Liliana Cardoso Duarte, 43 anos, é a primeira mulher negra nomeada patrona dos Festejos Farroupilhas do Rio Grande do Sul. A declamadora e ativista cultural é a quarta representante feminina a receber a homenagem desde 2005, quando o título passou a ser concedido – as outras indicadas ao posto foram Nilza Lessa, Elma Sant'Ana e Alessandra Motta. E não para por aí. Pela primeira vez, a atual presidente do Movimento Tradicionalista Gaúcho, o MTG, também é uma mulher: Gilda Galeazzi tomou posse no ano passado ao derrotar Elenir Winck em eleição histórica, com duas cabeças de chapa femininas.
Se antes elas ficavam restritas aos bastidores de CTGs, encontros populares e festivais nativistas, hoje as mulheres conquistaram cargos estratégicos e ganharam poder de decisão no fomento das tradições.
— No tradicionalismo, sempre tivemos vez, estávamos ali. Mas nem sempre tivemos voz. De nada adianta o cargo se não formos ouvidas, se não houver reconhecimento do trabalho. Nossa voz vem ficando mais forte nos últimos anos — define Roberta Jacinto, vice-presidente de cultura do MTG.
A indicação de Liliana para patrona dos festejos, por exemplo, tem tudo a ver com a trajetória de lutas, a contribuição para a cultura gaúcha, as bandeiras que levanta sem medo e seu discurso entoado com uma voz potente – por 22 anos, ela apresentou o Desfile Farroupilha, no dia 20 de setembro, em Porto Alegre. Participou de um CTG no bairro Rubem Berta ainda criança, a convite de uma das irmãs. Desbravou a poesia gaúcha incentivada pelo pai, José Luiz, e se apaixonou pela declamação – juntos, eles criaram o projeto A Arte de Declamar no Gauchismo, que percorre o Brasil com palestras e oficinas.
Neste longo caminho, conta que sempre estranhou "a falta de referências negras no movimento". Se a invernada tivesse um casal negro, já era fora da curva. Também mantinha um olhar crítico para a falta de espaço às mulheres em festivais de música e poesia. Se entre os 10 finalistas, duas eram mulheres, já havia uma comemoração. Para Liliana, a mulher que se posiciona, que tem força nas palavras e é questionadora acaba sendo mal interpretada, assim como na sociedade. Hoje, defende uma reflexão profunda sobre o papel feminino dentro do movimento e a criação de um departamento para estudar a cultura negra no MTG.
— Na última década, vemos avanços nesse sentido, mas ainda há muito chão pela frente. Sou uma mulher negra e patrona, e isso é muito representativo. Reflete a luta de ressignificar os festejos farroupilhas. Tivemos os Lanceiros Negros na Revolução Farroupilha, por que são heróis anônimos sem nome na história? Eles foram linha de frente, foram massacrados, e pouco falamos do legado de luta e guerra dos lanceiros — pontua Liliana. — Há uma invisibilidade do negro dentro do movimento, da contribuição do povo negro. A poesia tem papel social e histórico de reparação, é um clamor da história.
Barreiras vencidas
A escritora e pesquisadora Elma Sant'Ana, que tem mais de 30 livros publicados e está na quarta edição da obra O Folclore da Mulher Gaúcha, explica que não é novidade essa luta por protagonismo – apesar da mulher geralmente estar relegada a um plano secundário nas decisões. Anita Garibaldi, destaque na Guerra dos Farrapos e eleita tema dos Festejos Farroupilhas 2021 em razão de seu bicentenário, é uma das figuras mais inspiradoras nesse sentido, explica Elma:
— Quando saiu de Laguna, Anita se recusou a ser quem queriam que ela fosse. Ela abandonou uma vida previsível para seguir Garilbadi, teve coragem, pegou em armas, seguiu um revolucionário. Imagina o preconceito que ela sofreu, isso era lá por 1840. Ela merece o respeito, seguimos falando nela 200 anos depois. E ela segue inspirando até hoje.
Nos festivais nativistas, na música, na poesia ou na escrita, outras tantas também romperam barreiras desde o século passado para reivindicar seu espaço. Nomes como Marlene Pastro, Maria Luiza Benitez, Mary Terezinha e a própria Berenice Azambuja, que morreu no último dia 3, são referências de mulheres que conquistaram respeito por seus trabalhos a duras penas.
— Elas enfrentaram muita resistência, mas abriram portas. Subir num palco de um festival nativista, por exemplo, era um grande desafio. Outras tantas como a própria Shana Müller e a Liliana Cardoso construíram suas trajetórias e, hoje, também inspiram outras mulheres. Elas têm muito mérito — defende Elma.
A mulher em pauta
Em 1992, Elma criou um piquete apenas de mulheres. Deu-se conta de que o público feminino que circulava nesse meio era formado massivamente por noivas, esposas e filha de homens engajados nas tradições — e ela queria mudar essa realidade. Iniciativas semelhantes seguem até hoje: há dois anos, Shana Müller organizou o primeiro Peitaço da Composição Regional, reunindo mais de 40 musicistas, intérpretes, compositoras e poetisas para um final de semana de imersão e reflexão sobre o papel da mulher na arte gaúcha. E esses debates que ecoam impactam no movimento tradicionalista, avalia a vice-presidente de cultura do MTG, Roberta Jacinto:
— O tradicionalismo é julgado como se fosse à parte da sociedade, e não é. O MTG reproduz muitas coisas que são da sociedade. As pessoas que estão no movimento estão no mercado de trabalho, na academia, na escola, na faculdade, então, é claro que tudo se cruza. A homofobia é a mesma coisa. A gente vem trabalhando essa questão. Estamos em processo de evolução, e essas questões perpassam o movimento. Há debates internos e ações, posicionamentos, é algo gradativo.
De olho no futuro
Os avanços estão aí, mas ainda há muito o que evoluir em busca da igualdade de gênero nas tradições gaúchas. Um ponto de atenção é o fato de aproximadamente um terço das 30 regiões tradicionalistas ainda não figurarem na lista de organizações que já contaram com liderança feminina. E a pandemia imprime ainda mais desafios para essa renovação, avalia a patrona Liliana, mas ela garante que, seja de forma online ou presencial, vai abraçar a causa e levar o debate para "todos os pagos e galpões".
— Meu papel é motivacional, cultural, social, educacional, um elo do cooperativismo e da coletividade. É uma crise sanitária, nossa cultura foi afetada, mas é através dela que vamos nos levantar. É a troca de ideias, e a Semana Farroupilha entra nisso — finaliza.