Há quem acredite que a tradição do baile de debutante ficou restrita ao passado e às novelas de época, ou classifique esse ritual de passagem como cafona. As 65 garotas que debutaram em um dos clubes mais tradicionais de Porto Alegre, na noite de 5 de outubro, parecem discordar.
Segundo a adolescente Martina Feldmann Graeff, de 14 anos, colocar o vestido de gala branco, descer os degraus decorados com flores da Associação Leopoldina Juvenil, ao som da sua música favorita, para depois valsar com o pai, o par e os convidados é uma experiência mágica, daquelas poucas que a gente acumula na vida. E engana-se quem pensa que estava lá por influência da família: decidiu debutar sem insistência da mãe e, inclusive, indo contra a opinião das amigas mais próximas, que não curtem a ideia da “noite de princesa”.
— Sempre imaginei os meus 15 anos como um momento do début e, agora que passou, debutaria mais umas 10 vezes. Parecia que todos os meus problemas tinham sumido e que aquele era realmente o meu dia, de receber flores, de comer o que quisesse, ir ao cabeleireiro. Foi um dia muito meu, em que não estava me preocupando muito com os outros — relata a jovem.
Se em suas origens a ideia dos bailes era introduzir as meninas à sociedade e começar a cotar possíveis pretendentes, a festa hoje em dia parece ter outras nuances. A tônica do baile, para a debutante de 15 anos Martina Merkusons Marchiori, é a autorrealização e a criação de laços entre garotas – afinal, não é todo dia que se tem a oportunidade de estar num grupo feminino tão numeroso.
Questionada se essa festa ainda tem alguma pretensão de “buscar namorado”, Martina rejeita a ideia:
— Não tem nada a ver com isso, agora é só a gente curtindo e prestando atenção às nossas amizades. O dia do début é um dia para focar em si mesma. Não é proibido chamar o namorado como par, ou ficar com alguém no début, mas o foco está muito mais em se divertir com as amigas.
A mãe da menina, Juliana Leal Merkusons, 49 anos, que também foi debutante em 1990, no Porto Alegre Country Club, complementa:
— Quando Martina desceu as escadas, pensei nessa ideia de “apresentar sua filha à sociedade” de antigamente, mas a sensação que tive, na verdade, é de que ela estava desbravando, voando com as próprias asas. E depois, quando elas se juntaram no meio da pista para dançar, foi a coisa mais linda, 65 meninas dançando animadíssimas, não estavam nem aí se tinha algum guri na volta ou não. Hoje as mulheres estão interagindo e curtindo mais entre elas.
Longevidade
Em quase 15 anos no comando do début do Juvenil, Lucia Dias Machado, 71 anos, garante que nunca realizou uma festa com menos de 40 inscritas. Neste ano, trabalhou para que a 70ª edição do baile tivesse diferenciais como a presença de um quarteto de cordas e cinco pares de bailarinos, que fizeram performances inspiradas na série Bridgerton, da Netflix. A diretora social também organizou duas pistas de dança com diferentes DJs, uma para a balada jovem e outra para o baile mais tradicional, focado nos familiares.
Para ela, o segredo da longevidade desta tradição está em prestar atenção ao que as jovens estão pedindo para entrar em sincronia com as demandas:
— Ensinar uma menina de 15 anos a ter “X” comportamento, não é por aí hoje em dia. Quem chega para debutar já tem sua história, suas experiências com a família, sabe se portar. Então, o que procuro fazer é criar oportunidades para que elas deem continuidade às amizades depois que termina o début, porque é isso que fica, as relações que se formam ao longo do ano em nossos “encontrinhos”.
De corrida de kart à viagem para o Beto Carrero, passando por jantares, oficinas, aulas de defesa pessoal e inauguração de lojas, foram cerca de 35 “encontrinhos” desde março, relembra Martina Feldmann Graeff.
A perspectiva de se reunir com o grupo de garotas durante alguns dias servia de combustível para encarar a semana de aulas no Ensino Médio. Ela acredita que as atividades pré-début ajudaram a criar uma rede de amigas que vai se manter:
— Passamos um tempo juntas muito legal. Hoje mesmo estava com as amigas que formei no début. Foi uma experiência muito variada, num dia a gente aprendeu a fazer perfume, no outro fizemos uma gincana, uma viagem. Não ficou naquela coisa só de “gala” e “etiqueta à mesa”, também teve coisas que a gente realmente gosta.
