Não foram as praias brasileiras que conquistaram a francesa Paula Anacaona. O que fez a escritora e tradutora de 41 anos se apaixonar pelo Brasil vem do povo: a literatura que dá voz aos personagens da periferia. A relação com a obras de autores como Férrez, Conceição Evaristo e Marcelino Freire inspirou Paula a abrir uma editora na França para divulgar escritores brasileiros. E também serviu como incentivo para a publicação de seu primeiro romance, Tatu, que aborda questões da mulher negra.
No Mês da Consciência Negra, Paula estará em Porto Alegre para dois bate-papos sobre negritude e universo feminino. Neste sábado, 17, ela estará na Feira do Livro e, na segunda-feira, 19, participa de evento na Aldeia (veja o serviço completo abaixo). Conversamos com Paula sobre os desafios da mulher negra e o racismo no Brasil e na França.
Seu primeiro romance, Tatu, trata da história de uma franco-brasileira, filha de pai negro e mãe branca, em embate com sua identidade mestiça. Dar voz a personagens mestiças traz à tona questões importantes para o debate?
Eu, tradutora, editora, nunca pensava que iria escrever um romance. Primeiro, escrevi dois livros infantojuvenis sobre Maria Bonita e Jorge Amado, e gostei do exercício. Depois, quis escrever algo mais pessoal. Essa questão da mestiçagem sempre foi um problema para mim, demorei para achar meu lugar no mundo. Na verdade, o problema era sobretudo o olhar do outro. Os franceses brancos me consideravam diferente – no meu caso, uma “mulher exótica”. Os negros me consideravam como diferente – mestiça com uma mãe branca. Com que grupo eu poderia me identificar? Eu, que li muito, também tive vontade de “me ver” nos livros. Claro, eu fui capaz de me identificar com Madame Bovary, que não tinha nada a ver comigo. Esse é o poder da literatura. Mas chega um momento que você quer ver uma heroína que talvez tenha as mesmas dificuldades que você, que passe pelos mesmos questionamentos... E também por questões de autoestima. Quando você nunca se enxerga, nunca vê heróis não brancos na história oficial, na literatura “culta”, nunca vê modelos positivos, você começa a duvidar. Tatu, então, foi uma maneira de falar, na literatura, de uma mulher mestiça, bem-sucedida e ambiciosa, mas com as dificuldades que talvez outras mulheres possam passar. Como associar carreira e papel de mãe? Como associar feminilidade aos padrões de beleza muito cruéis e intolerantes – cabelo, celulite, unhas, rugas... a mulher sofre muita pressão! Como lidar com a negritude quando você vive em um meio em que os negros são ausentes? Como lidar com a ausência do pai, que é o caso da heroína?
Tatu é, em alguma medida, uma narrativa autobiográfica?
Como todo primeiro romance, coloquei muito de mim dentro. No entanto, insisto, Tatu é uma ficção. Mas reflete alguns do meus questionamentos e indignações… Por exemplo, o primeiro capítulo traz uma situação que eu vivi: um rasta, com dreads enormes, falou comigo na rua para me pedir o caminho e me chamou de sister. Assim, abro o romance. Eu, sister dele? O que que tenho em comum com esse rasta? Eu fiquei pensando muito tempo nesse brother rasta. E aí coloquei esse episódio no romance: para minha heroína, toda arrumadinha, com a sua vida certinha e burguesa, é impossível ser a sister desse rasta! No entanto isso vai desencadear uma série de pensamentos/mudanças na sua vida… Quanto a preconceito, sim, já sofri o que eu chamaria de microagressões, irritantes, para não dizer humilhantes. Muito preconceito em torno de minha classe social – à primeira vista, muitos franceses pensam que “preciso de ajuda”, bolsa para estudar, ajuda para criar os filhos... Essa compaixão ou condescendência foi difícil de identificar como preconceito. Porque a pessoa quer fazer o bem, quer me ajudar. Mas quem disse que eu preciso de ajuda?
Apesar de o Brasil ser conhecido como “o país da miscigenação”, o racismo, velado ou explícito, é algo presente no dia a dia. Como você enxerga o lugar da mulher negra no Brasil?
Em Tatu, falo do lugar da mulher negra na França e no Brasil. No entanto, no Brasil, a situação está meio distorcida, pelo fato de a heroína ser riquíssima. Eu justamente queria mostrar como o dinheiro pode dar a impressão de “apagar” a raça. E mostrar também que minha heroína, sendo da classe AAA, enfrenta todos os preconceitos dessa classe, julgamentos de valor, desprezo, até racismo velado. Na França, onde ela passou a sua infância, a situação é diferente: quis mostrar como o problema do racismo lá se sobrepõe ao da identidade nacional. Durante toda a infância, as pessoas perguntam a ela “De onde você vem?”. Ela nasceu na França, foi criada por uma mãe francesa, mas sempre é “outra”. Com essa carinha, esse cabelo, é como se ela não pudesse ser francesa. A “francesa” no imaginário coletivo francês é Amélie Poulain, Catherine Deneuve, Marion Cotillard... O que gera situações perturbadoras para milhares de jovens negros e árabes, que são filhos, netos, bisnetos de africanos ou árabes, mas que se acham 100% franceses. No entanto, a França os considera sempre como diferentes.
