Quando soube que teria de viajar a trabalho para o Irã, o que primeiro veio à mente de Thaís Rücker, 41 anos, foram o histórico de guerras e as regras que obrigam as mulheres a cobrir os cabelos e o corpo. Mas, chegando lá, ela se dispôs a compreender a cultura do país sem julgamentos prévios e teve a chance de conhecer três iranianas que a fizeram rever alguns preconceitos. Mais: como a jornalista de Porto Alegre conta a seguir, ela pôde perceber que, independentemente dos costumes de cada lugar, muitos dos desafios das mulheres são os mesmos mundo afora.
Leia o relato abaixo:
"O Irã é um daqueles países meio escondidos no mapa-múndi, que quase ninguém lembra até que surge no noticiário por conta de uma guerra ou ameaça terrorista. Dificilmente estará no sonho de viagem de alguém. Também não estava no meu, mas foi lá que fui parar quando um artigo que escrevi foi aprovado para a Conferência Mundial de Parques Científicos e Ambientes de Inovação, realizada na cidade de Esfahan, no Irã. Lá também conheci mulheres que me emocionaram, me ajudaram a desconstruir preconceitos e deram significado à palavra sororidade.
Considerado um dos países mais fechados do mundo, marcado por guerras (Irã-Iraque, quem lembra?) e por seu forte programa nuclear, não é o tipo de destino muito convidativo. Para garantir público, os organizadores da conferência tratavam de nos tranquilizar. O Irã é um país seguro e belíssimo, diziam nos e-mails que enviavam aos participantes do mundo todo. Não demorou também para chegar o e-mail com orientações sobre o código de vestimenta para mulheres. Lembro de olhar o meu guarda-roupa e não achar nada que pudesse levar. Todas as minhas camisas e blusas, por mais formais que fossem, ou eram muito curtas, ou muito decotadas, ou muito justas ou com mangas não suficientemente longas. Ah, e ainda tinha que levar um lenço (que eles chamam de hijab) para cobrir a cabeça. No Irã, as mulheres não podem mostrar o cabelo, o colo, os cotovelos nem usar roupas que marquem o corpo.
Resolvi pesquisar na internet sobre como as iranianas se vestiam e, quanto mais eu pesquisava, mais restrições descobria. Mulheres no Irã não podem cantar nem dançar em público. Pelo que entendi, dependendo de onde trabalham, devem vestir o chador, uma espécie de capa toda preta, em que apenas o rosto fica de fora.
Homens e mulheres não podem se tocar em público. Algumas redes sociais e sites como Facebook e YouTube são bloqueados. O álcool é banido do país, e quem for pego consumindo bebida alcoólica é punido com 80 chibatadas. Não posso negar que pensar em passar uma semana em uma conferência sem uma tacinha de vinho me abalou, mas não mais do que as restrições impostas às mulheres.
Como alguém que levanta a bandeira da igualdade de gênero, me sentia doída por elas, com raiva de tudo que oprime as mulheres aqui e lá. Nesse momento, meu senso jornalístico falou mais alto e mergulhei em pesquisas sobre a vida das mulheres. E então, no início de setembro, desembarquei em Esfahan, antiga capital da Pérsia, sabendo pouco ou quase nada sobre os seus 4 mil anos de história e seus maravilhosos pontos turísticos, mas sabendo de cor o nome das iranianas que lutam por igualdade.
Em solo iraniano, hora de cobrir a cabeça: troquei olhares com as duas polonesas que estavam ao meu lado e iam para a mesma conferência, sorrimos desconfortáveis. Em seguida, tensão na hora da imigração, meu lenço não parava na cabeça de jeito nenhum e senti medo de ser barrada. Tudo certo. Entramos.
Logo me impactei com a beleza das iranianas, sempre maquiadas, sorridentes e com um pouco de cabelo à mostra. Tentei copiar o estilo para me sentir menos alienígena. E logo entendi como o hijab me tolhia. Tenho bastante cabelo e, talvez por isso (ou por um jogo de sedução inconsciente), mexa muito nele, jogo pra um lado, pro outro, prendo e solto mil vezes no dia. Além disso, estamos falando de um lugar no meio do deserto, em que a temperatura chega a 35 graus à tarde. Nada agradável andar enrolada num lenço.
Primeiro dia: um passeio pela segunda maior praça do mundo e um grupo de jovens iranianas se aproxima de outra brasileira do nosso grupo. Indagam sua nacionalidade e logo começam a fazer perguntas sobre (pausa dramática) como é ser mulher no Brasil! Opa, a curiosidade é recíproca, pensei.
Então apareceu uma mulher que me transformou. Nour, muçulmana, toda coberta de preto, só o rosto de fora. Começou me fazendo perguntas sobre o Tecnosinos, parque tecnológico onde trabalho, e depois sentou na minha mesa para o jantar. Dessa vez foi o argentino que também jantava com a gente que abriu os trabalhos, perguntou na lata se ela não tinha vontade de consumir álcool.
Eu fiquei mil vezes mais constrangida com a pergunta que Nour, que, aliás, mostrou 100% de serenidade ao dizer que nunca experimentou e não tem vontade porque acredita com todo o seu coração na fé islâmica. O que faz Nour se vestir de um jeito tão estranho ao meu olhar são as suas fortes convicções, assim como eu tenho as minhas e que norteiam as minhas escolhas. Familiar, não? Saí do jantar com a certeza de que aquela mulher podia muito bem ser minha amiga, com quem eu passaria a tarde tomando chá, rindo e falando da vida.
Vida. Esse é o nome da outra mulher que cruzou o meu caminho no Irã. O forte esquema de segurança para deixar o país nos colocou uma atrás da outra numa fila enorme no aeroporto. Resolvi puxar assunto, e ela abriu um sorriso agradecido, parecia desejosa também de conversar. Me contou que era estudante universitária e estava indo passar férias na casa de amigos no Canadá. Perguntei se ela tiraria o hijab quando chegasse lá, e a resposta veio mais clara e direta impossível: “Assim que eu entrar no avião!”. Rimos. Embarquei e quem senta exatamente do meu lado? Vida. (Obrigada universo!) Ela riu muito enquanto eu gravava um vídeo para o Instagram tirando o lenço.
Digamos que, depois de uma semana, estava meio desesperada para me livrar dele. Reparei que ela esperou todos os iranianos entrarem no avião e então, voilá hijab. No voo, me contou sobre seu desejo de morar fora do país e sobre como as coisas já tinham sido piores para as mulheres nos primeiros anos da revolução islâmica. Nos abraçamos na chegada à Áustria, desejamos sorte e seguimos cada uma para a sua conexão.
Saí de Esfahan profundamente impactada com a beleza estonteante daquela cidade, com suas grandiosas mesquitas e seus palácios conservados, com a cordialidade daquele povo tão discriminado mundo afora. E, mais ainda, tocada, mexida, orgulhosa de nós, mulheres, da nossa força em resistir às adversidades e seguir lutando. Espero um dia reencontrá-las e poder comemorar os avanços que tivemos na luta por igualdade de gênero".
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