SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Pela primeira vez após fugir do Japão para o Líbano, Carlos Ghosn, ex-presidente da Nissan e da Renault, se defendeu publicamente, nesta quarta-feira (8), das acusações feitas pela Justiça japonesa. Em entrevista coletiva em Beirute, que durou mais de duas horas, ele afirmou que as acusações são fantasiosas.
Ele se esquivou, porém, de todas as perguntas sobre como foi sua fuga do país para o Líbano. Ghosn tem cidadania brasileira, francesa e libanesa.
A viagem que, segundo diversos veículos de imprensa, envolveu uma viagem de trem até o aeroporto de Osaka e dois trechos de avião até a chegada a Beirute, é tratada como uma fuga cinematográfica. Ghosn teria se escondido em uma caixa de instrumentos musicais.
Na coletiva, o executivo afirmou que a fuga do Japão foi a decisão mais difícil de sua vida, mas que estava sofrendo com as leis japonesas.
"Eu não fugi da Justiça. Eu não tinha escolha, eu tinha que me proteger e proteger a minha família", afirmou.
Questionado sobre a posição do Brasil sobre sua situação, Ghosn disse que esperava uma "ajuda maior do governo brasileiro".
O ex-presidente da Nissan disse que escolheu o Líbano por questões de logística. Ao ser perguntado sobre o motivo por não ir para o Brasil, continuou sustentando o argumento: "O problema é que para sair do Japão e ir para o Brasil, é preciso parar em algum lugar. Eu não vou mais fazer comentários sobre isso", afirmou.
Questionado sobre o alerta vermelho da Interpol, ele reforçou que, no Líbano, ele não está sob risco. Para deixar o país, porém, precisaria antes recorrer à Interpol contra o alerta. Ghosn disse ainda não ter qualquer garantia do governo libanês de que não será extraditado para o Japão.
Ele afirmou ainda que era um alvo fácil da Justiça japonesa, mas que não tinha mágoas do país no qual viveu por 17 anos. "Eu era um alvo fácil, estava na Renault e eu era estrangeiro", disse. "Muita gente vai dizer que 'ele fugiu porque ele é culpado', é fácil."
Durante sua apresentação, em que apresentou documentos que refutariam as acusações que sofre, ele criticou as leis japonesas e rebateu uma questão de um jornalista que perguntou se ele não se importava de quebrar as leis japonesas. "Obviamente quebrar a lei no Japão é um problema. Mas procuradores quebraram 10 leis no Japão e ninguém se importou", disse sobre sua fuga.
"É muito cedo para falar de um retorno [para a indústria automotiva]. Preciso ganhar mais força e passar mais tempo com a minha família e meus amigos. Por enquanto eu não tenho planos, não significa que eu não vá ter mais para frente".
ENTENDA
Carlos Ghosn destacou-se por ter criado um império no segmento, com a aliança Renault-Nissan-Mitsubishi. Em 2016, ele era um dos executivos mais bem pagos entre as companhias japonesas, tendo recebido só da Nissan R$ 33,4 milhões.
Tudo caminhava bem para ele até que em 19 de novembro de 2018, o executivo, que nasceu no Brasil e tem também nacionalidades libanesa e francesa, foi preso no Japão por supostas violações financeiras que envolveriam sonegação fiscal e uso de ativos da companhia japonesa para fins pessoais.
Ghosn, então presidente do conselho da Nissan, e outro diretor da montadora, Greg Kelly, foram alvos de uma investigação interna por meses, segundo nota divulgada pela companhia à época das prisões.
O ex-chefe das montadoras, no entanto, sempre negou as acusações movidas contra ele pelos promotores da Justiça japonesa.
ABUSOS FINANCEIROS
Após sua detenção, começaram a pipocar na imprensa possíveis abusos do chefe da Nissan. Uma delas foi publicada pelo jornal Nikkei, já um dia após a prisão de Ghosn. Ele teria gasto US$ 18 milhões de uma subsidiária da Nissan em imóveis de luxo no Rio de Janeiro e em Beirute.
