Depois de crescimento acima da média em 2022, as expectativas já eram de ajuste para as exportações calçadistas em 2023. No entanto, os cenários econômicos de Argentina e Estados Unidos — países que, juntos, somam mais de 40% dos embarques nacionais — e o regresso da concorrência dos produtos asiáticos no mercado interno ampliaram as dificuldades.
Segundo relatório da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), no encerramento do período, o saldo entre vendas e importações apontou queda de 23%, com retração de 10,8% nas receitas, que somaram US$ 1,16 bilhão, e de 16,6% em volume, com 118,34 milhões de pares embarcados.
Principal Estado produtor, o Rio Grande do Sul tem nesse setor o equivalente a 8% de sua indústria de transformação. É o dobro da representatividade das demais unidades da Federação. O nível de participação do segmento também fez com que os reflexos da conjuntura internacional batessem forte por aqui, onde a retração foi de 13,5%, enquanto o Ceará, segundo maior fabricante nacional, registrou alta de 20,2%.
A explicação, conforme a economista e diretora de inteligência da Abicalçados, Priscila Link, começa pela comparação com um ano anterior de resultado acima do normal e é complementada por rescaldos da contração na China, ainda bastante focada em seu próprio mercado interno, e pelo custo dos fretes — acima dos praticados antes da pandemia e que limitaram a competitividade das vendas externas nacionais.
— Com isso, o Brasil ganhou muito mercado em ritmo insustentável. Agora, o desaquecimento dos Estados Unidos, com a economia freada pela maior taxa de juro em 22 anos, implementada para conter a inflação, afetou o consumo de calçados — resume Priscila.
Por um lado, o Brasil sofreu esses reflexos da baixa demanda e, de outro, enfrentou os impactos da retomada dos produtos chineses em 2023, imbatíveis no quesito preço.
Vizinho em apuros
Diante do cenário, o setor calçadista brasileiro reduziu em mais de 40% ao longo do ano as vendas para o principal parceiro comercial, os Estados Unidos. Pela regra: quando as exportações caem mais do que a média de consumo do país de destino, o resultado é a perda de participação nesse mercado.
O tombo foi compensado em parte pelo segundo principal comprador, a Argentina, que mesmo em crise assumiu o topo do ranking das vendas brasileiras. No entanto, Priscila informa que no último trimestre o desequilíbrio cambial no país vizinho foi acentuado e, mesmo que a pauta comercial calçadista seja pulverizada, com produtos nacionais presentes em mais de 170 países, o baque nos dois grandes consumidores é de difícil compensação.
De forma geral, afirma a economista, há um processo de desaceleração da economia internacional, que também freia a entrada em mercados alternativos e emergentes. De fato, entre os 10 principais compradores dos calçados brasileiros, apenas o Equador e a Espanha fecharam o ano com balanço positivo.
Estratégias para retomada
Demarcar território
Com 10% das exportações concentradas na Argentina, a Pegada, de Dois Irmãos, aposta na estratégia de fixar a marca fora do país e da América Latina.
A empresa se encaminha para consolidar em 20% (15% em 2024) a fatia da produção destinada às vendas externas, enquanto a média do setor é de 12%. A meta é perseguida com um planejamento que, conforme Alex Engelmann, gerente de negócios internacionais, permite absorver melhor as oscilações:
— Esses números são reflexo da opção de não exportar um par sequer com marca que não seja a nossa. É um trabalho de afirmação da marca em 60 países de forma ativa, mas com presença em 90.
O executivo explica que, para isso, o modelo de negócios do mercado interno é replicado fora do país. Assim, além de parceiros de distribuição existem canais administrados pelo grupo na Holanda, nos Estados Unidos e no Canadá, onde no ano passado foi inaugurada uma das quatro lojas internacionais da marca.
Os locais, afirma, são pensados estrategicamente para facilitar o acesso aos produtos. A estimativa é fechar 2024 com mais quatro pontos de venda fora do Brasil. Segundo ele, isso dá mais estabilidade contra os solavancos internacionais, compensados com a segurança do mercado interno. Por outro lado, Engelmann percebe um momento crítico para o setor:
— Sim, existe uma concorrência absurda dos produtos importados que têm a entrada liberada no Brasil, sem a mesma exigência legal e de boas práticas que é o padrão da indústria nacional. Nossas empresas são reguladas e norteadas por uma preocupação com a sustentabilidade, enquanto parte das calçadistas asiáticas não praticam a mesma filosofia.
Exclusividade para concorrer com preços asiáticos
Diretor da Boaonda, de Sapiranga, Cássio Romani acompanhou os primeiros passos da transição da empresa de matrizes para a indústria de calçado acabado. Presente em 25 países, a fabricante tem como uma de suas apostas ganhar terreno no mercado dos Estados Unidos.
Para isso, desde terça-feira (16), a marca participa de uma feira em Atlanta. Apesar da desaceleração da economia norte-americana, a Boaonda desenvolve um produto exclusivo para o mercado.
Com lançamento previsto para o primeiro semestre, a nova peça visa ampliar o portfólio da marca e entrar na disputa por um nicho hoje dominado por empresas asiáticas, buscando um diferencial competitivo nos produtos em EVA, com um solado tecnológico, diz Romani:
— A meta é entregar um material específico, que nasce da observação da nossa equipe nos Estados Unidos, e permite fugir um pouco da competição desleal de custos na relação com os produtos da Ásia.