Que outras diferenças você identifica sobre o lugar da mulher negra na sociedade brasileira e francesa?
A situação no Brasil e na França é bem diferente. Primeiro, na França, as estatísticas étnicas são proibidas. Então, é complicado fazer comparações. O mais chocante para mim é em termos de educação – as mulheres negras francesas têm acesso à educação pública, que é de qualidade aqui, então são globalmente mais educadas. No entanto, temos a mesma invisibilidade na mídia, na literatura... A luta das mulheres negras, sim, é uma global.
Um dos termos que ganhou força nos últimos anos é a pigmentocracia. Quanto mais pigmentada a pele de uma pessoa, maior será o preconceito que ela irá sofrer e menores serão as oportunidades que terá. Isso reforça a ideia de que as pessoas negras acabam sendo “toleradas”, mas não realmente “aceitas” no convívio social. De que forma você vê essa questão?
É verdade, os negros bem-sucedidos são geralmente de pele clara. No entanto, precisamos prestar atenção para não multiplicar as categorias. Por exemplo, uma negra gorda vai sofrer mais preconceito do que uma negra magra. Uma negra muçulmana mais preconceito do que uma negra católica. E assim vai... Até onde vamos fazer esse jogo do “eu sou mais discriminada do que você”? Claro que tem que reconhecer as particularidades, mas sem dividir a luta, sem nos colocar em concorrência entre nós.
O Brasil acabou de passar por uma eleição tumultuada, em que a relevância da defesa dos direitos humanos e das minorias esteve no centro do debate. Você acompanhou as discussões? Como avalia essa questão?
Sim, fiquei muito atenta, porque essa onda de extrema-direita é mundial e receio alguma coisa similar na França nas próximas eleições. Acho triste ver que, quando alguns grupos/minorias conseguem ser mais ouvidos, ser mais respeitados, outros se sentem em perigo e querem voltar atrás.
Quais mulheres negras você apontaria como inspiração para as novas gerações e por quê?
No campo da política, apontaria Christiane Taubira, ex-ministra da Justiça na França e negra. Apesar de suas opiniões politicas, com que você pode concordar ou não, não se pode negar o lugar onde ela conseguiu chegar nem o quanto abriu espaços para novas gerações. Na literatura, citaria Conceição Evaristo no Brasil e Chimamanda Adichie, um fenômeno mundial. No mundo dos negócios, como escapar de Oprah Winfrey? Com uma trajetória tão impressionante, faz qualquer uma sonhar, seja negra ou não. O Brasil tem a Rachel Maia, que deixou neste ano o cargo de CEO da Pandora. Não a conheço, não conheço seu percurso, mas só o fato de Rachel ser uma empresária bem-sucedida já faz dela um exemplo.
Qual a importância de essas mulheres terem voz na sociedade? Representatividade é um fator importante para encontrar novas formas de ver o mundo e gerar tolerância?
Eu, por exemplo, fui criada com modelos exclusivamente brancos. Pela cultura, pela história, pela família. Sempre ouvi dizer que não era um problema, porque “a cultura é universal”. É verdade – às vezes. Mas reparei que também precisamos nos enxergar em heróis. Reparei que de tanto ler, aprender, amar essa cultura “universal”, temos a impressão de que o negro não participou da história mundial, não é um protagonista positivo nos filmes... Só nos dão um espaço para esporte e para música – e não todo tipo de música, aliás! Então, chegamos a um momento em que temos a impressão de não pertencer – não pertencer ao mundo da música clássica, não pertencer ao mundo de cirurgiões, de presidentes de multinacionais... Precisamos nos ver em situações positivas. E não somos capazes de nos identificar em heróis como O Pequeno Príncipe – então por que os brancos não poderiam se identificar com heróis negros? Escrevendo em Tatu a história de Victoria, mulher moderna, eu espero que muitas mulheres – brancas e negras, tanto faz – se reconheçam nessa luta que ela trava no dia a dia para achar seu lugar no mundo e ser feliz.
Paula Anacaona em Porto Alegre
Sábado, dia 17
O que: bate-papo na Feira do Livro
Quando: às 18h30min, no Salão de Bridge do Clube do Comércio (Andradas, 1.085), com mediação de Fernanda Bastos. Às 19h30min, ocorre a sessão de autógrafos de Tatu na Praça de Autógrafos.
Quanto: entrada franca
Segunda-feira, dia 19
O que: bate-papo promovido pela Aliança Francesa
Onde: Aldeia (Rua Santana, 252), às 20h
Quanto: entrada franca