Em um tempo nem tão distante, saber costurar, fazer um belo bordado em ponto-cruz e criar acessórios em crochê para a casa eram predicados de uma “moça prendada”, a tal “mulher para casar”. Depois, com o passar dos anos e a crescente emancipação feminina, houve quem atribuísse tais artes ao passado, sem espaço para existirem no mundo moderno. A atualidade prova o contrário.
Nas redes sociais, há diversas mulheres compartilhando seus processos criativos e os produtos que conseguem fazer resgatando técnicas manuais ancestrais – são roupas, decorações, brinquedos e uma infinidade de outras possibilidades. No Instagram da crocheteira Marina Pires da Rosa, 28 anos, por exemplo, a trend do “arrume-se comigo” virou “faça uma roupa de crochê comigo”, em vídeos que mostram desde a escolha da linha até a confecção de um cropped de mangas longas ou um casaco de franjas moderníssimo, inspirado nos looks da cantora Taylor Swift.
A assistente de marketing conheceu o crochê por meio de uma amiga e colega de trabalho, em 2019, quando as duas aproveitavam o intervalo de almoço para crochetar. A técnica virou um hobby e uma paixão tão grande que, onde quer que Marina vá, leva na bolsa novelo e agulha: a sala de espera do médico e os intervalos da aula se tornaram momentos para relaxar e deixar os dedos se movimentarem, com gestos que ficaram automáticos.
— Nossa geração cresceu com aquela ideia de “você precisa fazer faculdade, depois uma pós-graduação, mestrado, doutorado, curso de alguma língua”, e isso acaba sufocando. As atividades manuais são uma pequena fuga de tudo isso. Para mim, o efeito é parecido com o de um exercício físico: não penso em nada. É lazer, um momento para relaxar e não trazer tanta problemática — explica a artesã de Canoas.
Outro ponto positivo, detalha, é ver o tempo e a dedicação se tornarem algo concreto. Ao invés de passar 10 minutos assistindo a vídeos no TikTok, por exemplo, é recompensador usar o tempo para fazer o tramado crescer a olhos vistos. São objetos reais que servem para vestir, presentear ou, como faz desde fevereiro, vender por encomenda pelo perfil @prosacroche.
Gosto muito de fazer para mim, mas quando faço para outras pessoas é muito bom ver a satisfação de quem diz “meu Deus, nunca imaginei que ia ficar tão bonito assim” e saber que fui eu que fiz. É incrível pegar uma linha e conseguir fazer uma roupa inteira
MARINA PIRES DA ROSA
Assistente de marketing e crocheteira
Uma válvula de escape
A pintura com aquarela tem sido a solução para a advogada Sandy Fernandes, 30 anos, fugir do chamado brainrot ou “apodrecimento do cérebro”, em português. O termo existe há cerca de 20 anos, mas está em alta na internet recentemente, se referindo a uma espécie de deterioração mental causada pelo hábito de estar “cronicamente online” – outra expressão popular entre membros das gerações Z (nascidos a partir de 1995) e Alpha (após 2010).
A ideia é a de que rolar o feed a esmo e gastar tempo consumindo conteúdos sem sentido são hábitos que poderiam prejudicar a capacidade de raciocinar, ter pensamento crítico e tomar decisões.
Hoje em dia existe o termo brainrot e era como andava me sentindo. Às vezes, fico tempo demais no celular, passando pelo Instagram e sentia falta de algo para desconectar disso
SANDY FERNANDES
Advogada
A moradora de Porto Alegre apostou em um workshop de pinceladas em aquarela com a ilustradora Camila Raposa no Criatio Caffè, uma cafeteria e coworking no bairro Rio Branco. Além de diminuir o tempo gasto no ambiente virtual, a atividade tem servido como um espaço na agenda para o autocuidado, um momento para a advogada se divertir sem ter que entregar performance:
— São aulas divertidas e fluídas, não têm pressão para pintarmos algo específico, só pincelamos na folha e vemos o que sai. Sentia necessidade de encontrar um hobby em que pudesse me desligar um pouco do dia a dia e relaxar, sem colocar muita pressão no que estou fazendo. Meu trabalho já demanda certo desempenho, então queria algo em que não precisasse me preocupar com isso.
