Pensada como peça-chave para colocar o Brasil no mapa mundial da microeletrônica, a Ceitec está no centro do debate sobre o futuro do segmento no país nos próximos anos. O governo federal decidiu liquidar a empresa pública de semicondutores sediada na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, por causa dos seus custos ao Tesouro, mas a medida gera apreensão na área de tecnologia e entre entidades ligadas à pesquisa e ao desenvolvimento. Mesmo com sinalização da criação de uma organização social (OS), para preservar ao menos parte das atividades e o patrimônio intelectual, pairam dúvidas sobre a efetividade da medida voltada a estacar prejuízos milionários.
Diretor-técnico da Ceitec antes da federalização e professor de microeletrônica da UFRGS, Sergio Bampi destaca que a maneira como o processo será conduzido, pelo governo federal, determinará se haverá ou não prejuízos com a mudança de estatal para OS. Neste sentido, Bampi nota posturas divergentes entre ministérios da Economia e de Ciência, Tecnologia e Inovações. Enquanto o primeiro teria pressa em extinguir a empresa, o segundo tenta atenuar os efeitos dessa decisão por meio da OS.
– A liquidação imediata sem maiores cuidados, que seria a opção da área econômica do governo, causaria um retrocesso irreversível. Se os movimentos de liquidação e criação da OS forem feitos com cautela e responsabilidade, o resultado é outro – pondera.
Bampi sugere que, além de absorver quadro de profissionais, patentes geradas e todo capital intelectual, a OS mantenha a sala limpa, onde a concentração de partículas em suspensão no ar é controlada. Considerado o coração da fábrica de chips, o local é mantido ligado e, caso seja descontinuado, tende a se deteriorar rapidamente.
O cenário de incertezas ainda pode acelerar a perda de profissionais qualificados que atuam na Capital, na avaliação de Ricardo Reis, professor de microeletrônica da UFRGS. Atualmente, são cerca de 200 trabalhadores, incluindo 40 mestres, 10 doutores e três pósdoutores. Reis lembra que a Ceitec sempre foi celeiro de talentos e muitos especialistas que passaram pela estatal hoje atuam em gigantes internacionais ou desenvolveram suas próprias empresas.
– Essa situação preocupa muito. Certamente muitas dessas pessoas estarão mais propensas a aceitarem propostas do Exterior – constata Reis.
O professor ainda lembra que a empresa teve papel importante para a consolidar a produção acadêmica. Hoje, as universidades gaúchas respondem por cerca de 90% dos artigos brasileiros em publicações científicas da área.
Após o secretário de Desestatização e Desinvestimento do governo federal, Salim Mattar, confirmar a liquidação da estatal “que só onerava o cidadão pagador de impostos” e “registrava sucessivos prejuízos”, nas últimas semanas a comunidade acadêmica e dirigentes de entidades e empresas na área da tecnologia no Brasil vêm se mobilizando para evitar a perda do legado da Ceitec.
O governo do Estado também passou a intervir junto a Brasília e recebeu a sinalização do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações de que a sede da OS deverá ser mantida em Porto Alegre.
– O ideal é preservar as instalações e a equipe de trabalho da OS em Porto Alegre, até porque no Rio Grande do Sul acabou se consolidando um polo de eletrônica, automação e tecnologia da informação – aponta Luís Lamb, secretário estadual de Ciência, Inovação e Tecnologia.
O presidente do conselho de administração da Ceitec, Ronald Krummenauer, acredita que a mobilização gerada pelo anúncio da liquidação da estatal veio de forma tardia, já que desde o ano passado o governo federal manifestava a intenção em desfazer da estatal. Ainda assim, Krummenauer ressalta que o parecer do conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) favorável à liquidação da Ceitec sinaliza com a possibilidade de venda parcial ou total durante o processo de liquidação.
– Não dá para descartar que alguma empresa se interesse em comprar a fábrica ou parte dela. A qualquer tempo isso pode acontecer, não há nada que impeça – aponta.
A estimativa é de que o início da liquidação comece apenas em agosto, após um decreto presidencial.
Dependente de repasses federais
Desde 2009, quando se tornou estatal, a Ceitec acumula prejuízos sucessivos em balanços financeiros. No ano passado, a receita com a venda de produtos foi de R$ 7,8 milhões, enquanto as despesas operacionais atingiram aproximadamente R$ 81 milhões e o prejuízo líquido chegou a R$ 12 milhões. Em 11 anos, em valores nominais, o Tesouro aportou R$ 907 milhões na empresa, principal justificativa para a liquidação.
Mesmo gerando capital intelectual e tendo realizado projetos de reconhecimento internacional, a empresa se mostrou “inviável” como negócio. Essa é avaliação do diretor da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) no RS, Régis Haubert.
O dirigente acredita que, com maquinário defasado, a empresa não consegue competir:
– Não adianta levar anos para desenvolver um chip que, quando tu lançares, já estará obsoleto. O chip do boi ou o do passaporte são tecnologias que os asiáticos já fazem com 10% do nosso custo.
Vice-presidente do Instituto de Estudos Empresariais (IEE), Gabriel Picavêa Torres ressalta que, para apresentar resultados à população, o governo federal tem de apresentar “contas em dia”. Como o país amarga dificuldades no orçamento, são necessários avanços na agenda de reformas e nas privatizações de estatais:
– Para termos políticas públicas de qualidade, é preciso fazer reformas e privatizações de empresas que drenam recursos do caixa do governo. Se olharmos pela ótica das prioridades, parece não fazer muito sentido ter uma empresa para produzir chip para gado.
Entidades se posicionaram contra a extinção, afirmando que a Ceitec não pode ser analisada só pelo prisma contábil. A Associação Brasileira da Indústria de Semicondutores (Abisemi) manifestou que “a liquidação distanciará ainda mais o Brasil do conhecimento de ponta necessário ao desenvolvimento de produtos de alta tecnologia e diminuirá as chances para que possamos reduzir a enorme dependência de importados.”
A Sociedade Brasileira de Computação (SBC) avalia que a liquidação vai na direção oposta de países como EUA e China, que vêm investindo em fábricas e profissionais na área de circuitos integrados. “A decisão meramente econômica de que a Ceitec é uma empresa deficitária desconsidera o ecossistema de tecnologia avançada que proporciona ao país e despreza o fato de que a empresa nem teve sua instalação totalmente concluída”, aponta nota da SBC.
Chamariz para investimentos de fora
A Ceitec foi decisiva para atrair investimentos estrangeiros para o Rio Grande do Sul e fomentar o surgimento de diversos negócios ligados à microeletrônica no país. Um caso emblemáticos é o da HT Micron, hoje uma das principais fabricantes de semicondutores do Brasil, com sede em São Leopoldo. A companhia surgiu a partir de joint venture com a sul-coreana Hana Micron, em 2009.
– Sem Ceitec provavelmente não haveria HT Micron. Essas indústrias trabalham em sistema de cluster, com a formação de uma série de negócios em torno de um mesmo lugar – aponta Edelweis Ritt, diretora de relações institucionais e parcerias estratégicas da HT Micron.
Hoje, a empresa gaúcha gera mais de 200 empregos diretos e tem faturamento anual na faixa dos US$ 100 milhões (mais de R$ 530 milhões, na cotação atual da moeda norte-americana).
A companhia atende as principais indústrias de computadores, smart TVs e celulares no país e lançou no ano passado o primeiro chip para internet das coisas (IoT) feito inteiramente no Brasil.