Aos olhos da mãe, Júlia Feldmann Graeff, 43 anos, a filha desabrochou instigada pelas experiências junto das outras adolescentes e na interação com os pares e as madrinhas:
— Vi ela se transformando, se soltando, se experimentando e adquirindo mais confiança, aprendendo a se relacionar de uma forma que considerei positiva. Não é uma coisa fútil, é sobre crescimento. Ela fez muitas amizades que talvez não teria tido a oportunidade de fazer se não tivesse participado.
Importada e redesenhada
A tradição dos bailes de debutantes começou no século 18, na corte britânica. Como bem descritos na literatura inglesa, em obras como Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, e mais tarde pelas irmãs Brontë, eram rituais frequentados pela elite que permitiam a integração das meninas bem-nascidas – cujas famílias tinham posses – à sociedade e sua apresentação a possíveis pretendentes, visando um bom casamento.
Na maioria dos casos, seus vestidos brancos, longas luvas e tiaras brilhantes tinham o propósito de solucionar o problema da herança, já que, por lei, as mulheres não tinham direito a serem herdeiras das posses da família, explica Gisela Castro, pós-doutora em Sociologia pelo Goldsmiths College e professora do doutorado em Comunicação e Consumo da ESPM-SP. Quem não debutava, por sua vez, geralmente pertencia a uma família muito despossuída e não era considerado uma boa união.
— Era um drama horrível para as mulheres. Como era o homem quem herdava, quando o patriarca morria a viúva tinha que ir embora e suas filhas ficavam à míngua. Era preciso casar bem a filha para que o genro herdasse os bens e elas pudessem permanecer na casa. Fazer um bom casamento era a primeira e principal função dos bailes de debutante. Anos depois, foram os clubes privados que mantiveram esses bailes, de forma que não é uma apresentação à sociedade como um todo, mas aos sócios, há um recorte social — descreve Gisela.
O baile de debutantes se transformou num evento muito fortemente capturado pelas lógicas de consumo
GISELA CASTRO
Pesquisadora
A pompa dos bailes de 15 anos foi importada para o Brasil em meados do século 20. Trouxe consigo as mesmas particularidades das celebrações europeias, o glamour, os vestidos, o foco na apresentação à sociedade e nos bons relacionamentos entre quem detém mais poder aquisitivo. Nas décadas de 1980 e 1990, muitos galãs da Globo como Edson Celulari, Maurício Mattar e Tony Ramos eram contratados para dançar a valsa com as debutantes e atuar como príncipes por um dia.
Com o passar do tempo, o ritual também ganhou novas características que, segundo a socióloga, ajudam a explicar por que a tradição perdura em pleno 2024, ainda que possa parecer incompatível com um contexto em que as mulheres estão inseridas no mercado de trabalho e têm direitos cada vez mais equilibrados com os dos homens. De acordo com Gisela, os bailes aprenderam a falar a língua da sociedade de consumo:
— Era algo mais social e se tornou algo mais comercial. O baile de debutantes se transformou num evento muito fortemente capturado pelas lógicas de consumo, naquilo que chamamos de “consumo de experiência”, é dessa forma que conseguiu sobreviver. Hoje, a menina e sua família já não veem a apresentação à sociedade como algo tão importante, mas que talvez seja legal ter a experiência e se sentir bem por realizar esse “sonho de menina”.
Uma lógica semelhante tem se aplicado aos casamentos, que atualmente contam com vários eventos ao longo do ano antes da data oficial – pense no dia de spa das madrinhas, nas despedidas de solteiro, nos chás de panela, nos ensaios, brunchs e jantares pré-cerimônia. É todo um pacote de vivências que culmina no grande dia. No début, a depender de quanto cada família estiver disposta a investir na experiência completa, também há viagens, aulas, jantares e reuniões meses antes do festão.
— O pacote que inclui viagens e ênfase na sororidade pode parecer menos careta. Hoje há mais variedade. O que antes era um imperativo social tornou-se uma experiência oferecida para consumo. Debutante não tem mais a função de passar a mensagem de que a menina está iniciando a vida social, muitas já estão inseridas antes dos 15 anos. Ainda é uma forma de visibilidade numa cultura em que somos instados a postar e publicizar tudo que fazemos. Um baile de debutantes é muito instagramável — conclui a pesquisadora.