Por Gabriela Souza
Advogada no escritório Gabriela Souza - Advocacia para Mulheres, que atende a causas femininas
Os aniversários da Lei Maria da Penha marcam o meu próprio desenvolvimento enquanto mulher e advogada feminista. É como se ela fosse uma filha adolescente que vi crescer e, nesta segunda-feira (7), completa 17 anos de vida, e sempre acho inevitável pensar que existem meninas da mesma idade que têm o privilégio de ter vivido uma vida inteira sob sua proteção.
Me emociono com essa possibilidade porque ela é a maior das minhas esperanças: uma nova geração de mulheres, com conhecimento de seus direitos e uma mudança de pensamento jurídico, com perspectiva de gênero.
Os avanços da Lei são inquestionáveis. Primeiro, porque fizeram justiça para uma Maria brasileira e que pontuou que as violências que ela sofreu não são normais. Esse é um dos seus grandes legados: escancarar que a violência doméstica não é normal, que amor não machuca e que qualquer forma de violência contra as mulheres é uma violação dos direitos humanos.
Esta lei foi reconhecida como uma das melhores do mundo sobre violência de gênero e também é conhecida por mais de 90% dos brasileiros, o que é motivo de orgulho para esse país.
Mas, então, por que o Brasil ainda é o quinto país mais violento do mundo? Por que muitas mulheres que pedem medida protetiva de urgência ainda morrem com o “papel na mão”?
Recentemente, foi publicado o Anuário de Segurança Pública, que revelou dados gravíssimos sobre a violência de gênero em nosso país, mostrando uma verdade já conhecida: não é uma rua escura e vazia o lugar mais perigoso para uma mulher estar – é a sua casa.
Se temos uma lei tão significativa na proteção dos direitos humanos das mulheres, por que ainda temos a sensação de estarmos sendo mais sufocadas a cada dia?
O maior desafio não é o teor, mas sim a aplicação. Se no início houve o questionamento da constitucionalidade, hoje se questiona sua eficácia, sua aplicabilidade e, como se fosse possível, sua honra.
Percebam que a violência de gênero é tão grande que questionamos a honra de uma lei.
Vemos a própria Maria da Penha ser ofendida nas redes sociais, com versões delirantes de sua própria história. Movimentos masculinistas surgem destilando misoginia e ódio, o que explica o medo que as mulheres sentem.
Me pergunto: alguma vez vocês viram uma lei sofrer violência de gênero? Ser ofendida e chamada de “leizinha” com desdém?
Eu vejo a Lei Maria da Penha ser tratada assim todos os dias. A personificação da “lei com nome de mulher” mostra o que a sociedade tem de melhor e de pior, desde seu início até os dias atuais.
Dados da Secretaria de Segurança Pública do RS, quando bem analisados, apontam que solicitar uma medida protetiva de urgência é, sim, forma de proteger a vida das mulheres, uma vez que a grande maioria daquelas que buscam proteção estatal não perdem suas vidas.
Este mecanismo de proteção é a maior inovação da Lei: solicitando ajuda na delegacia, em até 48 horas seu pedido é analisado e a proteção é imediata. Em termos de aplicação do direito, isso é um sonho, desburocratizando procedimentos e prazos conhecidos por serem lentos.
A Lei Maria da Penha criou um microssistema jurídico de defesa das mulheres e inaugurou o período em que esse tema foi mais discutido na história. De lá para cá, outras leis necessárias surgiram, como a do Feminicídio, da Importunação Sexual, reconhecimento da violência psicológica como crime, alteração da prescrição em casos de violências sexuais e obrigatoriedade de educação com perspectiva de gênero em todos os graus de instrução, entre outras medidas.
Porém, apesar de um sistema jurídico bem significativo na proteção das mulheres, a resistência na aplicação de mecanismos é vista tanto em agressores quanto em magistrados, promotores e aqueles que deveriam proteger as mulheres. Assim, acabam vulnerabilizando-as ainda mais.
No mês em que comemora seus 17 anos de vigência, celebro sua existência com bastante preocupação, não apenas pela história que passou, mas pelo que está por vir. Destaco que é necessária e urgente a mudança de pensamento social e jurídico, em busca de equidade de gênero, e aponto que a educação é uma das melhores soluções para que meninas e mulheres tenham garantidos os seus direitos humanos.
Três efeitos positivos da criação da Lei Maria da Penha
- Mostrou a verdade: o Brasil é o quinto país mais violento do mundo para uma mulher existir. Também confirmou o que sempre deveria ser óbvio: a violência doméstica é uma violação aos direitos humanos e sua prevenção é uma obrigação de todos.
- Tornou a proteção mais rápida: em até 48 horas, são analisados os pedidos de medida protetiva e, em cidades que não têm fórum, a própria delegacia pode deferir já no momento do pedido.
- Abriu caminhos: se antes a evolução dos direitos humanos das mulheres era lenta, a partir de sua edição, dezenas de outros mecanismos legais surgiram. Alguns exemplos são a Lei Joana Maranhão, que garante às vítimas de abuso sexual mais tempo para denunciar o agressor; a Lei do Minuto Seguinte, que estabelece que vítimas de violência sexual têm direito a atendimento obrigatório e gratuito no minuto seguinte à agressão; a criação do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, um documento assinado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que indica o passo a passo para julgar processos com perspectiva de gênero. A partir de 2023, sua aplicação tornou-se obrigatória.
Três pontos em que ainda é preciso avançar
- Há resistência: apesar de ser reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a terceira melhor lei sobre gênero do mundo, muitas pessoas desdenham e não a obedecem, por acreditarem que "não dá em nada".
- Sua aplicação não é completa: falta capacitação de toda a rede de acolhimento e também aplicação dos instrumentos pelo Judiciário e afins, que muitas vezes cometem revitimizações e violências institucionais contra as mulheres.
- Falta estrutura: há uma lacuna de varas especializadas e promotorias. Ainda são raros os projetos como o da Casa da Mulher Brasileira, espaço que reúne serviços especializados e multidisciplinares de assistência às vítimas de violência doméstica. Há uma falta de priorização da proteção às mulheres, o que desestimula as denúncias.