O mesmo local onde Sandy participa dos workshops também teve, em agosto, oficinas de bordado com a professora Nacha Hernández, uma bordadeira chilena que mora no Brasil há quatro anos e ministra aulas para cerca de 20 alunas na Capital.
Falamos sobre política, sobre ter opinião e raciocínio próprios nos nossos bordados, ao mesmo tempo em que parecemos todas senhorinhas tomando chá
NACHA HERNÁNDEZ
Professora de bordado
Para ela, recuperar artes manuais também é uma forma de contar uma história moderna e de amizade feminina:
— Antigamente a mulher bordava para fazer coisas para casa, ou como passatempo depois que os filhos cresciam. Agora o bordado é uma forma de expressão, de contar a história de quem somos. E tem todo o contexto de um clube do bordado, de estar na companhia de outras pessoas, às vezes tomando uma espumante, um vinho, e se sentindo capaz de criar algo com as mãos. É uma experiência linda.
Nacha aprendeu a bordar com a avó, uma mulher indígena tehuelche, da Patagônia, que fazia bordado de tapeçaria, com todas as regras e o rigor que essa técnica implica. Quando adulta, Nacha se apaixonou pelo estilo do bordado livre e, agora, compartilha seus conhecimentos tanto nas redes (@midulce_atelier) quanto com alunas que, em sua maioria, chegaram até ela à procura de um passatempo terapêutico.
— Misturamos a ancestralidade do bordado tradicional com técnicas da arte contemporânea, mesclando materiais e elementos, sem nos preocuparmos tanto com a perfeição. Também falamos sobre política, sobre ter opinião e raciocínio próprios nos nossos bordados, ao mesmo tempo em que parecemos todas senhorinhas tomando chá — diverte-se a professora.
Tempo de qualidade
Assim como a frase popular que diz que “a diferença entre o veneno e o antídoto está na dose”, a mesma rede social que parece apodrecer a mente também pode servir como inspiração para atividades longe das telas.
Se você frequenta o TikTok ou o Instagram, provavelmente já se deparou com trends que envolvem manualidades. Há uma porção de vídeos de amigas que se reúnem para pintar taças ou fazer cerâmica. Outra moda que viralizou foi a “noite da massinha de modelar”, em que casais fazem um date caseiro no qual cada um tenta moldar a mesma figura – um patinho de borracha, um cogumelo, etc – para ver quem faz mais bonito.
O pessoal está voltando a ter contato com a arte de forma mais lúdica, até como um jeito de se aproximar dos amigos
MARINA PIRES DA ROSA
Assistente de marketing e crocheteira
Para a crocheteira Marina, as redes sociais são fonte de ideias e têm contribuído para uma redescoberta dos benefícios do fazer manual:
— O pessoal está voltando a ter contato com a arte de forma mais lúdica, até como um jeito de se aproximar dos amigos. Por exemplo, ao invés de só ir jantar na casa do amigo, fazer algo a mais como forrar a mesa com papel kraft e pintar com giz de cera em volta dos pratos, uma trend que vi esses dias. As redes sociais influenciam muito porque, às vezes, você vê ideias de coisas que nem imagina que poderia fazer.
No momento em que a designer e barista Renata Steffani Chies saía de casa e a irmã mais nova pensava em fazer o mesmo, matricularam-se junto com a mãe em um curso de cerâmica no ateliê Lebrooks, da ceramista Priscila Andrade. De caso pensado, preencheram o ninho vazio com tempo em família.
— Minha mãe é gerente de restaurante e sempre teve dificuldade de parar, estava sempre comandando as pessoas. Mas parar nesse período e focar só nela e naquela argila a ajudou muito. Faz cerca de três anos que nós fazemos, uma vez por semana. Deixamos as nossas mãos trabalhando e botamos o papo em dia — relata a barista de 28 anos.
Os pratos e xícaras da casa de Renata foram feitos por ela, que neste ano começou a receber encomendas. Já a mãe é fã da confecção de vasos e pratos, que põe à mesa quando recebe amigos. Para elas, o que há de mais especial na arte da cerâmica é o poder de concretizar algo que veio da mente.
Pegamos algo quase insignificante, que é o barro, e ele se torna algo bonito e sincero. Quando damos as peças de presente, as pessoas ficam emocionadas sabendo que foi a gente que fez, que tiramos nosso tempo para produzir, ainda mais hoje que vivemos num mundo tão corrido
RENATA STEFFANI CHIES
Designer e barista