De acordo com a publicação japonesa, as transações teriam sido feitas a partir de uma companhia estabelecida na Holanda, criada em 2010 com objetivo oficial de financiamento a startups.
O jornal americano The Wall Street Journal também abordou o tema, acrescentando que a empresa na Holanda teria sido utilizada ainda para realizar múltiplos pagamentos à irmã mais velha de Ghosn, por trabalhos de consultoria.
Em um caso, ela teria recebido uma comissão de US$ 60 mil por assessoria sobre habitação no Rio de Janeiro, mas a Nissan não encontrou provas de que a irmã dele tivesse de fato executado o trabalho, segundo o jornal.
Já a publicação japonesa Asahi Shimbun informou à época que o ex-presidente do conselho da Nissan teria transferido perdas sofridas em investimentos particulares durante a crise financeira de 2008 para a montadora, evitando prejuízo pessoal de milhões de dólares.
Citando múltiplas fontes não identificadas, o jornal disse que o executivo repassou prejuízo de US$ 15 milhões para a empresa japonesa por meio de uma operação financeira quando foi cobrado por um banco.
O jornal britânico Financial Times chegou a publicar um texto em que relatava que a Nissan suspeitava das relações de Ghosn com políticos e empresários brasileiros acusados de receber propinas, como Eike Batista. Para a marca japonesa, isso poderia ser um indicativo de condutas inapropriadas de seu ex-comandante.
A Nissan afirmou também que Ghosn declarou remuneração pessoal inferior à real, e dois relatórios financeiros identificam que ele deixou de declarar mais de US$ 80 milhões em remuneração postergada.
No fim de dezembro, uma acusação da promotoria japonesa afirmava que o executivo teria transferido um total de US$ 14,7 milhões da conta de uma empresa afiliada da Nissan para a conta de um conhecido residente na Arábia Saudita. As supostas transferências ilícitas teriam acontecido entre junho de 2009 e marco de 2012.
Não bastasse essas denúncias, a Renault informou em fevereiro de 2019 que a Procuradoria de Nanterre, na França, havia iniciado uma investigação sobre o financiamento do casamento de Carlos Ghosn no castelo de Versalhes, em outubro de 2016.
Carlos Ghosn teria usado um acordo da montadora francesa com os gestores do castelo de Versalhes para financiar em parte seu casamento, celebrado no local.
Segundo a Renault, um pacto firmado em junho de 2016 previa um patrocínio de 2,3 milhões (R$ 10,3 milhões) para a restauração de um dos salões do castelo do século 17. A contrapartida para a firma poderia se elevar a até 25% desse montante.
Em outubro daquele ano, a Renault reservou o Grande Trianon, uma das construções do complexo de Versalhes, para um jantar, que, sabe-se agora, comemorava o segundo casamento de Ghosn. O valor do aluguel do espaço é de 50 mil (R$ 225 mil).
Também em auditoria feita pela companhia francesa e divulgada em junho do ano passado foi concluído que o ex-diretor-geral da aliança Renault-Nissan deixou de justificar 11 milhões (R$ 49,5 milhões) em gastos à frente da joint venture entre as montadoras francesa e japonesa.
O levantamento elenca despesas ligadas a viagens pessoais do executivo (em aviões da companhia), a compra de um relógio de marca de luxo, idas ao Festival de Cannes, realizado em um dos balneários mais sofisticados (e caros) da Côte dAzur. Há ainda doações a entidades sem fim lucrativo cujo propósito não está claro.
Esse estilo de vida luxuoso levado por Ghosn teria sido o estopim para a frustração e descontentamento que vinham se acumulando há muito tempo na Nissan em relação ao executivo, segundo o jornal The Wall Street Journal.
DESTITUIÇÃO
No período em que esteve preso e em que surgiram as denúncias, Carlos Ghosn perdeu o comando do conselho de administração da Nissan, foi demitido do colegiado da Mitsubishi e renunciou voluntariamente à direção da Renault.
Ghosn sempre negou as acusações movidas contra ele, alegando perseguição por parte da Justiça japonesa.
