Um caso curioso que aconteceu no início do mês passado ganhou repercussão nacional e vem gerando debate dos mais diversos âmbitos nas redes sociais. O então morador de rua Givaldo Alves, da cidade de Planaltina, no Distrito Federal, foi espancado após ser flagrado tendo relações sexuais com a esposa de um personal trainer da região. De acordo com um laudo elaborado por médicos do Hospital Universitário de Brasília obtido pelo jornal O Globo no dia 28 de março, a mulher de 33 anos envolvida na situação demonstrava sinais de "transtorno afetivo bipolar em fase maníaca psicótica" no dia do episódio. Ela está internada em uma instituição psiquiátrica desde então.
Apesar da situação adversa da comerciante, Givaldo, que se autointitula "mendigo do amor", tem ganhado fama na internet (e fora dela). Depois da história viralizar, ele foi escolhido para estampar publicidades, recebeu convites para festas, participou de podcasts, ganhou até música e adentrou o círculo social de alguns influenciadores digitais. No Instagram, site em que criou uma página depois do ocorrido, já acumula mais de 399 mil seguidores. Por lá, é possível acessar um link em que ele vende vídeos personalizados pelo valor de R$ 127,50.
"Opa, pessoal! Aqui quem fala é o Givaldo Alves, o mendigo… Sim, aquele mesmo! Se você quiser um vídeo especial meu dando conselho amoroso para aquele seu amigo que está na seca, desejando feliz aniversário para aquele seu parente gente fina ou qualquer outra ocasião especial, eu estou aqui", diz o texto do site.
Para Carla Zanella, socióloga e coordenadora da Emancipa Mulher - Escola de Formação Feminista e Antirracista, a popularidade de Givaldo reforça a necessidade de consciência coletiva sobre o feminismo.
— Não é aceitável que se torne um fenômeno positivo um homem que se aproveitou de uma mulher em situação de vulnerabilidade. Fica explícita a necessidade do feminismo quando ele se torna um ídolo, inclusive com propostas para ser candidato, e ela está em tratamento psiquiátrico — afirma.
A falta de atenção do público e da mídia para a delicada situação da mulher envolvida no caso também é um ponto levantado pela jornalista e mestranda em Ciências Humanas Ingra Costa e Silva.
— No meio disso tudo, ninguém deu visibilidade para a vulnerabilidade que ela estava naquele momento, o que ela passou e o que vai ser dela daqui para frente. Sabemos que o mendigo vai virar celebridade. E essa mulher? O que vai acontecer com ela? Como ela está sendo vista além de piada ou de "lanchinho" deste cara, que está sendo visto como o pegador, o machão, só reforçando esses estereótipos de homem-macho que já temos na sociedade? — questiona ela. — Também tem outro ponto importante. Não teria sido um abuso por parte dele fazer sexo com ela, já que era perceptível que ela não estava bem?
Além disso, Ingra acrescenta que, se fosse uma mulher em vez de um homem nesta situação, a repercussão da história teria sido diferente.
— Se um homem, em um surto psicótico, ficasse com uma mulher moradora de rua bem distante dos padrões de beleza ditados pela sociedade, ele sairia de coitado e ela não seria vista como "pegadora", mas sim como uma piada. Ao contrário deste homem, que virou uma espécie de herói — afirma.
Já a professora aposentada da UFRGS Dagmar Estermann Meyer, doutora em Educação e pesquisadora das relações de gênero e sexualidade, prefere não fazer análises sobre o caso em si por acreditar não ter elementos suficientes para tal. Mas, sobre os significados dessa representação de "pegador" atribuída a Givaldo, ela opina:
A meu ver, é um sintoma grave de uma sociedade e uma cultura que continua sendo, estruturalmente, machista, racista, sexista e homofóbica
DAGMAR ESTERMANN MEYER
professora aposentada da UFRGS , doutora em Educação e pesquisadora das relações de gênero e sexualidade
— A meu ver, é um sintoma grave de uma sociedade e uma cultura que continua sendo, estruturalmente, machista, racista, sexista e homofóbica, apesar de inegáveis avanços que também precisamos reconhecer — pontua. — O que pensar de organizações privadas e públicas que ainda acham que colar a representação de "pegador" à sua marca ou produto agrega valor? O que pensar de empresas e divulgadores digitais que investem na produção e circulação dessa representação neste tempo em que vivemos?
Para ela, a situação expõe um caminho ainda longo que precisaremos traçar para uma sociedade brasileira menos desigual.
— Toda a repercussão dessa representação de "pegador" que, neste caso, é a de "mendigo pegador", e talvez por isso suscite ainda mais visibilidade, é um importante sinalizador de que estamos apenas engatinhando nessas questões, apesar dos esforços dos movimentos e das organizações sociais — conclui.
Por fim, a professora titular da UFRGS e integrante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero Jane Felipe acrescenta que é notório o quanto uma educação machista traz danos para as mulheres, que, de acordo com ela, não são respeitadas até mesmo quando estão em estado de vulnerabilidade.
— Temos assistido recentemente situações em que mulheres foram expostas e suas doenças motivo de chacota, seja pela mídia, seja pela indústria do entretenimento. Veja, por exemplo, o lamentável caso da atriz Jada Pinkett-Smith, que foi vítima de uma "piada" de mau gosto por conta da sua condição decorrente da alopecia. Aqui podemos também lembrar de inúmeros casos de revenge porn (pornografia de vingança), quando vídeos ou fotos íntimas das mulheres são divulgadas pelos (ex)namorados, (ex)maridos, (ex)amantes.
No caso em questão, a professora opina que ainda existe o agravante de pessoas tentando lucrar, obter fama e aumentar o números de likes e visualizações nas redes sociais às custas do "sofrimento psíquico de uma mulher, vítima do próprio marido e do morador em situação de rua, que virou uma subcelebridade com a repercussão do caso".
— A falta total de empatia, o desrespeito, a misoginia e o machismo são fruto de uma educação antiética, equivocada e perversa — dispara.
* Produção: Luísa Tessuto