Hoje com 24 anos, Beatriz*, que mora em Bagé, viveu um pesadelo quando tinha apenas 15, no final de 2012. Na época, ela usava o Twitter, assim como muitos jovens, para interagir e fazer amizades. Dois rapazes, que eram amigos entre si, chamavam sua atenção. Por um deles, Victor*, ela era apaixonada. Já o outro, Gabriel*, insistia em chamá-la no privado para puxar assunto, mas Beatriz não dava muita bola. Até que, um dia, o primeiro a adicionou no Skype. Foi quando os pedidos por fotos íntimas começaram.
— Eu nunca tinha tirado ou mandado uma foto assim para alguém. Ele falava: se tu não me mandar a foto, é porque não confia em mim e a gente não vai poder namorar, não vou mais falar contigo — lembra ela.
Com a insistência, a então adolescente resolveu mandar três imagens. Uma na frente do espelho de corpo inteiro e outras duas selfies em que aparecia pouco de seu rosto, com as partes íntimas destacadas. Depois que enviou, nem mesmo obteve uma resposta de Victor. Ainda de madrugada, já se arrependeu de ter cedido. Na manhã seguinte, quando abriu as redes sociais, se deparou com vários novos seguidores, em sua maioria homens, do mesmo nicho desses dois amigos. Não entendeu o que estava acontecendo até que um outro amigo a alertou, de forma nada delicada, sobre o ocorrido.
— Ele me explicou que tinha visto fotos minha pelada e que eu era uma "vagabunda". Quando fui questionar o Victor, a conta no Skype tinha sumido — lamenta.
A partir de então, as fotos circularam pela internet e Beatriz recebeu críticas e julgamentos de todos os lados ("inclusive de mulheres", ressalta). Como se não bastasse, precisou lidar com mensagens impróprias de outros homens que se achavam no direito não só de pedir mais imagens, como também de criticar as já feitas . Anos depois, confirmou a suspeita de que Gabriel se passou por Victor para conseguir o que queria. Ao confrontá-lo, ouviu que "deveria ter pensado nisso antes de mandar as imagens" e ainda que, se ele soubesse que elas seriam "tão ruins", nem teria insistido. A jovem precisou de um tempo afastada das redes sociais para se recuperar, mas até hoje considera não ter superado totalmente o episódio.
— São consequências que vêm até hoje. Quando fui começar a te contar, pensei: "Nossa, o que será que ela vai pensar de mim?". É um pensamento muito difícil de me livrar. Sei que fui errada de mandar foto aos 15 anos para uma pessoa que eu não conhecia. Mas também sei que o errado foi ele. Tenho muita vergonha até hoje. Não posso dizer que superei. Na época, gostava muito de uma música do Projota, que diz em um trecho que dignidade não se compra. Eu ainda não consigo ouvir. Na minha cabeça, eu tinha perdido a minha dignidade. Me via de uma forma suja — desabafa à nossa reportagem.
Questionada, Beatriz diz que "não pode reclamar" da impunidade do caso porque, na época, não foi atrás da Justiça. Mas, como explicaremos a seguir, leis específicas para crimes deste tipo só foram criadas no Brasil depois do que aconteceu neste relato. E a atriz Carolina Dieckmann teve papel fundamental na mudança legislativa.
*Os nomes dos envolvidos são fictícios, para preservar a identidade da entrevistada.
Lei Carolina Dieckmann e as mudanças na legislação
Há 10 anos, fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann circularam na internet após um hacker invadir o computador da artista e divulgar as imagens. O caso teve uma repercussão tão grande que impulsionou a criação de uma nova lei, com o nome da artista, que passou a considerar crime, previsto no artigo 154-A do Código Penal, a invasão de dispositivo informático.
A redação do artigo, inclusive, foi alterada no ano passado, quando teve a pena agravada. Conforme explica a promotora de Justiça Carla Carrion Frós, coordenadora do Grupo Especial de Prevenção e Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Gepevid), a lei tem como objetivo trazer mais segurança nas relações estabelecidas no ambiente virtual.
— Foi um marco na nossa legislação. Essa lei trouxe uma série de mudanças e uma necessidade de maior zelo pelos dados online — afirma. — Subtrair dados já era crime, mas não de uma forma específica. No Brasil, fatos que envolvem artistas costumam ter maior repercussão, gerar debates e, consequentemente, novas leis são criadas para tipificar condutas que antes ou não eram definidas como crime ou não tinham uma legislação específica, como neste caso.