A família do ex-chefe das montadoras chegou a pleitear ao governo brasileiro uma defesa mais veemente junto ao governo do Japão em prol da sua libertação, uma vez que Ghosn nasceu em Rondônia e tem cidadania brasileira.
Ghosn pagou uma fiança de R$ 33 milhões em março do ano passado, após 100 dias de detenção em Tóquio, mas voltou a ser preso semanas depois. Após pagar uma nova fiança, dessa vez de R$ 18 milhões, o ex-chefe das montadoras foi solto em abril, mas em condições estritas.
Ele teria que permanecer em prisão domiciliar, proibido de deixar o Japão e também só poderia ver sua esposa se o tribunal aprovasse uma solicitação.
Tais restrições levaram sua mulher, Carole Ghosn, a escrever um artigo no jornal The Washington Post questionando as leis japoneses. Ela também entrou em contato com líderes mundiais que se reuniram no Japão para a cúpula do G20, em junho.
Carole recorreu ao presidente americano, Donald Trump, e o presidente francês, Emmanuel Macron, a cobrarem o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, pelo que ela várias vezes chamou de sistema judiciário sequestrador do país.
No fim de 2019, a justiça japonesa teria dado a Ghosn o que ele considerou um insulto duplo no Natal. Primeiro, negou seu pedido de ter contato com a esposa durante as festas de final de ano. E em uma audiência no dia de Natal, ele presumiu que o tribunal estava propositadamente atrasando o julgamento, levando-o a temer que este não ocorreria antes de 2021.
FUGA
Ao fugir para o Líbano, Carlos Ghosn disse ter se libertado do que chamou de injustiça e perseguição política no Japão.
"Não sou mais refém de um sistema judicial japonês tendencioso, onde prevalece a presunção de culpa, a discriminação é generalizada e os direitos humanos são violados, em total desrespeito às leis e tratados internacionais", disse.
P
ara escapar do monitoramento japonês, o executivo realizou uma fuga muito bem arquitetada. Um rede de TV libanesa chegou a dizer que Ghosn escapou após se esconder em uma caixa de instrumentos musicais. A versão, porém, foi negada por pessoas próximas a ele.
Segundo o jornal Financial Times, uma explicação é que ele tenha contratado uma empresa de segurança privada para ajudá-lo a passar pela vigilância policial.
Junichiro Hironaka, que lidera a equipe de advogados de Ghosn no Japão, disse que o voo para o Líbano apareceu do nada. Uma grande organização deve ter agido para colocar isso em ação, afirmou.
De acordo com o jornal Wall Street Journal, a fuga de Ghosn ocorreu depois de semanas de planejamento por parte de colaboradores que pretendiam levar o ex-executivo do setor automotivo para um país que acreditassem oferecer um ambiente jurídico mais favorável para julgar as alegações de irregularidades financeiras contra ele.
Ghosn foi levado de sua residência monitorada pela Justiça em Tóquio para um jato particular, com destino à Turquia. Ele continuou de avião para o Líbano, aterrissando no país na manhã de segunda-feira (30).
Segundo a agência Reuters, o executivo teria se encontrado com o presidente do Líbano, Michel Aoun. O governo libanês, porém, nega o encontro.
Uma nota do governo do Líbano à imprensa confirma a entrada de Ghosn no país com o passaporte francês. A Direção Geral de Segurança do Líbano disse que, por ter documentação legal, não havia razão para tomar qualquer medida contra ele, segundo a agência de notícias estatal NNA.
Ghosn está no Líbano com sua esposa em uma casa da família, que possui um sistema de monitoramento. O executivo nega que eles tenham participado da fuga do Japão.
"Houve especulações na mídia de que minha esposa Carole e outros membros da minha família tiveram um papel importante na minha saída do Japão. Todas essas especulações são imprecisas e falsas", disse Carlos Ghosn em comunicado.
O ministro libanês da Justiça, Albert Sarhane, anunciou nesta quinta-feira (2) que o país recebeu um pedido de prisão da Interpol contra o executivo.