atua como agente de Pastoral Escolar do Colégio Marista Rosário. Foi um caminho natural passar para a orientação educacional, ou tornar-se a Tia do SOE (Serviço de Orientação Educacional), como muitos alunos chamavam. Nem sempre é fácil. Certo dia, chegou à sala de aula para dar as boas vindas aos estudantes no início do ano letivo, e um menino no canto falou:
— Ô, velha, pensei que tinha morrido.
Genô respondeu rápido:
— Como eu não te vi no meu velório, vim te visitar.
Gargalhada na sala, vermelhidão no rosto do aluno. Dois dias depois, ele a procurou para pedir desculpas.
É assim, com uma pitada de ironia, outra de carinho, que busca o equilíbrio. Segundo Genoveva, os adolescentes estão carentes de exemplos.
— Não faço injustiça. Isso, não! — diz.
Pelos corredores por onde pisaram Luis Fernando Verissimo, Moacyr Scliar, Patrícia Poeta, Sergio Faraco, Lauro Quadros e Fernanda Lima, Genô percebe a diferença entre alunos do presente e do passado: a brincadeira de corre-corre em torno da estátua de Marcelino Champagnat foi substituída por uma imagem que mostra estudantes sentados ao chão, recostados na parede, de olho no celular. Novidades tecnológicas surpreendem a professora. Embora reconheça as necessidades de mudança na educação, ela olha com desconfiança para a novíssima sala da artes do colégio. Com 341 metros quadrados, o ambiente proporciona uma atmosfera para a construção de conhecimentos e de estímulo ao pensamento criativo. A sala conta com recursos audiovisuais para atender até três turmas simultaneamente. O design favorece as relações humanas.
— Um professor fala lá do outro lado, o outro não ouve daqui — brinca Genô.
Pais que estudaram no colégio vão conversar com a antiga professora. Um menino, cada vez que viaja com a família, traz um presente para ela.
— Profe, meu pai te mandou um abraço — diz ele.
— Ah, que bom. Diz pra ele que tu não te comportas — responde Genô.
— Profe, não fala isso para meu pai — pede o menino.
Genô concorda. Mas confidencia para o repórter:
— O pai dele era idêntico.
Não é incomum vê-la em busca dos filhos dos filhos dos quais foi professora. Um a um, observa, busca nos rostos traços daqueles que um dia, quem sabe, foram parar na Tia do SOE. Já passou por momentos dos quais não lembra. Como a tarde em que bateu à porta da sala 202 para buscar um aluno. A tia dele havia falecido. Como explicar para o garoto? Genô adocicou as palavras.
— Tua mãe quer falar contigo.
Vinte anos depois, hoje jornalista, voltei para escrever esta reportagem. E agradecer: na dedicatória na folha de rosto do livro, no qual escrevi: “Genô, obrigado por ter ajudado a me tornar o homem que sou”.