Entretanto, a lei de 2013 não seria aplicável no caso de Beatriz, por exemplo, pois não abrange situações em que foi a própria vítima quem enviou os materiais repassados (na maioria, por (ex) namorados). Ainda que a conduta configurasse crime, não estava exatamente descrita desta forma. Inclusive, existe uma modalidade de violência doméstica chamada de "pornografia de vingança", quando as imagens são usadas para chantagear a ameaçar a mulher. Nestes casos, também cabe pedir uma medida protetiva de urgência.
— Muitas dessas fotos são repassadas após o rompimento de um relacionamento, no qual uma das partes, inconformada com o término, ameaça divulgar as imagens sem o consentimento do outro, ou já divulga de imediato. Uma coisa é o crime de invasão de dispositivo informático. Outra é o de divulgação de imagens — salienta Carla.
Esse outro tipo de situação foi incluída no Código Penal a partir do artigo 218-C, datado de 2018, que tipifica como crime toda a conduta que consista em oferecer, trocar, transmitir, vender, distribuir ou de qualquer forma publicar ou divulgar por meios de comunicação de massa ou sistemas de informática fotografias, vídeos ou qualquer outro registro audiovisual que contenha uma cena de estupro, que faça apologia a este crime ou que divulgue imagens de cunho sexual não autorizadas pela vítima.
Vazou. O que fazer?
Se um conteúdo íntimo seu for compartilhado sem autorização, de imediato o recomendado é que você registre um boletim de ocorrência em uma delegacia de polícia — da mulher, de preferência, mas pode ser inclusive na online. Busque provas do que aconteceu (mensagens que comprovem a troca de nudes com aquela pessoa, de ameaça, de terceiros avisando sobre o vazamento) e apresente os prints (capturas de tela).
A dica de Carla é levar esse material a registro em ata notarial. O que isso significa? Que será feito um documento lavrado em cartório atestando a veracidade do material que esteja, por exemplo, no aparelho celular.
Quando um homem repreende e não passa a mão por cima, ele consegue romper o movimento machista e criar uma nova perspectiva em que homens também não toleram violência contra a mulher
GABRIELA SOUZA
Advogada, professora e sócia da Escola Brasileira de Direito das Mulheres
A advogada Gabriela Souza, professora e sócia da Escola Brasileira de Direito das Mulheres, também lembra que apenas a ameaça de divulgação já é considerada crime e deve ser registrada. E mais: não só compartilhar, mas armazenar esse conteúdo em qualquer dispositivo também é crime. Ao receber um "nude" não autorizado em um grupo no WhatsApp, por exemplo, o que deve fazer? Repreender quem mandou, sair do grupo e apagar as imagens do aparelho e da nuvem.
— Mesmo que você não tenha pedido, ter esse conteúdo consigo também é crime — lembra Gabriela. — Quando um homem repreende e não passa a mão por cima, ele consegue romper o movimento machista e criar uma nova perspectiva em que homens também não toleram violência contra a mulher.
Além desse registro, a vítima ainda pode buscar a reparação de danos morais sofridos. A Justiça entende que a exposição desse conteúdo afeta direitos personalíssimos, como a integridade psíquica, a imagem e a intimidade.
— Infelizmente, sabemos que os danos psicológicos causados por esse tipo de exposição são enormes, levando muitas vítimas ao suicídio — acrescenta Carla.
O crime de importunação sexual é considerado comum pelas especialistas ouvidas para esta reportagem. Entretanto, atinge majoritariamente mulheres. No caso específico da "pornografia de vingança", existem pesquisas que apontam que em 90% do caso as vítimas são do sexo feminino, diz Carla.
— Eu diria que as vítimas são mulheres justamente por serem mulheres. Vivemos em uma sociedade patriarcal, machista, em que a prática de qualquer tipo de violência contra a mulher é naturalizada. Isso é uma questão muito complexa que está enraizada na sociedade. São estereótipos de gênero que ainda não foram desconstruídos — opina a promotora.
Esses avanços na lei são um importante instrumento de combate à violência contra a mulher, avalia Gabriela.
— Muitas vezes o homem só entende que está errado quando é condenado. É um jeito importante de por fim — opina a advogada.
Quero mandar imagens. Como me proteger?
Muitas vezes, o compartilhamento de fotos íntimas faz parte do jogo de sedução nas relações. Por sabermos que muitas pessoas se aproveitam do recebimento desse conteúdo para depois cometer alguns tipos de violência, a advogada Gabriela Souza aconselha tirar fotos que não sejam facilmente identificadas . Veja dicas:
- Tire as fotos em um ambiente neutro.
- Evite mostrar tatuagens, cicatrizes ou marcas que possam ser identificadas.
- Evite mostrar o rosto.
- Opte por ferramentas instantâneas para o envio por redes sociais, nas quais as fotos desaparecem após a visualização.
- E, não custa reforçar: prefira enviar as imagens para pessoas de confiança.
Produção: Luísa Tessuto